sábado, 30 de março de 2013

Resenha: Lua de cristal




Depois de ver filmes sobre massacres, eletrodomésticos assassinos, fantasmas, lobisomens, ateus homicidas, e tantas coisas mais, vocês, leitores, se acostumaram finalmente aos conteúdos deste blog malvado. Sangue, café, filosofia, dentes arrancados, literatura, serras elétricas e risadas malignas; hoje, tudo isso faz parte de suas vidas.
Admitam: o Café com Tripas fez de vocês pessoas melhores.
Não, não precisam dizer obrigado, apenas depositem sua gratidão na conta do blog.
Apesar de todas essas coisas, tenho percebido vocês meio acomodados, não? Após ver aqui seres malignos do outro mundo, palhaços cruéis, assassinos e bizarrices de toda sorte, já estão aí subestimando este bloguinho, acreditando que nosso padrão de “qualidade” está estabilizado, que não seríamos capazes supreender-vos novamente com outro filme que seja tão vergonhoso, mas tão vergonhoso, que não é melhor que ninguém nos veja vendo lendo sobre ele, não é?
Pois bem. É para atestar seu erro que o Café, nesta semana de discussões sobre o que nos mantém vivos, vai diretamente na raiz das vergonhas brasileiras em busca de um filme há muito enterrado longe de nossos olhos, diga-se de passagem, injustamente. É isso mesmo, como vocês podem ver no título deste post, este blog joga pesado e não põe limite para suas próprias baixezas, por isso, baixinhos e baixinhas, chamemos para a superfície os nossos sentimentos mais profundos e apaixonados, as lindas paquitas, os refrões inesqueíceis (“Tudo o que eu fizer, eu vou tentar melhor do que já fiz”), os patinhos perdidos, também as letrinhas, o L de liberdade, o U de universo, A de amor, e, claro, o X de Xuxa.





Título original: Lua de cristal
Lançamento: 1990 (Brasil)
Duração: 90 minutos
Direção: Tizuka Yamasaki






Lua de cristal
Apesar de tudo, buscando a sorte e sendo feliz

Você aí, leitor do Café com Tripas, certamente deve estar a dois passos do serviço de atendimento ao cliente do blog se perguntando como ele pôde decair tanto. Eu te entendo. Juro. Todavia, como já tínhamos dito na resenha de Ernest: o bobo e a fera e vou repetir: nós do Café entendemos o trash como um elemento, uma característica existente em vários tipos de filmes, inclusive aqueles infantis; além disso, filmes para crianças carregam várias ideologias que, dado o fato de que são dirigidas a um público “inocente”, muitas vezes não são percebidas ou tidas como importantes de se decifrar. Assim, escolhemos abordar obras inusitadas, não dirigidas somente ao público amante do trash-tripas-morte-nojeira tentando descobrir o que é que elas escondem por detrás de um rosto bonitinho, ainda que seja o rosto da Xuxa.

M de quê?

Maria, moça simples do interior, muito parecida com certa apresentadora de TV, vai à cidade grande em busca de seu sonho: tornar-se cantora. Para conseguir o que almeja ela tem que enfrentar situações difíceis - como uma família que a despreza, uma cidade hostil - e descobrir como se harmonizar com num novo mundo, que poderá lhe dar tudo o que quiser e, talvez, até um grande amor.

Advertência a você, leitor depravado

 

Ok, pessoas, eu sei o que se passa nas cabecinhas borbulhantes de vocês: estranho amor, adolescência, fantasias, Xuxa e Exu, lindas pernas, sexo, disco girando ao contrário, Satanás. Sei de tudo isso e, certamente, iremos o futuro acertar nossas contas com esses assuntos, aliás, Amor estranho amor - o tal do filme “de sexo” da Xuxa, caso você tenha chegado no Brasil a cinco minutos ou seja simplesmente alheio ao mundo – é uma obra que, por mais de uma vez, quase virou assunto do dia aqui no Café. Porém, hoje não é esse dia, o que significa que vamos mesmo falar de Lua de cristal, ou seja, especificamente de um filme e não de toda a mitologia que envolve sua protagonista. Não me venham com choradeiras então.

