quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Resenha: Street fighter - A batalha final (Street fighter)


Acho que como a maioria dos leitores daqui, “Street fighter” não foi para mim apenas um jogo passageiro, mas parte importante de minha infância. Ele tinha personagens carismáticos, golpes legais, aquela aura oriental das artes marciais, hadouken, um monstro brasileiro e tudo o mais que por tanto tempo nos entreteve. Consequentemente, nós fãs esperávamos que um filme dessa franquia fosse memorável, nos fazendo gostar ainda mais de nossos personagens favoritos. No entanto, como todos sabemos, não foi bem assim. “A batalha final”, embora seja historicamente um sucesso de bilheteria, é um fracasso enquanto adaptação. Ok. Até aí tudo bem - várias adaptações de jogos foram ruins. Contudo, nesse caso particular se trata de algo muito pior: o filme faz uma apologia escancarada da guerra. Não se lembrava disso? Pois continue lendo... 




Título original: Street fighter
Lançamento: 1994 (EUA)
Duração: 102 minutos
Direção: Steven E. de Souza





Street fighter A batalha final
Guerra é paz

Pois o homem é o exercício que faz
Eu sei... Sei que o mais puro gosto do mel
É apenas defeito do fel
E que a guerra é produto da paz

(Eu sou egoísta, Raul Seixas)

            “A batalha final” envelheceu muito e isso nos ajuda a perceber melhor suas origens ideológicas. Se você é do partido que acha que apontar ideologias nos filmes é coisa de esquerdistas malucos e intelectuais ociosos, repense isso enquanto assiste “Street fighter”, pois se até um burro feito eu é capaz de perceber a propaganda gritante, é porque essa coisa existe e nem sempre faz questão de se esconder.
            Ignorado esse aspecto, o filme é engraçado e profundamente... Brega, pois não há uma palavra melhor para descrever os diálogos pavorosos de Guile, o Bison megalomaníaco e raquítico interpretado por um Raul Julia que, aliás, estava no bico do corvo (ele morreria no mesmo ano da estreia), entre muitas outras coisas que recheiam esse bolo delicioso. Mesmo hoje, como entretenimento, a obra é ótima, seja para uma criança que acompanha as artes marciais ou para um adulto que ri dessa palhaçada toda. Para os dois eu o recomendo, porém, não sem reservas.

E o protagonista é...


Guile, um militar americano (o diretor é americano, a grana é americana, então o herói tem que ser americano), está caçando Bison, um ditador poderoso que quer dominar o mundo mesmo sabendo que Hitler, Napoleão e o rato Cérebro já tinham tentado antes dele. Ocorrerá então uma dura batalha que todo mundo sabe o final. E sim, é tão clichê quanto parece.

Cinco curiosidades inúteis
1ª - O diretor, Steven E. de Souza, começou sua carreira trabalhando com séries e chegou a dirigir um episódio do clássico “Contos da cripta”, o que explica seu talento para fazer coisas horríveis.
2ª - Originalmente Ryu seria o protagonista do filme, mas...
3ª - O teor retardado do filme tem muita relação com a faixa etária do público alvo, pois caso houvesse muita violência “A batalha final” teria que ser restringida a idades maiores, atrapalhando na bilheteria. O sucesso do filme - assistido por gente de todo tipo - mostra que isso foi um erro: retardamento não tem idade.
4ª - Para fingir um idioma próprio de Shadaloo, algumas falas são ditas em esperanto. Vi komprenas?
5ª - A Capcom solicitou a ONU a autorização para utilizar seu nome na trama, o que foi negado. Por isso, ao invés de Organização das Nações Unidas, temos no filme as Nações Aliadas, o que, convenhamos, dá na mesma: as duas são “de mentirinha”.

Guerra justa

Existe alguém
Esperando por você
Que vai comprar
A sua juventude
E convencê-lo a vencer...

