segunda-feira, 30 de maio de 2016

Resenha: O que há para jantar? (Parents)


            Imaginem um jantar em família: pessoas sorridentes, piadinhas entre velhos amigos, camaradagem, o tio do pavê repetindo a piada pela bilionésima vez, pratos passando por cima de pratos, pessoas se servindo e atropelando as falas umas das outras. De repente, um grande assado é tirado do forno e posto sobre a mesa. É exuberante. Todos sorriem. Aquele cheiro forte preenche o aposento. Respirem fundo, leitores, é carne humana.





Título original: Parents
Lançamento: 1989
Duração: 88 minutos
Direção: Bob Balaban




O que há para jantar?
O preço da boa carne

            No centro do sonho americano nos anos cinquenta está a família Laemle, com sua vida bem ajustada e repleta de confortos tais como eletrodomésticos, lençóis limpos e uma despensa cheia. E no centro dessa família está Michael Laemle, uma criança calada e introvertida, dominada por pesadelos que começam à noite e preenchem seus dias com medos e paranoias. Será que a família está certa em mudar de bairro? E comer carne de seres mortos está certo? Aliás, de onde vem a carne?

Trash cult?

            Já faz um bom tempo que o Café com Tripas tem resenhado filmes sobre canibalismo. Se vocês lerem a ficha criminal aqui do blogue, verão a primeira resenha que cometemos foi justamente o divertidíssimo O massacre do micro-ondas lá nos idos de 2012, filme que tinha esse gênero alimentar como tema, no entanto, para além dele resenhamos também Holocausto canibal, que também tratava de canibalismo. Por sorte, O que há para jantar? é um filme tão bom quanto esses dois, o que pode ser uma coincidência ou uma tendência desse tema em gerar bons frutos.
            Pessoalmente, essa obra me fez refletir por um bom tempo logo depois que a assisti. Apesar de ter esse enredo engraçado em que uma criança desconfia que os pais sejam canibais, dando a impressão de que se trata só de um filme bizarro e cômico, ela é na verdade muito bem produzida, “séria” e, sob vários aspectos, surpreendente. Quase um trash cult, eu diria.
            O motivo principal disso talvez seja que a maior parte de sua trama não se desenvolve a partir de acontecimentos, mas do ponto de vista de uma criança, que vai sendo explorado à medida em que as coisas acontecem. Com isso, o espectador acaba ficando muito mais perto dos medos e dos  anseios dela que de uma percepção isenta de como as coisas sejam realmente, o que faz com que vários pontos do filme possam ser questionados: seriam fatos ou são só imaginações de criança?
            No geral, a obra brinca com as duas possibilidades e estamos constantemente em dúvida sobre o que se passa, ao mesmo tempo em que percebemos algumas coisas que são inegavelmente “reais” e podem explicar o ponto de vista do menino, como o fato de que ele não entende muito bem o mundo adulto (nem o infantil, aliás, ele é meio bobo) e facilmente acredita nas histórias que as pessoas contam para manipulá-lo, ou mesmo seu difícil relacionamento com seu pai, um homem imbecil que não consegue criar uma relação de afeto com o filho. Nesse jogo em que tentamos pensar o que se deve ao ponto de vista da criança e o que independeria dele, diversas coisas não são explicadas tintim por tintim e ficam abertas à interpretação, tornando o filme um pouco mais intrincado e interessante.

