Quem é esse ser aí bem atrás da sua
cadeira, caro leitor do Café? Esse aí com o aspecto ameaçador e o
olhar assassino – não, não adianta virar a cabeça e conferir, ele se escondeu
logo que você se virou. Agora voltou, está atrás de ti de novo. Tente olhar.
Não viu? Que pena.
Acho que ele é tímido. Mas até que
um sorriso bonito, se não fossem esses dentes pontudos e enormes... Espere, ele
etá sussurrando alguma coisa. Vou ouvir...
Credo, que odioso! É melhor eu não
te contar o que ele está dizendo. Melhor não ler esta resenha, caro leitor, vá
para outro site e aproveite sua vida enquanto ainda está no poder. Não clique!
Não clique!
"O catolicismo, embora preserve a crença dogmática em possessão, raramente reconheceu a existência de possessão no mundo contemporâneo. Tanto em Roma quanto em outros lugares, os poucos padres que foram designados como exorcistas devotam grande parte das suas vidas à orações e ao estudo sobre possessão demoníaca. E, em raras ocasiões, eram chamados por superiores eclesiásticos para consultas acerca de casos de possíveis possessões. Todo padre católico sabia, em teoria, que poderia ser chamado para colocar a sua alma à prova contra Satã. Porém, em tempos modernos, nenhum padre - em particular um jovem padre paroquiano norte-americano - jamais esperou se tornar um exorcista."
Título original: Possessed
Autor: Thomas B. Allen
Ano: 1993
Editora: Darkside books
Páginas: 254
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Antes de tudo, leitores, leitoras e
leitorxs do Café, é preciso ressaltar uma coisinha aqui: que Exorcismo
não é o mesmo que O exorcista, embora eles estejam relacionados. A
relação é a seguinte: o filme da década de setenta se baseou num livro de mesmo
nome lançado alguns anos antes, sendo que esse livro se baseou num caso real de
exorcismo ocorrido nos EUA nos anos quarenta. Exorcismo, a obra que
estou resenhando hoje, é um trabalho jornalístico (de 1993) que tenta
reconstruir esse caso real que originou tanto o livro quanto o filme. Com isso,
fiquem tranquilos, pois qualquer ficção descrita aqui não passa de realidade.
Que
corpo o canhoto escolheu?
O livro conta a história de Robbie,
um adolescente (sim, um menino, diferentemente do filme) comum dos anos
quarenta, apreciador de livros e jogos de tabuleiro (como o ouija), com
os quais brincava regularmente com sua tia. Quando mais tarde ela morre, o
rapaz começa a apresentar comportamentos cada vez mais incomuns: ligeiras
mudanças de personalidade acompanhadas de fenômenos físicos inexplicáveis tais
como sons de arranhões pela casa, tremores nos móveis e outros. A situação
piora gradativamente e os familiares do garoto começam a acreditar que se trata
de um caso de possessão demoníaca.
Romance?
Livro de magia? Reportagem?
Exorcismo suscita um problema
básico de interpretação de texto que é definir a qual gênero o livro pertence.
Ao mesmo tempo em que o narrador apresenta a vida de alguém que existiu
realmente lá na primeira metade do século passado, como num relato, quase a
totalidade da história trata de coisas que acreditamos – por conta das
leis da física – serem impossíveis, como
numa ficção.
Penso que existem dois modos simples
de resolver esse problema: caso o leitor endosse tudo o que diz respeito ao
sobrenatural e ao exorcismo, ele pode entender o livro como um relato fidedigno
de um caso sobrenatural real; entretanto, caso o leitor creia que aquilo que
aparenta sobrenatural tem na verdade uma explicação natural, ele poderá
entender o livro como literatura ficcional de algum tipo. Particularmente, não
me identifico com nenhuma dessas duas posições e acho que a solução desse
problema é um pouco mais complexa.
A princípio, o livro tem uma
pretensão realista por dever sua narrativa a um evento histórico real e por,
supostamente, não narrar nada que não tenha origem nele. Apesar disso, em vez
de descrever as sobrenaturalidades do livro com um distanciamento, suspendendo
o juízo quanto a elas serem reais ou não, o autor simplesmente as descreve como
se fossem reais. Em vez de dizer algo como “supostamente o jarro voou pela
sala” ele simplesmente diz “o jarro voou pela sala”, no entanto, sabemos que
jarros não voam sozinhos por aí (não na minha casa, pelo menos). Assim, como
devemos interpretar essa decisão do autor de relatar o sobrenatural como
factual? Ele estaria endossando uma crença sua no sobrenatural e forçando uma
interpretação desde o começo? Estaria descrevendo assim as coisas porque foi
por pensar que elas eram assim que os personagens agiram como agiram? Ou esse é
apenas um recurso literário para facilitar a escrita (afinal, é mais simples
dizer a cada página que “o jarro voou” do que dizer que ele “supostamente
voou”)? Seja qual for a explicação correta, é inegável que há uma decisão por
parte do autor em transformar um conjunto questionável de fatos numa narrativa
supostamente fluída, sendo que essa decisão torna o livro menos teórico e
repleto de discussões sobre as fontes, e mais legível e agradável, como se o
autor decidisse privilegiar a narrativa no lugar da discussão crítica. A
verdade ou inverdade dos acontecimentos acaba ficando para o leitor discutir.
