quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Resenha: Cinderela Baiana


           O carnaval acabou, mas aqui no Café com Tripas ele está apenas começando. Esqueça as mega-produções e venha ver um baixo-orçamento, tire sua linda fantasia e vista aquela camisa surrada, abandone o trio elétrico e vem pra nossa micareta, rasgue a nota dez de sua escola e entre no mundo dos repetentes, pois aqui no Café com Tripas o simples, mal feito e o sem sentido tem seu lugar.
           Ah, como assim? Explico: você sabia que pau que nasce torto nunca se indireita? Que menina que requebra mãe pega na cabeça? Não? Então prossiga e descubra.

 


Título original: Cinderela baiana
Lançamento: 1998 (Brasil)
Duração: 85 minutos
Direção: Conrado Sanchez




  Antes de prosseguir, leia um apelo pessoal de Jimi Jonh Hendrix Jamil Jameson Jonhson, fundador do Café com Tripas:

Em que pese o fato de que o cinema trash está fortemente associado a filmes sangrentos (assassinatos, monstros e coisas do gênero), ele não está restrito a isso. É fato que a designação “trash” pode ser usada de um modo mais livre, servindo para nomear qualquer filme ruim o suficiente para mostrar as virtudes que só surgem no lixo. Destarte, embora o Café com Tripas seja um blog voltado, sobretudo, para o trash com alta concentração de proteína líquida, nós não deixaremos de, por vezes, abordar filmes que fujam a isso.
Brincadeira.
Isso é só uma desculpa para introduzir o filme vergonhoso de hoje à noite:


Resenha:
Cinderela baiana
Rebolando para vencer

É isso mesmo que leste, ó nobre leitor desamparado. Se você se sentia mal por ser único, sinta-se pior sabendo que, além disso, este blog não respeita o bom gosto e a inteligência de quem o lê. Todavia, não vá embora. Veja a resenha até o fim. Fique firme e segure o tchan - você não há se arrepender.


Senta que lá vem história

Carlinha é uma jovem de origem pobre e sofrida que, tendo perdido a mãe na infância, parte com o pai para Salvador onde enfrentam uma vida também sacrificada. Cotidianamente, ela vaga pela cidade com seus amigos, se divertindo nos salões de dança e exercitando seu talento nato para a coisa. Por fim, é descoberta por um inescrupuloso empresário da música e lançada ao estrelato.


Tava ruim lá na Bahia, profissão de bóia-fria, trabalhando noite e dia, num era isso o que eu queria...

Rigorosamente falando, a história é bastante comum. Trata-se de mais alguém que tenta crescer na vida por meio da arte e, com um pouco de sorte e talento, acaba conseguindo. Simples assim. Entretanto, o que há de interessante na obra é justamente essa simplicidade franca que explicita a mentalidade dos envolvidos no filme e o próprio universo que nele se mostra. Se de um lado temos diálogos caricatos que chegam a constranger pela maneira como são apresentados, de outro somos apresentados a uma Bahia miserável e excluída, existente fora do carnaval e da folia institucionalizada que a vende como uma terra da perdição, onde tudo (da direção alcoolizada ao turismo sexual) é permitido. Ali estão unidos os artifícios da fábula e os dramas do real.
Com efeito, em “Cinderela Baiana” os problemas estão fortemente atrelados às virtudes, de modo que é custoso emitir algum juízo a respeito do filme sem considerar parte de seus aspectos em detrimento de outros. Entretanto, se existe algo que é possível afirmar convictamente é que a obra, apesar dos senões, é genuína. Passado algum tempo vendo as bobagens de Carla e de seus amigos, acabamos nos acostumando com o filme e notamos que (mesmo com um resultado final ridículo) vive ali uma produção honesta, de representação “do povo para o povo”, de cinema bruto e de brasilidade miscigenada que não se pode ignorar. Obviamente, é possível criticar o fato de que o filme se insere numa indústria mercenária - como é a cinematográfica - o que indicaria que tudo o que vemos ali é uma construção e não o Brasil verdadeiro. Pois bem. A isso se pode responder que, se o filme tenta ser simples para transmitir simplicidade, ele obtém sucesso. Entretanto, não parece que haja um grande plano por detrás de “Cinderela baiana”, fracasso retumbante de crítica e bilheteria. Do oposto. Sua trama, personagens e desenlaces são tão toscos que parecem ter sido criados por pessoas tão simples quanto eles próprios.
Assim, creio que somente se considerarmos essa mistura de elementos genuínos e fictícios, de Brasil real e oficial é que se faz possível olhar o filme por uma ótica um pouco menos preconceituosa, que releve tanto defeitos quanto qualidades, entendendo “Cinderela” não como a biografia da Carla Perez ou um musical de axé, mas como um filme autêntico, enfim, uma obra de arte. Por sinal, não é esse um dos grandes problemas do nosso mundinho preconceituoso, isto é, tentar olhar o outro com olhos menos imundos?


Tira o pé do chão, galera!