Sociedade, infância e urbanismo

Lua de cristal, por mais incrível que pareça, é um filme muito bem executado. Ainda que seja vergonhosa a lembrança que temos dele, reassisti-lo foi bem surpreendente para mim que não esperava encontrar uma técnica tão bem executada. Mais tarde descobri que já tinha visto outros trabalhos de sua diretora, todos muito bons, o que me ajudou a entender a qualidade do filme. Obviamente, quando digo que é um filme de qualidade, não estou forçando nossas amizades, amigos leitores, sugerindo que vocês devam trocar uma sessão do último filme do David Lynch para ver Xuxa na TV - não é isso; o que quero colocar é que, sendo um filme infantil estranho, Lua de cristal tem uma ótima execução técnica. Isso não muda o fato de que se trata de um filme infantil da Xuxa, logo, pode ter efeitos nocivos sobre seu bom gosto.
Com tudo isso, a obra tem alguns aspectos bem interessantes para quem se liga na relação “arte e representação de contexto histórico”, por exemplo. Ela é infantil, mas não disfarça as conotações sexuais das cenas, a constante ameaça de estupro pairando sobre a protagonista, não deixa de ter golpes que fazem a vítima cuspir sangue, entre outras coisas. Se, de um lado, podemos pensar nisso como sendo uma marca negativa do filme, dizendo que se trata de uma obra sem vergonha que desvirtua as crianças desde cedo, podemos também, de outro, conceber que haja uma mudança substancial do conceito de infancia tido na década de noventa e o de hoje. Quando vejo certos filmes infantis da atualidade, sejam aqueles vindo dos farrapos dos Trapalhões ou até da própria Xuxa, sinto que algo se perdeu de lá pra cá e que, hoje, parecemos considerar nossas crianças mais burras que naquele tempo.
Passando para outro lado da discussão, o filme mostra claramente o reflexo de uma sociedade em que a classe média começa a ganhar poder e a desejar expressar essa distinção social através de seus grandes poderes: o de trabalhar e o de consumir. Consequentemente, a trama está repleta de menções a cultura vigente no período, a das lanchonetes e shopings que passavam a pipocar nas capitais, onde jovens brancos se encontram para tomar milk shakes, sanduíches, paquerar e conversar sobre coisas da moda, em suma, tudo aquilo que era transmitido pela televisão e cinema da época como sendo jovem e, consequentemente, legal. Se num filme como Cinderela baiana (por sinal, com outra loira) há uma propagação de valores bem populares, retratando-se a pobreza como uma espécie de estado digno do ser humano, que se torna ainda mais elevado conforme as pessoas se “dignificam” ainda mais através da labuta; em Lua de cristal, o trabalho não é uma espécie de via da elevação moral, mas um caminho para que cada tenha o dinheirinho que lhe permitirá alcançar seu sonho, a casa própria, o carrinho popular, ou mesmo a carreira de cantora. As questões dessa obra, portanto, são bem mais urbanas e midiáticas que aquelas de Carlinha, rainha não dos baixinhos, mas dos axézeiros.

Maria das Graças ou Xuxa?