(A canção do senhor da guerra, Legião urbana)

Walter Benjamin, um importantíssimo filósofo e teórico da história do século vinte, conta-nos em seu ensaio “O narrador” que a partir do surgimento da fotografia e de seu uso ilustrativo em jornais, a maneira pela qual as pessoas passaram a receber notícias da guerra se modificou. O motivo é interessantíssimo: quando o conflito não é mais pintado num retrato como obra da criatividade do artista, conforme ele deixa de ser fruto do engenho particular e muda para uma forma que se pretende real, as pessoas param de idealiza-lo. Em outros termos, quando se passa a estampar - ao invés da ilustração - uma foto “real” da guerra, os leitores veem o que exatamente está envolvido num conflito desse gênero e, principalmente, que a realidade não permite o embelezamento da ficção. Diante de fotos de crianças em pedaços, aqueles discursos pomposos sobre guerra justa soam como baboseira.
Tendo isso em mente, é fácil perceber que a guerra retratada em “A batalha final” é aquela dos livros de história mais safados, nos quais os inimigos estão muito bem definidos e o bem vence o mal no caminho da liberdade. Por sinal, nele há toda uma aura da segunda guerra mundial que não está ali por acaso. Apesar disso, ao se apoiar num discurso tão raso, “A batalha final” revela suas próprias contradições que depõem contra o que pretende defender. Consequentemente, é possível critica-lo com base numa investigação dos próprios argumentos usados na obra. Em alguma medida, é isso que tentarei realizar aqui.
Let’s rock, baby!

Guerra é paz

As questões de “A batalha final” se tornam mais interessantes conforme olhadas a partir do contraste entre o protagonista, Guile, e seu antagonista, Bison. Se adotarmos o argumento do filme a diferença entre ambos será óbvia: Guile é adorado por seus subalternos, representa a liberdade contra a opressão e deseja resolver tudo de modo honrado; já Bison compra seus aliados, representa a tirania e a coação e não se importa de usar quaisquer métodos para vencer. Caricatural e maniqueísta, como você pode ver. Porém, não acatemos o que o filme nos sugere, escolhamos uma análise mais crítica.
Comecemos pelo vilão. Bison é um tipo de ditador que tomou o poder político do país (Shadaloo) por meio da força. A partir daí erigiu para si uma grande estrutura de força que faz a manutenção desse poder: ele possui um exército, um plano para reformular todo o país de maneira conveniente, um modo de chantagear outras nações, cientistas desenvolvendo armas para si, enfim, o futuro parece promissor para esse prodigioso genocida. Um detalhe, porém, escapa a caracterização de Bison como vilão e o faz um personagem mais interessante que apenas um megalomaníaco malvado; é o seguinte: ele quer pacificar o mundo. O quê? Isso mesmo, leitor, ele quer pacificar o mundo, isto é, quer por meio de suas ações provocar a paz mundial. O planejamento é de fácil compreensão: primeiro dominará o mundo pela guerra, depois forçará a paz entre os povos, por fim, quem se opuser a ele será morto, destarte, ninguém mais se levantará contra ele e teremos a paz.
Rememorando o que bem disse George Orwell, guerra é paz.
Por isso, não é por acaso que o insulto o qual Bison considera inaceitável receber é o de louco. Por que seria louco, afinal? Ele não tem um objetivo nobre e está pondo em prática uma maneira de atingi-lo? O discurso de Bison é coerente (ou sedutor) em algum grau, mesmo que suas ações nos façam questioná-lo. Trata-se da defesa do uso de qualquer meio para atingir um fim. Ele pacificará o mundo embora “quebrando alguns ovos”, causando um probleminha aqui e ali os quais são plenamente justificáveis graças ao fim que se busca atingir. Podemos acusá-lo de cometer vilanias, mas não de ter más intenções. 

Do lado oposto, Van Damme, ops, Guile é o herói, o homem corajoso; aquele que vencerá o inimigo e... Restaurará a ordem. Mas qual ordem? A mesma que produz desigualdade e tragédias no mundo e incutiu num sujeito chamado Bison o desejo de produzir a paz (tá sentindo um cheiro?). Apesar dessa contradição, o herói jamais questiona sua condição e dever; ele é o soldado perfeito na execução de suas tarefas, que se arrisca sem medo e cujas ações são exemplares. Quando observado mais de perto, entretanto, notamos que isso não é tão rígido assim - certa feita Guile admite que está a lutar não por algum sentimento nobre, mas pelo desejo de vingança. Dizendo de outro modo, enquanto o vilão tem um objetivo maior que orienta suas ações, o herói é movido simplesmente por vingança (você não tá sentindo? Um odor esquisito...). A paz de Bison é motivo de guerra para Guile e a paz de Guile é motivo de guerra para Bison. Ambos são defensores igualmente da guerra e da paz, só que discordantes quanto ao significado dessas situações.
Olhando assim de perto a diferença entre eles diminui, não? Principalmente quando vemos que a consequência prática desse desacordo é um número grande de pessoas que morre defendendo um ou outro lado da disputa sem sequer saber que, seja qual for o resultado da batalha final, ele nos levará a um mundo cuja paz ou guerra será motivo para novas tragédias.
Reconheceu o cheiro? É de hipocrisia.