A saga de Carla se dá, principalmente, a partir sua adolescência até o princípio da maturidade. O filme retrata tanto o desenrolar dos fatos ocorrentes na vida da personagem quanto seu (fraquíssimo) processo de conscientização em relação ao lugar em que está e que posição deseja ocupar nele. Para amadurecer e calçar seu sapatinho de cristal, nossa cinderela deverá escapar aos desmandes de seu inescrupuloso patrocinador, ganhar independência e aprimorar sua arte. Quanto ao homem, o filme levanta uma leve crítica à indústria musical ao mostrar as relações entre a dançarina e patrão, questionando o modo como ele a explora. Já quanto à arte, devo adverti-los que, segundo o filme, na Bahia a palavra arte tem apenas três significados: axé, axé e axé. A trama é embalada por canções dançantes que retratam de modo curioso (embora com exageros) a inserção cultural desse estilo musical, desconsiderando a existência de qualquer outro tipo de manifestação musical. Obviamente, nada do que é mostrado se aprofunda. O que tem interesse para o filme é a trajetória de Carla da infância, quando era uma criança pobre que dançava o tempo todo de modo alienado, até a idade adulta, quando vira uma mulher rica que dança o tempo todo de modo alienado. Porque, afinal, a vida se vence rebolando.


Incoerências

Caberá aos historiadores do futuro enumerar todas as incoerências de “Cinderela baiana”, de modo que nós do Café com Tripas ofereceremos aqui meramente uma prévia, além de tentar dar algumas respostas que as esclareçam.

                                                         Mãe odiada!
Já no princípio o pai de Carla vai trabalhar enquanto sua mãe a leva para pedir esmolas à beira da estrada. Passado algum tempo a mulher desmaia e morre. Porém, logo na cena seguinte, quando o marido retorna para casa, a moribunda já está estendida no leito de morte com velório armado, com caixão, com velinhas, luto e velhinhas orando por sua alma. Ora, como foi que armaram tudo em tão pouco tempo? Onde compraram as velas se são tão pobres? Quem avisou os conhecidos para comparecerem? E quem levou o corpo até a casa?
Só consigo imaginar que a mãe de Carla era, ao contrário do que o filme sugere, uma grande megera, sendo que os vizinhos aguardavam ansiosamente o falecimento da velha para, enfim, armar o enterro, sair pra comemorar, tomar uma cerveja e tocar um pandeirinho.

Música embriagante!
Na Bahia, a qualquer momento, sem qualquer explicação, vindo de lugar algum, destituído de todo possível sentido e sem nenhum aviso, o axé pode começar a tocar em alto e bom som. Com isso, as pessoas passarão a dançar como diabretes, esquecendo da fome, da miséria, das péssimas condições sociais e de qualquer outra coisa senão melodia e harmonia. Hoje, isso é chamado no Rio de Janeiro de micareta e na Bahia de carnaval, mas na Velha Roma era pão e circo mesmo.

Pai ausente!
Carla é tão pobre que não tem dinheiro sequer para comer, vive numa favela sem luz elétrica, vaga a esmo dia e noite por uma cidade miserável sujeita a violência, não freqüenta escola e usa somente duas peças de roupa, contudo, seu pai é um contador formado que faz discursos moralistas e recebe vários aumentos no decorrer do filme até chegar ao topo da empresa sem que melhore em nada seu estilo de vida. Ora como explicar isso? Se não há comida em casa, se não há escola, em suma, se ele dá uma vida medíocre à filha apesar de não ter muitos gastos e aumentar gradativamente sua renda, para onde é que vai o salário, então?
Só há uma resposta cabível, leitores: igreja neo pentecostal.


Pau que nasce torto

O filme é um amontoado de diversos clichês. Chega a ser difícil contar. Assim, vou ressaltar somente alguns os quais julgo como os mais relevantes:

Discursos!
Se você aprecia frases de efeito edificantes, prepare-se, pois “Cinderela” tem diversas. Rola até um “faça o que o seu coração mandar” lá pelo meio dele. Juro.

Elogio da pobreza!
Na Bahia de “Cinderela” os pobres são bons, pacíficos, ingênuos e puros. Seres cordiais. Para fazê-los felizes, basta mandar um batuque e servir um acarajezinho que a ignorância garante o resto.

Príncipe!
            Mulheres, tranqüilizem-se! No universo de “Cinderela” todo o mundo é feliz e o príncipe encantado sempre vem. Desanuviem, portanto (não, não é possível ser feliz e solteira. De onde é que você tirou essa idéia?).

Pureza mantida!
Carla passa todo o filme lidando com o mal - na forma de um empresário sacana, de homens querendo usá-la, canções vulgares ou de mulheres mal-amadas - mas mantém sua “pureza” e ingenuidade, como se uma pessoa boa fosse incapaz de, apesar dos pesares, comprometer seus valores.


Devo faltar ao trabalho para assistir?

            Evidentemente. O filme é um clássico do cinema nacional, vem transmitindo valores essenciais aos seres humanos e educando várias gerações desde seu surgimento. É diversão garantida para a família brasileira, sem contar, é claro, que possui o melhor final da história do cinema.
Seja como for, muito axé pra vocês nesse carnaval!



Trailer*


*ps: o filme não tem trailer, porém, para dar uma idéia geral dele encontramos esse vídeo que parece ser o mais próximo disso.

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