sábado, 4 de agosto de 2012

Resenha: O vingador tóxico (The toxic avenger)


Então você acha que o mundo está perdido e precisamos de heróis? Batman, super-homem e homens tão capazes e inteligentes quanto eles, que defendam o sistema contra  ameaças? Afinal, há muitos inimigos por aí e é preciso que alguém defenda o Estado e os bons valores, não? O que seria de nós sem o Estado para nos proteger? Teríamos o quê? Metrópoles violentas e repletas de drogas? E sem quem defenda nossos valores? Pessoas degeneradas e corruptas vestidas como pessoas de bem? Uma tragédia.
Pensando exatamente nisso o Café com Tripas lança o bat-sinal sobre o céu e convoca não o homem-morcego, mas um herói perfeito para nossos clamores hipócritas. Com vocês, “O vingador tóxico”. (Leia também a resenha de "Vingador Tóxico II" e "Vingador Tóxico III")




Título original: The toxic avenger
Lançamento: 1984 (EUA)
Duração: 85 minutos
Direção: Joe Ritter e Lloyd Kaufman





O vingador tóxico
Contra a beleza, os padrões e o Estado

Antes de tudo, preciso confessar uma coisa: eu não falo inglês e assisti “O vingador tóxico” com o áudio original. Com isso, você pode pensar que estou me gabando ou desculpando pelos possíveis erros interpretativos. Não vou negar sua sapiência, porém não é isso.
Na verdade, quero relatar outra coisa: percebi que o legal de se ver um trash em inglês é repassar todos aqueles diálogos bobocas com o verbo “to be” que nos ensinaram (?) na escola:

- How are you?
- I am ok, and you?
- I am ok too.
- Where you come from?
- I’m come from Brazil, and you?
- I’m come from 'taquepariu.

            Falando sério, para que uma pessoa como eu, que não entende bem inglês, compreender sem problemas um filme falado nesse idioma é preciso que ele seja, digamos, não muito profundo, não muito complexo; é urgente que seus vilões sejam assim tão óbvios a ponto de usarem pinturas para indicar que são maus, ou que pertençam a minorias raciais para que possamos odiá-los sem pestanejar. Em outras palavras, é necessário que o filme corresponda ao padrão Café com Tripas de qualidade, sendo tão ruim, mas tão, mas tão tãaaaaaao ruim-minha-nossa-senhora que chega a ser uma obra-prima.
            Assim, caro leitor do Café, esteja preparado para lidar com a fina arte de se fazer filmes podres e conquistar gerações. Leia sobre o maior herói da história e, ao mesmo tempo, uma opera magna do cinema trash, “O vingador tóxico”.

Nasce uma lenda...


Melvin, um jovem reprimido e sem grandes atrativos, passa seus dias com um emprego medíocre enquanto sonha em possuir belas mulheres e ser socialmente aceito. Diariamente sofre intensas humilhações do mesmo grupo no qual deseja se inserir, até que, numa dessas sessões, acaba caindo num balde de produtos tóxicos. O evento produz nele profundas mudanças e o rapaz retorna com um imenso desejo de vingança...

Monstros e heróis

            “O vingador tóxico” conta a história de Melvin - sobretudo após a mudança que sofre - mostrando a maneira pela qual ele e a sociedade vão lidando com essa transformação. O rapaz acaba por ganhar uma força descomunal, mas tem sua aparência alterada grotescamente, o que faz com que seja notado pelos outros e por si como um monstro. Além disso, com o tempo certo instinto assassino o possui, sem que nos seja permitido saber se essa é uma consequência física ou psicológica de seu estado deformado.
Afinal, Melvin é um monstro ou apenas se assumiu como tal?


