Algumas comidas acabam caindo no
gosto popular de uma hora pra outra gerando um boom, não apenas alimentício mas
também comercial, em que mais e mais
empreendedores tentam lucrar com comidas da moda. Assim foi com as paletas
mexicanas, os hambúrgueres gourmet, food trucks e, principalmente, os
restaurantes japoneses. Por um lado, temos um movimento interessante no cenário
gastronômico, no entanto, por outro, existem muitos espertinhos querendo apenas
fazer dinheiro fácil vendendo comida ruim. Tendo isso em vista, é bom prestar
atenção onde vai comer, afinal, acho que ser comido por sushis assassinos não
está nos seus planos de sábado a noite.
Título
original: Deddo sushi
Lançamento:
2013 (Japão)
Duração:
92 minutos
Direção:
Noboru Iguchi
Dead Sushi
Rodízio de carne humana
Alimentos assassinos não são
novidade aqui no blog, pois já falamos sobre Biscoito Assassino,
entretanto Dead Sushi é um filme que, apesar dos moldes de trash japonês
que aposta nos absurdos e no cômico, consegue dialogar – intencionalmente ou
não – com a relação moderna que as pessoas mantém com o alimento.
Mesmo um filme produzido em uma
cultura diferente, do outro lado do mundo, ele é capaz de dialogar com uma
situação presente em algumas cidades brasileiras, sobretudo São Paulo. Não digo
que a crítica e as referencias contidas nele sejam intencionais, bem, talvez
até sejam na cultura oriental, entretanto, nossa vivencia como brasileiros e
compreensão sobre a situação gastronômica daqui nos permite fazer uma
co-relação entre um filme japonês e o simples ato de comer do brasileiro.
Keiko, filha de um famoso chef de
sushi, foge de casa após não atender as expectativas do pai. Ao conseguir
emprego em uma pousada, ela percebe que seus talentos com o sushi são maiores
do que o que seu pai dizia. Simultaneamente, um grupo de pesquisadores se
hospedam na pousada devido a fama do sushi da casa, mas eles não esperavam que
um antigo companheiro de trabalho planejasse uma vingança transformando simples
sushis em monstros comedores de gente.
Sushi, mulheres e o patriarcalismo
Dead
Sushi começa com Keiko
sendo treinada por seu pai para se tornar uma mestre do sushi como ele. Tanto
as cenas quanto as falas deixam claro que o preparo do bolinho de arroz com
peixe é muito similar ao das artes marciais, na qual o aprendiz precisa mostrar
dedicação, comprometimento e constante treino, porque os resultados só irão
surgir depois de anos de dedicação.
Todo esse treinamento recebido por
Keiko parece não alcançar os resultados esperados, não porque seus sushis são
mal feitos, mas por seu pai sempre encontra defeitos no seu sushi. Entre os
defeitos apontados está o fato de Keiko ser mulher, e, conseqüentemente, passar
seu cheiro para o sushi.
Com isso, a personagem se sente
culpada pela própria sexualidade e decide fugir, tentar a vida em outro lugar e
não decepcionar mais seu pai. Uma cena com menos de 5 minutos consegue nos
dizer muito sobre a importância do sushi para a cultura japonesa e o papel da
mulher nessa sociedade.
Pessoalmente, desde que eu comecei a
escutar a falar sobre comida japonesa eu escuto a teoria de que mulheres não
podem preparar por possuírem o corpo mais quente e, consequentemente,
influencia no sabor do sushi. Mas até que ponto isso é verdade e não apenas um
desculpa para manter as mulheres longe desse símbolo gastronômico e cultural
japonês?
Uma pesquisa rápida na internet mostra
que é normal as mulheres possuírem corpo mais quente durante o período fértil,
mas essa temperatura é irrelevante se considerarmos que o manejo do peixe
ocorre durante 2 ou 3 minutos. Além disso, cada corpo é um corpo, minha mão é
muito mais quente do que de muitas garotas que conheço e tenho a leve impressão
de que eles não medem a temperatura do chef, apenas julgam pelo sexo.
Esse mito foi construído, me corrijam se
eu estiver errado, pelo fato do sushi não ser um prato cotidiano do Japão, ele
era apenas consumido em datas comemorativas. As mulheres, antigamente, tinham
um papel essencialmente doméstico e dependente do marido, sendo assim, caso
elas começassem a preparar sushis nos eventos elas começariam a ter sua própria
renda e acabariam se tornando independente dos maridos. Ou seja, era mais
conveniente criar uma explicação para afastar as mulheres do sushi do que
permitir uma mudança na estrutura social.