Apologias! 

E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada.

(Toda forma de poder, Engenheiros do Hawaii)

Partindo do que já afirmei, tanto o lado da aliança quando aquele da Shadaloo defendem tanto a guerra quanto a paz. Consequentemente, o filme promove todo o tempo o conflito como uma posição defensável a fim de obtermos a pacificação. O contraditório é que, embora o protagonista represente esse discurso, o vilão também o faz, o que acaba servindo para mostrar o quão falho é esse discurso.
            Seja como for, somos atingidos regularmente por algum tipo de apologia da belicosidade, vindo de ambos os lados da disputa.
De um lado, Bison promove o uso da tecnologia para atingir seus objetivos e encara isso como um avanço humano rumo a ele. Pouco importa que haja um preço a se pagar, pois não será ele a saldar essa dívida. Com isso, o ditador não se importa com qualquer moral, ou que o uso da técnica possa fazer pessoas sofrerem; a regra é: se convier a pacificação, à guerra, então está justificado. A propósito, nesse contexto é que surge o personagem de Blanka, uma fracassada tentativa de soldado geneticamente alterado, que deveria ser uma arma biológica do ditador conta as Nações Aliadas. Que isso ultrapassa umas boas dúzias de limites éticos, todos sabemos, porém tais problemas são invisíveis para Bison; personagem eticamente cego. Para ele o que importa é vencer; é irrelevante se tivermos que usar a ciência para produzir armas que façam pessoas sofrerem, que as deforme irreversivelmente. Blanka, gás mostarda, Iroshima, Nagazaki, que diferença faz?
Do lado contrário, Guile diz ao cientista o qual criou Blanka que ele não teve culpa, já que não teve como impedir a transformação de Blanka no monstro que veio a ser, ao que o homem responde: “Quando homens bons não fazem nada, já é mal suficiente.”. Trata-se, pois, de uma crítica à inação, a passividade. Aquele que vê o mal e não se coloca contra ele por meio de ações, acaba contribuindo tanto quanto aquele que o pratica. Num filme cuja história se dá numa situação de guerra, todavia, essa mensagem ganha tons muito particulares, acabando por se tornar uma apologia do engajamento não contra a guerra, que é um meio para a paz e, portanto, justa, mas contra aquilo que está identificado como um mal inegável, isto é, Bison e a Shadaloo, um dos lados do conflito. Vá a guerra combater o mal. Inclusive, nas últimas cenas, a coisa se torna tão desavergonhada que Guile pergunta a Ken e Ryu: “Já pensaram em se alistar?”. 
E você, leitor, já pensou em se alistar? 

Devo apoiar meu líder numa invasão estrangeira?

Não, definitivamente não. Porém deve assistir “Street fighter a batalha final” se puder. Eis os motivos:
Primeiramente, porque esta é mais uma resenha que ganha o carimbo: “impossível abranger todas as questões que o filme levanta”, melhor dizendo, a obra é bem maior do que essa redução ao conceito de guerra a qual esbocei aqui. Segundamente, porque, conquanto tenha todo esse discurso tenebroso, ele é ótimo como entretenimento e, mais que isso, como objeto de análise. Finalmente, porque ver Ken e Ryu como traficantes de armas, Van Damme com cabelo barbaramente tingido, Blanka parecendo um Hulk aidético e aquele monte de efeitos especiais que não conseguem disfarçar a aura cafona do filme, é um tipo de prazer o qual você nunca terá de outra forma. Aproveite a chance e press start.

Trailer:


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