sábado, 16 de março de 2013

Resenha: Esta noite encarnarei no teu cadáver


O que é a vida?
O que é a morte?
O que é a existência?
Por que estou fazendo essas perguntas?
Descubra aqui, ou, caso já saiba, leia a resenha com a certeza que esta noite encarnarei no teu cadáver.






Título original: Esta noite encarnarei no teu cadáver
Lançamento: 1967 (Brasil)
Duração: 108 minutos
Direção: José Mojica Marins




Esta noite encarnarei no teu cadáver
O peso de escolher ser livre
  

Você esperou e nós trouxemos finalmente a segunda parte da trilogia de José Mojica. “Esta noite encarnarei no teu cadáver” narra a continuidade da história de Zé do caixão logo depois de seu torpor no cemitério no fim do filme anterior.
Conceitualmente a obra não traz grandes novidades à filosofia do personagem e segue mais ou menos a estrutura narrativa do filme anterior: Zé é apresentado, causa muitos problemas, reina absoluto em suas maldades e, derradeiramente, é atingido pelas consequencias de suas ações tendo seus objetivos ameaçados. Apesar disso, o filme dá um bom desenvolvimento à história e reaproveita os elementos tradicionais do personagem de uma maneira que, aqui e ali, traz pontos aludidos, mas não explorados de Josefel Zanatas, sem se colocar abaixo de seu antecessor.
Do ponto de vista da resenha aqui do Café sobre o filme anterior, a história de Zé acaba sendo, em certa medida, uma grande discussão sobre a servidão através da religião e da superstição, mas igualmente sobre como o personagem escapa disso negando Deus e os valores impostos por outros - os únicos valores os quais ele é capaz de respeitar são aqueles construídos por e para si mesmo. Zé é um homem livre vivendo num mundo servil. Tudo isso foi explicado na resenha anterior, então não retomarei diretamente esses assuntos, entretanto tentarei os expandir conforme o filme nos dê meios para tal. Tanto quanto eu puder, evitarei dizer coisas que somente quem já viu a obra anterior conheça, no entanto, nem por isso deixe de ler a resenha e ver o primeiro filme. Agora vamos adiante.
   

De que tumba veio isso?


O primeiro filme da trilogia “À meia noite levarei sua alma” contava a história do coveiro Zé do caixão, um homem niilista e sem qualquer moralidade, que buscava perpetuar sua existência concebendo um filho.
Já “Esta noite encarnarei no teu cadáver” narra a continuidade da vida de Zé, que quase morreu no fim do filme anterior. Agora, recuperado, ele causa uma série de tormentos na cidade e sequestra mulheres, passando a testá-las a fim de descobrir qual será aquela digna de herdar sua linhagem.


Mais Nietzsche, mais Zé:
a tipologia do fraco e do forte


Como já tínhamos afirmado (aliás, não só nós), há grande semelhança entre as ideias propagadas pelo coveiro Zé e pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Se antes aludimos aquela da ligação cristianismo com a desvalorização do mundo real para a valorização daquele ideal, agora veremos outra que ajudará a nortear esta resenha doravante. Não se preocupe caso o nome filosofia te assuste, pois não é nada excessivamente pedante ou teórico. Apenas fique firme, pois será divertido.
  
  
Repare no cartum do Quino aí acima, ele ilustra bem a tipologia que desejamos esclarecer. Vemos dois personagens contrapostos, em conflito e prestes a duelar, porém, mais que isso, há uma disparidade de forças; um deles é maior, mais bem armado e, por isso, aparenta ser mais forte e propenso a vencer; o outro é menor e sequer pode ver por cima de seu escudo. Quando olhamos seus brasões isso se torna mais explícito, pois enquanto o fraco um exibe uma representação de família, um valor praticamente moral, o forte mostra um leão, como uma espécie de representação da força que usa contra seus adversários. Moral e força, tenham em mente essa contraposição.
Embora o conflito entre fraco e forte se dê, inicialmente, em termos de força, é possível que ele não se resolva desse modo. Apesar da capacidade do forte para vencer, sua força pode acabar vindo a ser inútil caso ele aceite a “provocação” moral inserida na luta, pois o fraco, impossibilitado de vencer pela força, moraliza o conflito, quer dizer, estabelece certos comportamentos como bons (os seus) e outros como maus (aqueles do forte). Isso o torna capaz de confrontar o adversário, porém não nos termos de força, mas de valores. Assim, caso o forte aceite adentrar nesses parâmetros, provavelmente parará de tentar oprimir aquele que é “bom”. Talvez deixe até mesmo de se pensar como forte e passe a se ver como mau ou pretensamente bom.
Em linhas bastante resumidas (e inspiradas nesse video) essa é para Nietzsche a tipologia do fraco e do forte. Não se trata de uma descrição da realidade nua e crua, mas de um tipo de percepção de um norte histórico existente até então.
Voltemos agora ao filme.
Para Zé a moral é a arma dos derrotados, é fruto direto da fraqueza daqueles que só podem se defender dos mais fortes os inserindo numa relação de bem e mal. Através dela os desvalidos criam uma força que reside justamente no fato de que são fracos. Bons são os pobres, os doentes, os misericordiosos, em suma, os derrotados. Pensando dessa maneira podemos facilmente compreender o motivo do desprezo do personagem por todos aqueles que se ligam a religião, a moralidade, aos sentimentos ditos nobres e coisas do gênero. Zé não é mau, mas forte. Ele sabe perfeitamente qual é o jogo dos miseráveis e escolhe se colocar fora dele e exercer sua força sobre os demais sem se importar com o modo pelo qual eles o representarão. A associação de Zé com o ateísmo, portanto, não é relativa a uma escolha pela mal, no entanto de uma escolha pela imoralidade, isto é, pela falta de uma referência moral pré estabelecida, posta por outros e aceita impensadamente como uma arapuca, Zé escolhe o ateísmo porque deseja viver na liberdade e não na servidão.
  
