segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Livros polêmicos dos quais você nunca ouviu falar (Parte I)


Então você veio até aqui achando que íamos tratar de “Mein Kampf” ou “Cinquenta tons de cinza” não é?  Pois pode esquecer.
O Café com Tripas definitivamente está fora do senso comum. Assim, se quiser navegar neste blog, não vai encontrar amenidades, história oficial, filmes família, artistas da moda, coisas mega conhecidas e cultuadas em cartazes, teses de mestrado e estampas nas camisetas. Bem do oposto. Nosso compromisso é com os marginais, com os desumanos, os desertores, os fracassados e malditos. Como diria aquele personagem do Orwell: “Nós somos os mortos”.
E por todos esses motivos iniciamos hoje uma série de postagens em que abordaremos, na forma de pequenos resumos, diversas obras literárias que causaram imensas polêmicas, mas que por vários motivos permanecem pouco conhecidas.
No entanto, antes de começarmos é preciso dizer algo: esta série não tem nenhuma relação com a programação habitual do blog, sendo, na verdade, um tipo de pausa para o Café entre as refeições. As próximas sairão esporadicamente e sem compromisso.
Dito isso, vamos às controvérsias!



O bom crioulo - Adolfo Caminha

Adolfo caminha é um tipo de MacGyver dos bafafás literários. Ele escreveu sobre um monte de coisas que as pessoas não queriam nem saber que existiam, quanto mais ler sobre elas num romance. Emancipação feminina, sexo fora do casamento, abuso paternal e assuntos que são tabus ainda hoje foram abordados (com vívidos detalhes) nos livros desse escritor fantástico e pouco conhecido. Graças a essa ousadia, ele foi posto no lugar característico das pessoas incríveis: o ostracismo.
De sua vida poderíamos dizer que fugiu com a esposa de um militar, que se meteu em um monte de conflitos por ter opiniões contrárias à moral vigente, enfim, uma série de coisas mais que, embora interessantes, não captam seu tamanho, nem a injustiça que há em fazê-lo um rodapé na história da literatura brasileira e mundial.
“O bom crioulo”, o livro marcado aí no título, foi publicado em 1895 e é nada mais que o primeiro romance homossexual de todo o ocidente, o que explica por que ninguém fala dele e, mais, por que todos deveriam falar dele. Essa é a obra mais polêmica do autor e conta a história de Amaro, um escravo fugido que entra para a Marinha para obter a liberdade; lá ele conhece Aleixo, um adolescente marinheiro iniciante, por quem se apaixona perdidamente.
Como se não bastasse ter a pachorra de falar dos gays num período em que esse comportamento era, até pouco tempo, considerado criminoso (o Brasil deixa de criminalizar a homossexualidade em 1830), Caminha ainda publicou um romance em que, menos de dez anos depois da libertação dos escravos, tem como protagonista um negro que se apaixona por um branquinho mirrado, loiro e de olhos azuis, representante do gene europeu “superior” que se colocava e ainda se coloca como padrão de beleza e cultura. Claro, isso tudo dentro da Marinha, lugar que deveria primar por sua "hombridade". Heresia e subversão as toneladas.
Por isso, fica aqui a sugestão do Café: para que antes que você, leitor, num momento de tédio, procure por algum autor maldito “cool” como Rimbaud, Blake ou qualquer europeu consagrado, deixe essa adulação estrangeira para mais tarde e vá atrás de Adolfo Caminha. Descubra um verdadeiro maldito, daqueles que nem em sua própria terra, nem em terra nenhuma será tido como boa companhia.

Onde encontrar?
Embora seja pouco discutido, “O bom crioulo” tem uma importância histórica inegável e é de domínio público, o que faz com que, apesar dos pesares, tenha várias reedições ao longo do tempo. Logo, não é difícil encontrar em boas livrarias e sebos alguma edição desse livro. 

Trecho:
Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.
Chamou-o a si, com a voz cheia de brandura, e quis saber como ele se chamava.
Eu me chamo Aleixo, disse o grumete baixando o olhar, muito calouro.
Coitadinho, chama-se Aleixo, tornou Bom-Crioulo.
E imediatamente, sem tirar a vista de cima do pequeno, com a mesma voz branda e carinhosa:
Pois olhe: eu me chamo Bom-Crioulo, não se esqueça. Quando alguém o provocar, lhe fizer qualquer cousa, estou aqui eu, para o defender, ouviu?
Sim senhor, fez o marinheirito levantando o olhar com uma expressão de agradecimento.
Não tenha vergonha, não: Bom-Crioulo, gajeiro da proa. É só me chamar.
Sim senhor...