Olhos recheados de medo


            A história da família Laemle começa com a mudança para um novo bairro, um evento que até o fim do filme serve para relacionar diversos pontos da trama. O mais visível deles é o desconforto do jovem Michael numa situação inteiramente nova na qual ele tem que morar em outra casa, fazer novos amigos e coisas assim, de modo que, em diversos momentos, o rapaz precisa preencher as lacunas dessa nova vida e habitar esse novo mundo. Mas essa é uma tarefa árdua, principalmente para alguém que vê seus medos em toda parte e acredita em toda tolice que escuta.
            Um dos maiores méritos filme a esse respeito é fazer com que a construção das cenas exponha percepção da criança, sendo que o espectador é levado a nunca saber exatamente se está vendo os medos da criança e projetando um mundo terrível a partir dele, ou se as coisas são mesmo tão horríveis quanto parecem. Além disso, em diversos momentos somos colocados na posição de ver o mundo pelos olhos dessa criança, sendo transportados para uma perspectiva “em primeira pessoa” para a qual os outros atores se dirigem, como se falassem com  conosco por sermos, naquele momento, o próprio Michael. Por meio desse recurso e de alguns outros (como certos ângulos de câmera que se aproximam muito do rosto dos atores de maneira a fazê-los mais assustadores ou bizarros) vamos entendamos o personagem e sentindo um pouco daquilo que ele sente, de maneira que, ainda que quase não ocorram mortes na obra ou mesmo cenas de grande violência, esses elementos aparentemente simples vão formando um clima de tensão em torno dos personagens e dando o tom da história. Há uma aura em cada fato que fica perceptível conforme vemos o mundo pelos olhos da criança assustada.
            No fim das contas, O que há para o jantar? acerta justamente porque, por meio do filme que efetivamente mostra, consegue fomentar um outro filme dentro de nossas cabeças.

Cadeia alimentar

            Faz alguns anos, uma colega minha fez um intercâmbio no Canadá. Ao participar de uma dinâmica com outros estrangeiros na qual deveria listar alimentos que comia cotidianamente, ela mencionou um deles que é comum para  nós brasileiros mas que chocou as pessoas naquele contexto: ela disse que comia carne. O que causou perplexidade não era que minha colega comesse carne, mas que ela comece carne todos os dias ou quase todos os dias, visto que esse era um alimento muito caro nos países de que aquelas pessoas vinham. Chegaram a perguntar se ela era rica e ficaram surpresos ao entenderem que no Brasil esse alimento não é assim tão caro.
            Essa história pessoal serve bem para introduzir um aspecto importante do filme: o consumo  de carne pelos Laemle. A família não só consome esse alimento, como o consome em quantidade exacerbada, causando até nojo – a bem dizer, a imagem da carne é uma espécie de metáfora (de significados nem sempre evidentes) que perpassa todo o filme, seja durante as cenas à mesa do jantar ou mesmo em outras. Há um momento, por exemplo, em que o jovem Michael vê os pais transando e a mesma imagem é encenada: dois adultos se mordendo, se comendo, como se fossem carne devorando carne.
            Particularmente, acho que não entendo todas as camadas dessa metáfora, contudo há uma em especial que gostaria de explorar aqui e que se relaciona com a história que contei há pouco.
            Como sempre estamos perto do ponto de vista do menino, é natural que compreendamos seu estranhamento com o mundo adulto, com os pais e até mesmo seu questionamento sobre o consumo de carne. Apesar disso, a perspectiva do filme sempre ressalta o quão bem sucedido o casal Laemle é no interior da sociedade: eles tem bons amigos, se amam e  são pacientes com seu filho lento e apagado, de modo que é fácil acharmos (ou que as pessoas do filme achem) que, na verdade, o grande problema da família é justamente o menino e seu jeito calado. Se esse filme fosse ruim, ele criaria uma sensação de tensão unicamente em torno da possibilidade dos pais serem canibais ou não, e caso fossem, a criança teria razão em sentir mal estar em relação a eles, todavia caso não fossem, a criança e seu desajuste com os demais é que seria o problema; entretanto, O que há para jantar? é um bom filme e escapa dessa armadilha óbvia.