  
A partir disso é possível explicar duas coisas que surgem no filme: a valorização das crianças e o rapto das moças.
Comecemos pelas crianças. Para o personagem elas são as representantes de um valor que ele – e não a religião ou a sociedade – elenca como supremo: a continuidade do sangue, ou seja, a possibilidade de que a vida humana se extenda indefinidamente por meio da produção de outras. Além disso, representam também o estado em que estamos ligados ao instinto e, com isso, isentos dos preconceitos e das superstições do mundo adulto que nos submeterão a poderes externos, de tal modo que nossa capacidade de agir no mundo fica determinada por eles, ao invés de determiná-los. A infância, então, é dos raros momentos de liberdade que temos na vida.
Com isso, podemos entender os objetivos do personagem ao raptar as moças: Zé quer a imortalidade através da continuidade de seu sangue, em outras palavras, quer um filho; no entanto, há agravante nisso: ao invés de simplesmente engravidar uma mulher qualquer, o personagem procura por uma mulher específica, por aquela que seja tão extraordinária quanto ele e que, por conta disso, seja capaz de produzir uma linhagem superior, fundada em pais superiores. Em termos nietzschianos seria como se Zé tentasse criar uma descendência de fortes que jamais se tornarão fracos e morais (obviamente, o filósofo não concordaria com isso, podem dizer, mas estamos falando de Zé e não de Nietzsche).
Para conseguir essa façanha o personagem rapta várias mulheres e passa a testá-las, o que em termos práticos significa que ele deseja descobrir se as moças são fracas (morais, boas) ou fortes (vitoriosas no jogo de forças). Aquela que se mostrar a altura dele, a mulher superior, será “agraciada” por Zé com o benefício de ser a mãe de seu filho, entretanto, as demais... Bem... Veja o filme e descubra. O importante nesse aspecto é que o coveiro não deseja torturar ninguém, tampouco causar mal as moças, mas descobrir se, por detrás da casca de civilidade que cada uma veste, existe uma pessoa miserável ou extraordinária, se, num momento de fragilidade, elas apelam ou não para as superstições e tolices, para as crenças primitivas que irão limitar sua potência e a de seus filhos. Por isso, o teste de Zé é brutal e chocante, ele verifica o extremo do ser humano e não sua superfície. A mulher superior não pode fraquejar diante do sofrimento e do absurdo do mundo. “Sadismo não, ciência”, diz o personagem a certa altura, quer dizer, o que ele traz não é uma tortura vazia, mas um método extremo que faz com que os fatos apareçam claramente,. Nesse sentido Zé é uma espécie de cientista da natureza humana que faz surgir o conhecimento da verdade.
  
O estranho mundo...
  