Vamos explorar um pouco mais dos significados sociais do filme.
Logo na primeira cena vemos que a mãe de Maria, mesmo sendo uma velhinha pobre e sem recursos, dá à filha grana para que ela inicie a vida na cidade grande. Aliás, essa é uma cena ótima que, com poucos enquadramentos de câmera, consegue explicitar ao telespectador qual é a história que ele verá em seguida. Para nós, que, no entanto, vemos mais longe que isso, ela traz alguns elementos extras.
Primeiramente, o nome da protagonista é o mesmo da “atora” que interpreta a protagonista, ou seja, somos induzidos a pensar que a história é, em algum grau, a biografia da moça, o que faz com que estimemos a personagem com a mesma simpatia que temos pela cantora e vice e versa; mais que isso, o nome Maria não é só o nome oficial da Xuxa, mas também o nome de 98% das mulheres com nomes em português ou espanhol (os outros dois devem ser Carolina e Ana), quer dizer, qualquer mocinha – Maria Eduarda, Ana Maria, Maria Dolores - pode facilmente se identificar com a protagonista já pelo nome
Em segundo lugar, temos uma alusão a condição dos despatriados - estrangeiros, imigrantes, enfim, daqueles que estão fora de sua terra tentando conseguir algum reconhecimento - usada de maneira a ganhar nosso coração. A mensagem é a seguinte: a protagonista é uma coitadinha, olhe que triste ela se separando da mãe e vivendo sozinha num mundo hostil, tenha pena dela, espectador, pois ela está fazendo um grande sacrifício para ser reconhecida, reconheça-a, torça por ela.
Por fim, a cena dá um horizonte de progressão para o filme, em outras palavras, ele diz a nós qual é a aléia pela qual a protagonista irá caminhar. Maria - qualquer uma delas - tem um sonho e a trama narrará sua vida até a realização dele. Se já temos alguma compaixão pela personagem dados os itens anteriores, esse elemento derradeiro nos fará querer saber, afinal, se ela vai conseguir ou não o que quer. Esse talvez seja um dos aspectos principais do filme, vou me demorar um pouco mais nele.

Mensagens

Repetidamente Maria tem um sonho em que está na floresta encantada se divertindo com seres mágicos (não, não cabe malícia nessa frase). Numa dessas viagens, um velho - que mais tarde saberemos ser seu professor de canto - diz a ela que os seres mágicos, embora pareçam não existir mais no mundo, continuam por aí disfarçados entre gente comum, e que, se procurados atentamente, podem ser reconhecidos.
A ideia aqui é que há algo de bom para além da aparencia simples das coisas, que há mistério e magia neste nosso mundo cinza, que o cotidiano chato em que vivemos pode ser ultrapassado para adentrarmos no fantastíco, no onírico, que podemos vencer uma situação adversa e conseguir nosso final feliz, o que tem tudo que ver com a situação da moça. Se, de um lado, Maria tem um desejo, de outro, o mundo parece querer nega-lo. É aí que entra a tal da lua de cristal e, efetivamente, a grande mensagem do filme. Quando Maria está vulnerável por ter sido pisada e atingida, a lua bonitona lá no céu surge como uma espécie de horizonte feliz que ela pode admirar, notando nele uma beleza distante que, tanto a inspira a continuar, quanto a suportar o que há de ruim na vida. É a representação da força que impede que Maria desista da vida apesar de tudo o que há de complicado nela. A moça conversa com a lua como quem dialoga com deus em tempos sombrios, vendo nela um tipo de luz que brilha apesar de toda a escuridão do mundo (paguem um pau pra minha retórica). É como se ela sempre mantivesse um tipo de espaço para a fantasia que ajudasse a manter vivo seu sonho enquanto a vida está uma droga. Basicamente, é essa a mensagem do filme e também da letra que o anima.
Se vocês considerarem isso por um lado mais social, verão que esse tipo de ideologia combina bem com o pensamento de um povo que, vivendo uma vida desgracenta, espera conseguir o que deseja pelo trabalho e esforço, mesmo que para isso tenha que enfrentar de uma repetição insatisfatória de labuta, stress e desencanto com as pessoas. Se bem me lembro, Lua de cristal foi um sucesso danado, não é?
O fato de sabermos desde o princípio do filme que Maria vai conseguir o que quer e se tornar cantora (tá, não uma graaaaaande cantora, mas ainda assim uma cantora de sucesso) só faz com que nos compadeçamos ainda mais de sua situação triste. Ninguém quer a Xuxa sofrendo, afinal.
A partir desse ponto podemos problematizar algo que o filme não se preocupa muito em considerar: por que somente Maria tem sonhos, e mais, por que só ela consegue atingi-lo?
Não vou me estender muito nisso porque seria colocar teoria social num filme que, evidentemente, não está preocupado com isso, mas nesse aspecto a mensagem principal do filme de que sua protagonista representa algo que pode ser vivenciado por todos (e que, na verdade, é a representação do sonho de todos) fica um tanto prejudicada dependendo da maneira como é considerada. Vou explicar melhor, mas para isso é preciso falar de outra coisa e em seguida volta a esse assunto. Façamos isso.


