O carnaval
acabou, mas aqui no Café com Tripas ele está apenas começando. Esqueça as
mega-produções e venha ver um baixo-orçamento, tire sua linda fantasia e vista
aquela camisa surrada, abandone o trio elétrico e vem pra nossa micareta,
rasgue a nota dez de sua escola e entre no mundo dos repetentes, pois aqui no
Café com Tripas o simples, mal feito e o sem sentido tem seu lugar.
Ah, como assim? Explico: você sabia
que pau que nasce torto nunca se indireita? Que menina que requebra mãe pega na
cabeça? Não? Então prossiga e descubra.
Título
original: Cinderela baiana
Lançamento: 1998 (Brasil)
Duração: 85 minutos
Direção: Conrado Sanchez
Lançamento: 1998 (Brasil)
Duração: 85 minutos
Direção: Conrado Sanchez
Antes de prosseguir, leia
um apelo pessoal de Jimi Jonh Hendrix Jamil Jameson Jonhson, fundador do Café
com Tripas:
Em que pese o fato de que o cinema trash
está fortemente associado a filmes sangrentos (assassinatos, monstros e coisas
do gênero), ele não está restrito a isso. É fato que a designação “trash” pode
ser usada de um modo mais livre, servindo para nomear qualquer filme ruim o
suficiente para mostrar as virtudes que só surgem no lixo. Destarte, embora o
Café com Tripas seja um blog voltado, sobretudo, para o trash com alta
concentração de proteína líquida, nós não deixaremos de, por vezes, abordar
filmes que fujam a isso.
Brincadeira.
Isso é só uma desculpa para introduzir o
filme vergonhoso de hoje à noite:
Resenha:
Cinderela baiana
Rebolando para vencer
É isso mesmo que leste, ó nobre leitor
desamparado. Se você se sentia mal por ser único, sinta-se pior sabendo que,
além disso, este blog não respeita o bom gosto e a inteligência de quem o lê.
Todavia, não vá embora. Veja a resenha até o fim. Fique firme e segure o tchan
- você não há se arrepender.
Senta que lá vem história
Carlinha é uma jovem de origem pobre e
sofrida que, tendo perdido a mãe na infância, parte com o pai para Salvador
onde enfrentam uma vida também sacrificada. Cotidianamente, ela vaga pela
cidade com seus amigos, se divertindo nos salões de dança e exercitando seu
talento nato para a coisa. Por fim, é descoberta por um inescrupuloso
empresário da música e lançada ao estrelato.
Tava ruim lá na Bahia, profissão de bóia-fria, trabalhando noite e dia, num
era isso o que eu queria...
Rigorosamente falando, a história é
bastante comum. Trata-se de mais alguém que tenta crescer na vida por meio da
arte e, com um pouco de sorte e talento, acaba conseguindo. Simples assim. Entretanto,
o que há de interessante na obra é justamente essa simplicidade franca que explicita
a mentalidade dos envolvidos no filme e o próprio universo que nele se mostra.
Se de um lado temos diálogos caricatos que chegam a constranger pela maneira
como são apresentados, de outro somos apresentados a uma Bahia miserável e
excluída, existente fora do carnaval e da folia institucionalizada que a vende
como uma terra da perdição, onde tudo (da direção alcoolizada ao turismo
sexual) é permitido. Ali estão unidos os artifícios da fábula e os dramas do
real.
Com efeito, em “Cinderela Baiana” os
problemas estão fortemente atrelados às virtudes, de modo que é custoso emitir algum
juízo a respeito do filme sem considerar parte de seus aspectos em detrimento
de outros. Entretanto, se existe algo que é possível afirmar convictamente é
que a obra, apesar dos senões, é genuína. Passado algum tempo vendo as bobagens
de Carla e de seus amigos, acabamos nos acostumando com o filme e notamos que (mesmo
com um resultado final ridículo) vive ali uma produção honesta, de representação
“do povo para o povo”, de cinema bruto e de brasilidade miscigenada que não se pode
ignorar. Obviamente, é possível criticar o fato de que o filme se insere numa
indústria mercenária - como é a cinematográfica - o que indicaria que tudo o
que vemos ali é uma construção e não o Brasil verdadeiro. Pois bem. A isso se pode
responder que, se o filme tenta ser simples para transmitir simplicidade, ele
obtém sucesso. Entretanto, não parece que haja um grande plano por detrás de
“Cinderela baiana”, fracasso retumbante de crítica e bilheteria. Do oposto. Sua
trama, personagens e desenlaces são tão toscos que parecem ter sido criados por
pessoas tão simples quanto eles próprios.
Assim, creio que somente se considerarmos
essa mistura de elementos genuínos e fictícios, de Brasil real e oficial é que
se faz possível olhar o filme por uma ótica um pouco menos preconceituosa, que
releve tanto defeitos quanto qualidades, entendendo “Cinderela” não como a
biografia da Carla Perez ou um musical de axé, mas como um filme autêntico, enfim,
uma obra de arte. Por sinal, não é esse um dos grandes problemas do nosso
mundinho preconceituoso, isto é, tentar olhar o outro com olhos menos imundos?
Tira o pé do chão, galera!