Outro ponto que não se aplica apenas ao
filme mas também a sociedade como um todo é o fato de Keiko em nenhum momento
desafiar o pai ou os mitos criados na preparação do sushi. Ela apenas os aceita
pelo fato de que desde de pequena vive em uma sociedade que colabora com essa
idéia. Por melhor que a moça seja como cozinheira, ela foi condicionada a
acreditar em todos os mitos socialmente criados para mostrar o local da mulher
na sociedade. Esse fato está muito próximo de nós no Brasil de hoje, em que
muitas mulheres simplesmente aceitam a sua “condição inferior” porque foram
criadas em uma sociedade patriarcal que fazem com que acreditem na diferença
entre homens e mulheres. Muita gente (entre elas, muitas mulheres) ainda defendem
(ou corroboram com) as diferenças salariais, com o mito de que a mulher é menos
capacitada pra determinados serviços, que a mulher que tem que cuidar da casa
ou, pior ainda, que elas merecem todos os abusos sofridos pelo marido. Todas
essas coisas há muito tempo já foram desmentidas, mas ainda permanecem na
sociedade na esperança de manter um sistema dominantemente masculino.
Colocando o peixe em seu
lugar
Decepcionada com sua “inabilidade”
para as artes do sushi, Keiko foge e arruma um emprego onde ela, como mulher,
se enquadraria melhor: o de empregada em uma pousada. Ela larga as facas e
aceita sua condição de apenas servir.
Assim que começa a trabalhar na
pousada, um grupo de executivos de uma empresa farmacêutica se hospeda no local
devido a fama de sua comida, recomendada por diversos críticos gastronômicos.
Um detalhe interessante de notar é que todos os membros dessa indústria são
homens, com exceção da secretaria. Mais uma vez a dominância masculina se
mostra presente mais uma vez ligado a posição das mulher no mercado.
O filme, apesar de tocar nesse lado do
machismo, também consegue dialogar com o papel social do alimento.
Paralelamente ao que ocorre na pousada existe uma cena na qual um casal de
jovens está caminhando quando observam um sem teto comendo sushi, ficando tão
ofendidos com a situação que o garoto acaba agredindo o mendigo – nada mais
justo não é? Como um pobre se atreve a comer a mesma comida que eu? Enfim,
trataremos isso daqui a pouco, o que você precisa saber por enquanto é que o
casal acaba tendo a cabeça atravessada por uma lula.
Voltando a pousada, os novos clientes
estão loucos esperando para provar a refeição tão comentada. Na hora de servir,
o “chef”, cheio de pose, faz os sushis sem nenhuma novidade e sem fazer nada fora
do convencional a não ser o marketing e a apresentação fingindo ser algo
grandioso, mas mesmo assim, todos aplaudem, afinal, ninguém estava ali pelo
sushi em si, mas sim pelo espetáculo. Ao provar, o líder do grupo fala que é
algo fabuloso, o melhor que já comeu.
Tudo muda quando nossa protagonista deixa
escapar um comentário sobre o paladar do grupo e a técnica do chef. Pressionada
sobre sua insolência, ela acaba desmascarando o alimento e mostrando que os
clientes foram subestimados, depois da revelação, a opinião sobre a comida
também muda, algo que era delicioso passa a ser uma comida de baixa qualidade.
Como a própria Keiko diz: “vocês não passam de falsos gourmet”
A partir desse momento o filme se
transforma em uma mistura de artes marciais, filme de zumbi, com sushis
assassinos e toda a bizarrice característica do trash japonês.
Com isso em vista vamos sair um pouquinho
do Japão infestado de sushis assassinos e vamos observar a nossa São Paulo de
2015 (falo SP porque é o lugar que conheço, mas creio que esteja acontecendo em
vários outros lugares).
Bom, ainda não temos sushis carnívoros
(infelizmente), mas nem por isso podemos ignorar que existe uma praga se
alastrando no mercado, o gourmet. Assim como no filme, ele surgiu de uma hora
para a outra e consumiu a alma – e a carteira – de muitas pessoas.
Bem, mas... o que é o gourmet?
Teoricamente, faz referencia a uma pessoa
que entende de boa comida e vinhos. Entretanto, a mesma palavra pode ser usada
para se referir a comidas com técnicas mais elaboradas, ingredientes
diferenciados ou, até mesmo, algo exclusivo.
Você deve estar pensando: ”Ok, mas se a
comida gourmet realmente utiliza ingredientes mais caros e técnicas mais
elaboradas o seu preço é justificável, certo?”. Certo, jovem padawan, o
problema é que muito do se vende como gourmet não é gourmet, e boa parte dessas
pessoas que estão surgindo no meio dessa onda entraram pela oportunidade de
mercado. Muitas delas não tinham experiência nenhuma no ramo. O que ocorre é
que o gourmet começou a se tornar um padrão, tudo se tornou gourmet e a partir
do momento em que tudo se torna gourmet... nada é gourmet. A qualidade da
comida acaba ficando abaixo do próprio rótulo.
Isso acaba gerando sintomas não apenas no
mercado como nos consumidores, tanto pelo aspecto econômico quanto pelo “ego
gourmet”. Por um lado, as pessoas se acostumam a pagar um preço elevado por
coisas simples com nomes complexos, ou seja, o preço se tornou um sinônimo de
qualidade – sabe aquele hot dog do foodtruck que custa 20 reais e não vem nem
metade dos ingredientes daquele que custa 5 reais na praça? Então. Por outro
lado, isso também gera um grupo de pessoas chatas que se acham experts
em comida, mas que no fundo apenas seguem as tendências. E é exatamente isso
que ocorre no filme: o chefe do grupo de executivos, em diversos momentos, se
diz super entendedor de sushi, tanto que ele fala que tem o jeito certo de
comer e coisas assim, porém, ao provar e falar que é fantástico e, logo depois,
mudar de opinião, mostra que o seu paladar está totalmente ligado às críticas
que ele escuta, e não ao seu gosto pessoal.