Para falarmos do motivo pelo qual Maria é especial, quer dizer, por que ela sonha e consegue o que deseja enquanto os outros apenas se contentam em viver dentro de seus cotidianos, é preciso ressaltar que a personagem é constantemente elogiada como uma espécie de princesa Disney. Maria é uma princesa, o que no universo de qualquer menina que tenha crescido depois da segunda guerra mundial é um grande elogio. Ao chegar na cidade, por exemplo, ela esbarra em ninguém menos que Sergio Malandro, aqui disfarçado com o nome de Bob. No encontrão, o rapaz (nesse tempo ele era mesmo um rapaz) acaba ficando com o tênis da moça, uma espécie de alusão à cinderela, o que imediatamente sugere que ela seja a princesa e – yeah, yeah, é isso mesmo que você pensou – ele o príncipe. Mais tarde temos também referências a maçã dada à branca de neve, seu sono que é quebrado pelo beijo do amor verdadeiro, espelho espelho meu e coisas mais. No geral, tudo isso converge para que acreditemos que a vida da Xuxa – ou seja, Maria, ou seja, toda moça que esteja vendo o filme - é um conto de fadas do qual ela própria é a protagonista. O que nos leva a conclusão de que a protagonista é mesmo alguém especial, destacada, diferente das demais.
Nesse ponto podemos voltar a questão que antes coloquei, quer dizer, por que só Maria sonha e consegue as coisas? Podemos, de início, responder que a moça é especial e que por isso só ela tem esses ímpetos, porém, essa seria uma resposta bastante aristocrática do filme e prejudicaria sua apologia do “quem quer consegue”. Talvez não haja uma boa resposta para isso, mas, de qualquer modo, arriscarei uma: só Maria vai longe porque só ela tem ingenuidade o bastante para não notar o quão repressor é o mundo, pois, se notasse isso, desistiria e passaria a viver como todos os demais, quem sabe sendo apenas uma garçonete, uma cantora de churrascaria, uma atriz fracassada com alguns longas ruins no currículo... Enfim, eu não sei, se tiverem sugestões, coloquem aí nos comentários.

Devo abrir a janela e olhar a lua de cristal brilhando no céu?

Pois bem. Terminando essas considerações bem gerais sobre o filme tenho que repetir aquela velha história aqui do Café: Lua de cristal é mais um daqueles filmes que tem um monte de coisas para se abordar, sendo que escolhemos tocar aqui somente algumas delas. Se quiser mais que isso, veja o filme.
Agora falando efetivamente da experiência de assisti-lo, dizer que Lua de cristal é bom ao ponto de merecer ser revisto seria algo maluco até para um blog como este, porém, naquilo que ele pretende ser (uma obra infantil da Xuxa), o filme é ótimo, ou, para ser bem preciso, é competente, por mais brega que sejam seus clichês, sua história e tudo o mais.
No geral, trata-se de um filme de mensagem, digamos assim, ele sacrifica a coerência e insere o absurdo na história a fim de melhor expressar o que quer: as cenas ganham importância não por si mesmas, mas porque transmitem uma ideologia que o telespectador rapidamente capta, há cortes de tempo que constroem sequencias incoerentes temporalmente (como aquela que, mostrando uma única tarde, Maria passa pela experiência de vários empregos), mas que, dentro do universo do filme, fazem todo sentido e, mesmo os personagens enquanto indivíduos singulares são submetidos a isso, havendo quem seja nomeado meramente por sua função na história, como o Mauricinho, o rato, o professor de canto chamado Uirapuru... Vocês entenderam.
Se você gostar muito desse tipo de mensagem, curtir muito a Xuxa ou amar de verdade sua infância, talvez queira revisitar esse filme como eu fiz, porém a todos os demais tipos de pessoas eu recomendo o seguinte: atualmente, nenhum ser humano tem a necessidade (se é que um dia essa necessidade existiu) de assistir qualquer coisa da Xuxa. Vivam bem sem ela e sejam felizes.


Trailer

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