Memória dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier - Jean Meslier
            Resumidamente, Jean Meslier foi um filósofo francês e racionalista do século 17 que fez críticas contundentes a igreja católica. Porém, até aí não há nada de excepcional, afinal Sade, Voltaire e tantos outros criticaram o catolicismo com veemência. A história da igreja está repleta de ações tenebrosas que permitem que praticamente qualquer um bata nela um pouquinho; nem é preciso ser filósofo para isso.
Então o que há de especial na crítica de Meslier? Bem, duas coisas.
Primeiramente, o período em que ela ocorre, isto é, o século dezessete. Nele a inquisição estava plenamente aquecida - hohoho - distribuindo afeto e calor entre os adversários do catolicismo. Sobrou até mesmo para os próprios católicos que tinham a ousadia de chegar a conclusões diferentes da igreja, como Galileu e Descartes. Por isso, escrever um livro que atacava o catolicismo diretamente, e mais, que fazia isso com uma linguagem ácida e direta (ele dizia que Jesus era um charlatão ignorante, entre outras coisas igualmente gentis) era um feito ousado para o período.
Por fim, Meslier, além de ateu, era padre. O quê? Vou repetir, ó leitor desatento: Meslier, além de ateu, era padre. Mais uma vez: além de ateu, era padre. Ateu, ateu, padre, padre.
O clérigo fazia missas durante o dia e à noite escrevia em seu diário-testamento, lamentando o fato de que tinha que enganar o povo ignorante contando mentiras a eles a fim de conseguir sua submissão. Quando morreu, seus escritos foram encontrados e repassados em grande parte da Europa, causando um alvoroço danado.
Então por que ele virou padre? Simples: porque essa era uma das profissões mais seguras daquela sociedade. Padres têm onde morar, padres tem o que comer e possuem uma forte autoridade por detrás de si que os protege. Por outro lado, os camponeses de quem Meslier tinha pena e tentava ajudar eram uns coitados: morriam de peste, passavam fome e, mais ainda, tinham que ouvir que eram pecadores e precisavam se arrepender de seus pecados ou iriam para o inferno. O século dezessete está cheio de injustiças largamente distribuídas e só pequenas elites (como o clero) estavam assegurados delas.
Portanto, ou era padre ou nada. Junte-se ao inimigo ou morra de fome.
Contra isso o filósofo, que não podia anunciar sua convicção, proclamou que os pobres deveriam se unir e matar todos aqueles que queriam submetê-los, ou, em suas próprias palavras, que era preciso “enforcar o último rei nas tripas do último padre”.
O livro “Memória” já foi chamado ironicamente de “bíblia do ateísmo”, pois nele está circunscrita a noção que hoje temos desse conceito (antes um ateu podia ser um não católico, dentre várias outras coisas), além disso, ali estão alguns dos argumentos e teses mais famosas contra a existência de deus usadas atualmente.
Seja para quem tem deus no coração e quer refutar Meslier, seja para quem só tem sangue mesmo e quer entender melhor o ateísmo, afirmo: leiam.

Onde encontrar?
 
Esse não é um livro muito conhecido e nem muito simples de se encontrar. Para dar uma ideia do descaso que envolve o autor, em Portugal o livro foi publicado tendo na capa não um retrato de Meslier, mas do filósofo Bento de Espinosa. Absurdo.
Que eu saiba há três possibilidades de adquirir o livro. A primeira é comprá-lo em idioma estrangeiro, seja no original em francês, nas traduções em inglês ou o que for. Fora isso há duas (e só duas) traduções em língua portuguesa; uma lá da terra dos portugas (pela Antígona), problemática na escolha dos termos; outra aqui do Brasil, colocada no livro “Filosofia clandestina Vol.II” da editora Martins Fontes, que apesar de ser uma boa tradução, tem uma história triste: ela traduz uma edição publicada originalmente por Voltaire, que temendo os posicionamentos radicais de Meslier, suprimiu e alterou várias partes de seu livro antes de levá-lo ao público. É preciso, portanto, lê-la com conhecimento desse fato.

Trecho (sobre Jesus):
 
"Sim, eu diria, eles a atribuem [a divindade] a um louco, a um insensato, a um miserável fanático e a um desgraçado velhaco; sim, meus caros amigos, é a um tal personagem que vossos padres e vossos doutores e pregadores atribuem a divindade, é um tal personagem que eles vos fazem adorar como vosso amável e divino Salvador, ele que não pôde salvar nem a si mesmo do suplício vergonhoso da cruz à qual ele foi condenado e onde ele terminou miseravelmente os seus dias. Pois esse Jesus Cristo que eles vos fazem adorar como um Deus feito homem para vos salvar e para vos remir, como eles dizem, não era, conforme o mesmo retrato que nos fazem dele os seus evangelistas e os seus discípulos, senão um homem vil, um miserável fanático e um desgraçado velhaco que foi pregado e pendurado na cruz, e que poderíamos, por esse motivo, dizer que ele foi amaldiçoado por Deus e pelos homens, conforme o que está escrito nos seus próprios santos Livros, onde está dito que o maldito de Deus é aquele que é pregado na cruz, maledictus a Deo est qui pendet in ligno (Deut., 21.23). Não é necessário que eu prove que ele era tão-somente um homem vil e desprezível no mundo. Pois não só ele mesmo dizia que ele não tinha um único lugar onde ele pudesse repousar a sua cabeça (Luc., 9.58), mas vós sabeis que ele veio ao mundo num estábulo, que ele nasceu de pobres padrinhos, que ele sempre foi pobre, que ele não era filho senão de um carpinteiro, e que desde que ele quis aparecer no mundo e fazer falar dele, que ele não tem passado por um insensato, por um louco, por um demoníaco e por um sedutor que sempre foi desprezado, zombado, perseguido, chicoteado e que, por fim, foi pendurado e pregado a uma cruz onde ele miseravelmente acabou seus dias, maledictus a Deo est qui pendet in ligno”.

(Meslier, Jean. Oeuvres complètes. Paris, Anthropos, Tome I, 1970, p. 391-392. Tradução de Paulo Jonas de Lima Piva).

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