O “gourmet” acabou se tornando um
predador da própria comida, um zumbi que infecta tudo aquilo que está em torno
dele, do mesmo modo que no filme um sushi é capaz de morder o outro e
transformá-lo em assassino. Um alimento gourmetizado começa a fazer pressão
para que os outros se gourmetizem, gerando uma reação em cadeia. Algo
interessante de notar é que muito disso caiu sobre a comida de rua que,
teoricamente, deveria ser barata e rápida, o oposto do que ocorre.
O alimento tornou-se um objeto de
consumo, uma demonstração de status social. Do mesmo modo que as pessoas criam
barreiras entre elas pelas roupas que usam, a comida, que deveria ser um
conector, também assume esse papel de diferenciação. O estrangeirismo da moda
age do mesmo modo sobre os alimentos. Quer impulsionar as vendas e ainda cobrar
mais caro por um produto? Coloque um ingrediente que não seja nacional e deixe
isso bem claro no cardápio. Isso retoma uma das primeiras cenas do filme, como
um morador de rua se atreve a comer sushi? Olha que absurdo ele comer as mesmas
coisas que eu.
Isso justifica o surgimento das marmitas
gourmet e dos PF de 50 reais, uma forma de se afastar da visão de “comida de
operário” e mostrar que você está acima daquilo.
Misto? Só se for com Jamón
espanhol e queijo de cabra produzido nos alpes noruegueses por monges tibetanos
e um toque de azeite trufado italiano
Mas calma, não precisa sair tacando fogo
em tudo que tiver o nome gourmet, até no filme tem um sushi zumbi bonzinho. Eu, como estudante de gastronomia, seria meio hipócrita em falar que
não existem coisas boas. Por mais que tenha seu lado negativo é legal ressaltar
que muitas coisas boas começaram a surgir e que o mercado alimentício está se
fortalecendo. As pessoas estão começando a prestar mais atenção naquilo que
comem, estão cozinhando mais ao invés de simplesmente tacar aquelas melecas
congeladas no microondas, estão começando a perceber que é possível fazer
comidas gostosas em casa (e em alguns casos sem gastar muito). Eu vejo que
muitas pessoas começaram a se juntar com amigos para cozinhar junto, usando o
alimento como um meio para a interação social, algo que força os profissionais
da área a serem mais criativos e não caírem no comodismo. Com isso, o alimento
passa a ser visto não como uma mera fonte de subsistência mas também como um
símbolo cultural que precisa ser valorizado. E, apesar de muitas coisas me
incomodarem, a ideia desses festivais gastronômicos é interessantíssima, do
mesmo modo que os food trucks também são conceitos legais (apesar do status
gourmet que ele aderiu no Brasil). Ou seja, essa moda tem dois lados, cabe a
nós não cair no marketing e ter bom senso quando for comer algo, por que por
mais que existam coisas boas tem muita comida que não vale nem metade do preço
cobrado.
Por fim, ao rever o filme me veio uma
questão: será que, além de machismo, o fato de só homem fazer sushi não seria
também uma forma de gourmetizar? Pois, assim como pessoas colocam nomes
difíceis em coisas simples para tentar elevar a qualidade pelo marketing e não
pelo alimento, o simples fato de falar que a mulher faria um sushi de qualidade
inferior e o homem superior acaba gerando um mito e “elevando” a qualidade do
mesmo. Por que se você oferecer para uma mesma pessoa uma “macarronada” e um
“fettuccine com ragú” talvez a percepção da comida mude pelo nome, e não pelo
alimento em si que é o mesmo, assim como oferecer uma “torta de banana” e uma
“banoffee pie”. Quer dizer, pode ser que dois sushis iguais seja interpretados
de duas maneiras diferentes caso um seja apresentado como feito por um homem e
o outro por uma mulher.
Devo criar meu foodtruck de
sushis assassinos?
Voltando ao filme, Dead Sushi
é um trash divertido, bizarro e gostoso de assistir - cheio de sangue,
referencias sexuais, zumbis, nojeiras, artes marciais e é claro sushis voadores
dentados que além de matarem também transam. Embora seja um filme simples, com
pouco cenarios e com efeitos bem duvidosos, ele cumpre muito bem o seu papel. A
trilha sonora, em diversos momentos, remete a séries como Power Ranger e
derivados, assumindo um ritmo mais acelerado durante as lutas, mas que tem seus
momentos dramáticos a lá novela mexicana.
Enfim, liguem naquele japa gourmet mais
caro da cidade e peça um combinado de sushis zumbis para acompanhar essa obra
prima do cinema oriental. Ah... mas não se esqueça de se certificar que só
homens trabalham no lugar.
Obs: lembre-se de aprender artes marciais
antes de fazer o pedido.
Trailer
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