            Um modo pelo qual faz é isso é tornando os pais de Michael bizarros mesmo como pessoas ajustadas ao seu meio social, ou seja, ainda que não sejam canibais malucos, eles são assustadores pelos próprios papéis que desempenham na vida do filho: a figura de pai repressor provedor e a da mãe afetuosa e rainha do lar. Existem várias cenas que mostram isso, todavia, mais importante que apontá-las é perceber a própria atmosfera estranha a qual, por meio de diversos elementos visuais e sonoros (como a trilha repleta de rocks antigos), faz com que achemos ainda mais atemorizante os adultos e suas idiossincrasias. Mesmo que o pai não seja um canibal, percebemos facilmente o quão medonho é um pai que só consegue se relacionar com o filho tentando controlá-lo pelo medo, ou mesmo que os adultos sejam tão dissimulados e falsos, escondendo motivos e práticas ocultas, mudando radicalmente de comportamento quando estão fora do olhar das crianças. Se mudam de acordo com quem está olhando, quem eles serão de verdade quando ninguém os olha? A dúvida de Michael é pertinente. Extremamente pertinente. Contudo, ter dúvidas é um sintoma de que a criança não adota o modo de vida dos pais com facilidade, e que está mais perto dos rejeitados, contestadores e outsiders. Quando Michael é apresentado aos colegas de turma em sua nova escola, por sinal, ele é tão estranho e desajustado que está no mesmo nível dos repetentes.
            Sendo uma sombra se comparado aos seus pais, pessoas sorridentes e saciadas, o filho é alguém que não toma parte nos valores e no bem estar da família e no bem estar social. E é aí que entra a metáfora da carne.
            A carne – sempre farta, sempre exuberante sobre a mesa dos Laemle – é uma espécie de símbolo da prosperidade do modo de vida dessa família, por isso, quando Michael a recusa ou evita comê-la, ele está hesitando em participar da família e ter os mesmos hábitos e contentamentos que ela. A exemplo disso, numa das últimas cenas do filme o pai tenta fazer as pazes com o filho lhe oferecendo carne – é um dos momentos mais emblemáticos da obra, pois comer é ingressar na lógica bizarra dos pais.
            Mas Michael não quer saber o gosto da carne, ele quer mesmo é saber de onde ela vem, o prato pode até parecer bonito, porém ele requereu um abate, não? Algo (alguém?) teve que morrer para a carne chegar na mesa, e é essa realidade obscura por detrás das coisas que assusta o menino. Analogamente, seus pais também parecem belos: têm uma casa com cerquinha branca, um emprego respeitável e põe vegetais coloridos em seus pratos, no entanto para além dessa fachada social que tipo de pessoas são realmente? O que na verdade escondem debaixo da pele?
            O questionamento do menino e do filme está entre o social e o pessoal, e assim como achamos curiosa a trama envolvendo canibalismo, também ficamos curiosos quanto a acidez que envolve os moldes de sucesso e de família expostos ali. Por isso, ver a resolução do filme e saber se os pais são ou não comedores de gente, é menos importante que acompanhar a experiência da dúvida.

Carne humana bem passada ou mal passada?

            O que há para jantar? é um ótimo filme e não só um ótimo trash. Ele tem todo um ar próprio, meio cômico, meio bizarro, que tornam a experiência de assisti-lo bem gostosa. As cenas dos pesadelos ganharam meu coração, achei-as muito bem dirigidas e legais, tanto quanto a caracterização dos personagens pelas roupas, pela encenação caricata e outras coisas. Por isso, recomendo fortemente o filme, sobretudo para quem quer ver algo no trash que não seja simplesmente o esvoaçar de tripas.
            De certo modo, dá até dó que seja o Café a resenhar este filme e não alguém que possa dar mais publicidade a ele e analisá-lo com mais desenvoltura, entretanto, às vezes, os melhores pratos ficam mesmo restritos à grupos pequenos e não há nada que possamos fazê-los para convencer os outros de seu sabor. Sendo assim, amiguinhos e amiguinhas, saboreiem bem a iguaria, pois é exclusividade nossa, amantes do trash.

Trailer

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