Essa questão vai ganhando importância no avançar do filme pois, ao passo que o personagem ajuda muitas pessoas em sua jornada (se tornando um tipo de herói), mata tantas outras de maneiras bem  cruéis. Ora, ser um herói, se é que ele o é, não dá a ninguém o direito de assassinar pessoas, tampouco de eliminar um inimigozinho aqui e ali quando ninguém está olhando. Logo, Melvin frequentemente se assemelha aqueles que combate, seja por aquilo que faz ou pelos métodos que usa. No entanto, como sempre fica do lado dos oprimidos e derrotados, ajudando-os enquanto destroça algum inimigo, acabamos gostando de vê-lo arrancar braços e trucidar bandidos.
Hipocrisia? Com certeza. Banhada a sangue e testosterona, daquele jeitinho que a gente gosta.
O próprio personagem percebe isso e passa a questionar sua humanidade, tentando entender sua condição: sou monstro ou sou humano? De uma maneira esquisita o filme tenta lidar com essa questão, afirmando que Melvin, por sua condição incomum, tem um imenso desejo de destruir o mal e promover a justiça, o que não parece assim muito crível... Porém, num universo estranho como esse qualquer teoria maluca pode bem ser verdade, não?
            Apesar disso, o filme não se resume a pura exaltação de um herói torto, como se tudo o que ele fizesse fosse bom. Na verdade, o Vingador só existe porque o mundo é um lugar horrendo e injusto em que, até um inocente como Melvin, tem que se transformar num monstro para sobreviver. Portanto, só uma sociedade muito decadente - em que a política é corrupta, em que os valores são degenerados, em que as autoridades só fazem valer a lei em causa própria - é que surgem salvadores. Nada pode ser mais triste do que um herói: ele é o símbolo de que o mundo fracassou e necessita pôr o peso da renovação sobre as costas de uma única pessoa. Pronto, já dei minha lição de moral de hoje.

O vingador contra o Estado

Um aspecto bem interessante de “O vingador tóxico” é a relação entre o herói e o Estado, sendo muito bem explorada na história. Recapitulando: Melvin é um monstro fortão que tem sede se justiça, derrota criminosos e reestabelece a paz na cidade, apesar de ser feinho que dói. E o que há de mal nisso? Você poderá me perguntar. E responderei com outra questão: não era esse o dever do Estado? O que aconteceria se, de repente, tudo aquilo que os governos fossem pagos para fazer, começasse a ser realizado pelos próprios cidadãos? Quanto tempo demoraria até que alguém perguntasse: afinal, se há violência, corrupção e injustiça, para que serve o Estado?
            Esse conflito é muito interessante e pouquíssimo explorado em filmes de super-heróis. Ele lida com um tema muito caro à política: a ilusão de segurança que o Estado transmite as pessoas. Não é o caso de dizermos que o Estado não proteja as pessoas, mas que, para quem governa, ter seus cidadãos se sentindo seguros é mais importante do que efetivamente protegê-los.
No filme isso é colocado de um modo bem legal: conforme o vingador começa a ganhar visibilidade e trazer segurança real para a cidade, a população passa a gostar dele. Consequentemente, o governo e seus agentes ficam preocupados com o efeito que Melvin exerce sobre as pessoas. Como solucionar isso? Simples: matá-lo e mostrar, afinal, quem é que manda na bagaça.
Nessa queda de braço do vingador contra o Estado, morre um monte de gente inocente e a cidade vira um caos na medida em que a polícia, ao invés de realizar suas funções habituais, passa a caçar Melvin, o que mostra que, para o poder oficial, o que importa é o controle sobre a população exercido através da ilusão de bem-estar e não o bem-estar dessa população. Em suma, tudo está bem enquanto parece bem.