A saga de Carla se dá, principalmente, a
partir sua adolescência até o princípio da maturidade. O filme retrata tanto o
desenrolar dos fatos ocorrentes na vida da personagem quanto seu (fraquíssimo) processo
de conscientização em relação ao lugar em que está e que posição deseja ocupar
nele. Para amadurecer e calçar seu sapatinho de cristal, nossa cinderela deverá
escapar aos desmandes de seu inescrupuloso patrocinador, ganhar independência e
aprimorar sua arte. Quanto ao homem, o filme levanta uma leve crítica à
indústria musical ao mostrar as relações entre a dançarina e patrão,
questionando o modo como ele a explora. Já quanto à arte, devo adverti-los que,
segundo o filme, na Bahia a palavra arte tem apenas três significados: axé, axé
e axé. A trama é embalada por canções dançantes que retratam de modo curioso (embora
com exageros) a inserção cultural desse estilo musical, desconsiderando a
existência de qualquer outro tipo de manifestação musical. Obviamente, nada do
que é mostrado se aprofunda. O que tem interesse para o filme é a trajetória de
Carla da infância, quando era uma criança pobre que dançava o tempo todo de
modo alienado, até a idade adulta, quando vira uma mulher rica que dança o
tempo todo de modo alienado. Porque, afinal, a vida se vence rebolando.
Incoerências
Caberá aos historiadores do futuro
enumerar todas as incoerências de “Cinderela baiana”, de modo que nós do Café
com Tripas ofereceremos aqui meramente uma prévia, além de tentar dar algumas
respostas que as esclareçam.
Mãe odiada!
Já no princípio o pai de Carla vai
trabalhar enquanto sua mãe a leva para pedir esmolas à beira da estrada. Passado
algum tempo a mulher desmaia e morre. Porém, logo na cena seguinte, quando o
marido retorna para casa, a moribunda já está estendida no leito de morte com velório
armado, com caixão, com velinhas, luto e velhinhas orando por sua alma. Ora,
como foi que armaram tudo em tão pouco tempo? Onde compraram as velas se são
tão pobres? Quem avisou os conhecidos para comparecerem? E quem levou o corpo
até a casa?
Só consigo imaginar que a mãe de Carla
era, ao contrário do que o filme sugere, uma grande megera, sendo que os
vizinhos aguardavam ansiosamente o falecimento da velha para, enfim, armar o
enterro, sair pra comemorar, tomar uma cerveja e tocar um pandeirinho.
Música embriagante!
Na Bahia, a qualquer momento, sem
qualquer explicação, vindo de lugar algum, destituído de todo possível sentido
e sem nenhum aviso, o axé pode começar a tocar em alto e bom som. Com isso, as
pessoas passarão a dançar como diabretes, esquecendo da fome, da miséria, das péssimas
condições sociais e de qualquer outra coisa senão melodia e harmonia. Hoje,
isso é chamado no Rio de Janeiro de micareta e na Bahia de carnaval, mas na
Velha Roma era pão e circo mesmo.
Pai ausente!
Carla é tão pobre que não tem dinheiro
sequer para comer, vive numa favela sem luz elétrica, vaga a esmo dia e noite
por uma cidade miserável sujeita a violência, não freqüenta escola e usa
somente duas peças de roupa, contudo, seu pai é um contador formado que faz
discursos moralistas e recebe vários aumentos no decorrer do filme até chegar
ao topo da empresa sem que melhore em nada seu estilo de vida. Ora como
explicar isso? Se não há comida em casa, se não há escola, em suma, se ele dá
uma vida medíocre à filha apesar de não ter muitos gastos e aumentar
gradativamente sua renda, para onde é que vai o salário, então?
Só há uma resposta cabível, leitores:
igreja neo pentecostal.
Pau que nasce torto
O filme é um amontoado de diversos
clichês. Chega a ser difícil contar. Assim, vou ressaltar somente alguns os
quais julgo como os mais relevantes:
Discursos!
Se você aprecia frases de efeito
edificantes, prepare-se, pois “Cinderela” tem diversas. Rola até um “faça o que
o seu coração mandar” lá pelo meio dele. Juro.
Elogio da pobreza!
Na Bahia de “Cinderela” os pobres são
bons, pacíficos, ingênuos e puros. Seres cordiais. Para fazê-los felizes, basta
mandar um batuque e servir um acarajezinho que a ignorância garante o resto.
Príncipe!
Mulheres, tranqüilizem-se! No
universo de “Cinderela” todo o mundo é feliz e o príncipe encantado sempre vem.
Desanuviem, portanto (não, não é possível ser feliz e solteira. De onde é que você
tirou essa idéia?).
Pureza mantida!
Carla passa todo o filme lidando com o
mal - na forma de um empresário sacana, de homens querendo usá-la, canções
vulgares ou de mulheres mal-amadas - mas mantém sua “pureza” e ingenuidade,
como se uma pessoa boa fosse incapaz de, apesar dos pesares, comprometer seus
valores.
Devo faltar ao trabalho
para assistir?
Evidentemente. O filme é um clássico
do cinema nacional, vem transmitindo valores essenciais aos seres humanos e
educando várias gerações desde seu surgimento. É diversão garantida para a
família brasileira, sem contar, é claro, que possui o melhor final da história
do cinema.
Seja como for, muito axé pra vocês nesse
carnaval!
Trailer*
*ps: o filme não tem trailer, porém, para dar uma idéia geral dele encontramos esse vídeo que parece ser o mais próximo disso.
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