Há no mundo de “Esta noite encarnarei no teu cadáver” duas maneiras de agir: aquela dada dentro do livre arbítrio, em que podemos escolher entre as opções permitidas pela moral (e por Deus) ou seremos repreendidos por nós e por nossos semelhantes; além dela, há também a via da liberdade, em que qualquer ação é possível porque nada nos constrageria internamente a uma forma específica de agir. É fácil notar que a humanidade está de um lado e Zé do outro, o que tem diversas conseqüências importantes na trama. Uma delas é que o protagonista será julgado todo o tempo – pelo “povo ignorante” do filme, mas igualmente por nós – como uma espécie de monstro. Outra seria que ele está praticamente sozinho contra todo um mundo de imbecis, aliás, um bom motivo para buscar criar um filho. Por isso, nos momentos em que os objetivos de Zé podem ser comprometidos, ele não irá se confrontar propriamente com outras pessoas, mas consigo mesmo, o único capaz de entender suas ações e de se responsabilizar por elas (inclusive, naquela cena vermelha maravilhosa que não irei aludir), além disso, a relação do coveiro com as outras pessoas acaba, quase sempre, sendo uma relação de choque ou de assombro, pois ele é tudo o que os outros não são e não podem ser. Zé tanto pode ser temido quanto admirado, entretanto raramente entendido. O mundo o condena sem o compreender.
Apesar disso, o coveiro afirma que a verdade irá aparecer e, de fato, ela aparece, mesmo que as pessoas sejam burras demais para a reconhecer. Vou explicar melhor.
No princípio da história Zé está sendo julgado pelos crimes do filme anterior (assassinato, estupro, tortura, enfim) e, como é óbvio (ou não haveria história), está também sendo inocentado deles. Apesar disso, o homem é culpado de cada uma das acusações até o último fio de cabelo, como bem sabemos. Logo, a justiça falhou. Anotem isso e prossigamos. No correr da trama vemos que Zé comete um monte de outros crimes sem que pague por eles, porém, mais que isso, o bandido tenta manipular a justiça para que ela sirva aos seus objetivos, em outras palavras, além de promover um terror enorme na cidade e cometer vários crimes, Zé ainda tenta usar a lei para ajuda-lo nisso. Não é algo muito diferente do que vemos ocorrer hoje em várias esferas da vida política, todavia, para o filme isso tem um significado maior que meramente expor um personagem cretino. Sendo o protagonista um fascínora ou não, o fato é que no universo de “Esta noite” a lei é uma espécie de poder cego que pode ser direcionado para qualquer um desde que se aplique o impulso necessário sobre ela. Colocando em outros termos, a espada da lei pode ser brandida contra qualquer pessoa, inclusive inocente, desde que venhamos a manipula-la do jeito adequado.
Para aqueles que vivem dentro do livre-abítrio isso é nefasto, já que nem o mecanismo que assegura o nosso modo de vida consegue garantir que ele exista segundo nossa concepção. Nossa justiça, essa coisa em que acreditamos para justificar nossa maneira de viver, pode ser mais ou menos justa de acordo com a força que se aplica nela, ou seja, ela é burra e cega, inapta para aquilo que existe. Então para que serve? Zé do caixão nos dirá: para garantir nossa servidão. E por que ela continua existindo? Zé também responderá: porque somos bovinos, ignorantes e inferiores.
Assim, quando o personagem começa a forçar o mundo a agir como ele acha conveniente, acaba também revelando a superstição, a tolice dos seres humanos. A partir disso, o que as pessoas farão não é tentar sair de sua condição ridícula, aprendendo com a verdade que se torna mais nítida, mas é tentar destruir o coveiro para que a paz da servidão volte a reinar. Pare de me dizer essas verdades e morra, em nome de Deus. Obviamente, as pessoas não conseguem enxergar o que está se dando, pois sequer são capazes disso, elas apenas notam que Zé trouxe problemas e, com isso, deduzem que ele é a origem deles. Reúnem-se em bando, como uma multidão de bois e vacas prestes a enfrentar um moedor de carne, e vão “fazer justiça”.
  
Devo morrer para ver se alguém encarna no meu cadáver?
  
Com certeza, caro leitor. O segundo filme da trilogia sensacional de José Mojica merece todo tipo de ação maluca feito em seu nome e, se for pra alguém morrer em nome da causa, melhor que seja você e não eu.
Tentei aqui apenas esboçar os conceitos que estavam por detrás da obra e as complementações que o filme faz em relação a mitologia do personagem Zé do caixão que já conhecíamos. Por isso, deixei de fora, tanto por conta do tamanho da resenha quanto para não “explicar o filme” ao invés de mapeá-lo, uma série de coisas as quais você poderá ter o prazer de ver por si mesmo e sem spoilers.
Apesar de simplório em vários aspectos, o filme não tem uma proposta trash, nem uma falta de proposta que o faria trash, embora seja considerado por muita gente desse modo. Mojica não gosta que o classifique assim e está correto: sua filmografia é pobre de grana, mas rica de uma criatividade absurda que vence essas carências e não se dobra a elas. Sempre será possível falar de elementos trash, obviamente, mas o principal motivo de o resenharmos é que ele inicia o terror, a liberdade de cada um fazer arte como achar que deve, o confronto aos monopólios do cinema e, claro, porque é um filme sensacional que faz qualquer franquia de hoje em dia corar de vergonha.
Por fim, dizendo o óbvio, o final de “Esta noite”, como é bem conhecido, foi estragado pela ditadura, infelizmente. Inseriram lá umas baboseiras que só mostram como os censores eram um bando de analfabetos cretinos. Todavia, isso não apaga os milhares de méritos do filme que merecem mais ser assistidos que descritos, portanto, não perca tempo e veja já.

Trailer

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