Barbie e Ken


Uma questão bem explorada pelo filme - aliás, bastante atual - é aquela da crítica à padronização da beleza. Minimamente, o que todos conhecemos: tipificamos certas características físicas como belas e outras como feias, com isso, qualquer um que busque ver as coisas de uma maneira diferente (ou mesmo negar esse padrão) é tido com desaprovação.
Em “O vingador tóxico” temos a figura desajeitada de Melvin que, apesar de estar fora do padrão, consegue viver bem assim. Com sua vidinha, defeitos e virtudes ele é feliz; mesmo desejando, às vezes, ser um pouco mais valorizado (e quem não gostaria?). No entanto, sua felicidade e modos desagradam profundamente os que estão no padrão e que, por isso, se consideram melhor que ele. Bonitos e bonitas passam a desprezar Melvin não apenas pelo que ele é - um rapaz estranho -, mas pelo que não é: uma pessoa bonita; como se o fato do rapaz conviver bem consigo mesmo fosse uma afronta à existência deles. Afinal, como um feio pode ter a audácia de ser feliz? Ou melhor, como uma gorda pode usar uma camisa curta? Ela não tem vergonha? Por que não se esconde? Por que não morre? Por que não a jogamos num barril de lixo tóxico para ver se ela aprende?
Em sua, eis o grau máximo do culto da beleza: a pregação de ódio e execração contra aqueles que não correspondem ao que se convencionou enquanto belo, como se, por isso, fossem pessoas piores, erradas, e precisassem se corrigir... Isto é, entrar no padrão.
Com efeito, num mundo desses, o máximo que nós esquisitinhos podemos dizer em autodefesa é: sou feio, mas também sou gente. Não me odeiem, por favor.

*

            Apesar de sua felicidade habitual, Melvin vai gradativamente se dando conta do padrão vigente e percebe, assim, que ninguém verá beleza fora dele. Consequentemente, começa a desejá-lo. Se as pessoas só vem um tipo de beleza, buscarei um meio de fazer desse tipo o meu. Com isso, ele vai ao espelho e mede o muque... Pequeníssimo. Desanima. Descobre a triste verdade: é uma pessoa feia e não pode mudar isso.
            Esse não é um grande drama, com podemos ver, todavia, não é também um problema irrelevante, constituindo um mal que aflige qualquer pessoa que tenha acesso, por exemplo, aos meio de comunicação de massa e as influências que ele promove. Revistas fotografando estrias no corpo de artistas, divulgação constante de dietas milagrosas, negras representadas como tendo “cabelo ruim” e assim por diante. Em tempo, quem nunca duvidou da própria beleza e com isso do próprio valor? Quem nunca viu pessoas consideradas feias sendo reprimidas ou destratadas; mudando suas personalidades, quiçá suas próprias vidas, por que são consideradas inferiores?
            No filme essa questão é tratada de uma maneira bastante irônica: a única personagem que consegue “ver” as qualidades de Melvin - sua beleza - é uma moça cega e, justamente por isso, alheia aos padrões de beleza. Quer dizer, somente alguém que não reconheceu o padrão pôde ver a beleza natural das pessoas. Assim, podemos nos pôr uma questão bem maldosa: se a moça enxergasse, gostaria do que veria? Ou melhor, conseguiria perceber alguém digno de amor ou só veria um monstro... Como nós mesmo fazemos?

Devo pular num barril de lixo tóxico?

            Matt Murdock ganhou poderes, mas ficou cego, Melvin ficou fortão, mas feio. Se você for feio e cego, não perca tempo e pule já; não há muito a perder. Porém, se não for, o risco é todo o seu.
No mais, se quiser apenas acompanhar a vida de um herói inusitado, “O vingador tóxico” é um filme muitíssimo divertido e uma das maiores bilheterias do cinema trash, o que deve corresponder mais ou menos a umas vinte e cinco pessoas. Nele, são abordadas um monte de questões bacanas sem desviar das tosquices características do gênero. Aqui no Café apenas pincelamos algumas delas, pois há várias outras que não abordamos. Pessoalmente, recomendo muito o filme; ri pra caramba. Contudo, se não puder ver não se preocupe, porque, segundo o narrador do filme, onde houver injustiça, onde houver necessidade e clamor, o Vingador Tóxico estará lá.

Para saber mais:

            Antes de encerrar, há três indicações legais que podemos fazer.
Primeiramente, o pessoal do contracampo - um site de crítica cinematográfica - fez um artigo excelente sobre a Troma e o cinema trash, comentando ligeiramente “O vingador tóxico”. Está assinado por Eduardo Valente.


          Além disso, o pessoal do "The dark one podtrash" fez um excelente podcaste sobre o filme, em que resgatam muitas informações técnicas e contextuais dele.

           Ouça aqui.

Por fim, o site da Troma, produtora de “O vingador tóxico” está no ar e é bem divertindo, vendendo exemplares do filme em VHS, contendo joguinhos e coisas igualmente trash.


Trailer:


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