Por tudo isso, creio que Exorcismo
não seja propriamente nem ficção, nem relato. Não é ficção porque ele está delimitado
por um caso histórico e não cria nada que seja puramente imaginário, porém
tampouco é um relato, pois o autor não está apenas recriando um acontecimento,
mas criando uma narrativa “fantástica” a partir de relatos. A obra constitui uma espécie de sistematização de relatos
contidos nas fontes, que tenta dar coerência e sistematicidade a elas inclusive
adotando que nesses relatos não é verossímil. Vocês podem chamar isso de
jornalismo ou simplesmente de não-ficção (o que eu prefiro): escolham o que
quiserem.
Uma
história encapetada
Explicando de maneira sintética, o
livro apresenta cronologicamente determinados três meses da vida de Robbie
(nome falso para proteger o rapaz) nos quais, depois da morte de sua tia, uma
espiritualista, ele começa apresentar sinais de possessão demoníaca. Seu caso
vai piorando até o ponto de não poder mais ser ignorado ou tratado por métodos
convencionais (como psiquiatria ou a boa e velha havaiana de pau, por exemplo),
o que faz com que seus pais recorrem à religião para conseguir uma solução.
Segundo o autor, todo o processo do
exorcismo demorou meses, necessitou de dezenas de sessões de banimento e uma
rotina diária de combate ao capiroto, com rezas, água benta, uso de relíquias
sagradas e coisas assim. Ao longo disso tudo, o menino vivenciou diversos surtos
de possessão em que queria sair tocando o terror (aliás, de modo semelhante ao
filme), e passou por um sofrimento desgraçado junto com sua família e os padres
praticantes do ritual. Todo o processo pelo qual ele vai pirando e agindo cada
vez mais violentamente, maliciosamente, é bastante cruel, por isso, penso que
mesmo que você seja um daqueles céticos encardidos de incredulidade até os
ossos, que não reconheça nada de sobrenatural ali, há de reconhecer que é bem
triste todo o sofrimento existente ali.
No que diz respeito à narrativa,
enquanto os acontecimentos se dão em torno da criança, o autor nos apresenta
algumas informações sobre o contexto histórico da época e, com um pouco mais de
profundidade, explica parte da hierarquia da igreja católica, seus rituais e
suas organizações internas, como a Companhia de Jesus, na medida em que essas
coisas vão surgindo na vida do menino. Quando Robbie tenta uma cura pelo
luteranismo, por exemplo, nos é explicado como essa religião entende o
exorcismo e quais são seus antecedentes com esse tipo de caso. Quando mais
tarde Robbie passa a ser assistido diretamente por jesuítas, por sua vez, o
mesmo é feito e vamos conhecendo um pouco mais sobre a história da ordem e sua
relação com o exorcismo e a fé.
Particularmente, acho que essas
informações são muito bem vindas já que aliviam um pouco o livro de sua carga
dramática, e das incontáveis sessões de exorcismo que a certa altura cansam um
pouco nosso olhar. Aliás, além de relatar informações relacionadas ao que acontece
em torno do personagem, o autor também retoma alguns casos semelhantes ao do
menino ou que simplesmente fazem parte do imaginário popular quanto à ideia de
exorcismo, como aquele das freiras de Loudun,
que inspirou Huxley, ou o das irmãs Fox, tão caro aos espiritas brasileiros. No fim do livro,
inclusive, consta a principal fonte da
obra: o relatório que o padre responsável pelo caso fez desse exorcismo.
Uma limitação da obra nesse sentido
é que embora o autor cite outros casos de possessão e até explore
historicamente o tema, ele não tem nenhum pudor em escolher as religiões
bíblicas como base das explicações para o fenômeno da possessão. Do começo ao
fim de Exorcismo, a explicação do problema do garoto sempre está entre a
possessão, tal como entendida nas religiões baseadas na bíblia, e o problema
psiquiátrico. Penso que caso essa dicotomia ficasse somente no pensamento e na
cultura dos personagens e fizesse apenas parte do que eles pensaram na época,
então não existiria problema algum,
contudo, o próprio autor parece ficar restrito a esse modo de entender as
coisas e não vai além do que aqueles envolvidos no caso consideraram, quer
dizer, que ou o problema tem uma explicação natural, ou tem uma explicação
bíblica. No entanto, se vamos entender algum fenômeno do “caso Robbie” como
sobrenatural ou simplesmente inexplicável para a ciência, por que temos que
tomar uma mitologia particular para explicar tal fenômeno? Como um hinduísta ou
um xintoísta explicaria o caso do menino, por exemplo? Se aplicássemos os
conceitos deles ao caso, ainda seria possível usar o termo “possessão” para
descrever que se passou com o garoto?
Evidentemente, o livro não faz esse
tipo de questionamento, pois está demasiadamente fincado no terreno do
catolicismo e dos valores dos envolvidos no caso, mas é justamente isso que, a
meu ver, retira grande parte da credibilidade do caso como sendo uma “possessão
real”. Dizendo de outro modo, o autor aceita facilmente as categorias religiosa
pelas quais já pensa o mundo e sequer
considera que outras possam ter qualquer validade. Como não há uma grande
discussão de fontes, nem uma tentativa muito aprofundada de dar um veredito ao
caso, o livro acaba abraçando sem qualquer pudor o imaginário religioso e
cultural envolvido ali, e terminamos a história mais ou menos restritos ao
pensamento de seus participantes: será que foi possessão ou não? Será que o menino estava louco ou eram mesmo demônios?
Se você estiver em busca de saber se
possessões são reais ou não, saiba que não dá para fazer antropologia com essa
obra, mas se estiver apenas procurando entretenimento, o livro está aberto para
ti.
Ser possuído
é gostoso ou só dói?
Como já afirmei, Exorcismo
não é propriamente literatura e sua narrativa meio que se esgota em si mesma. A
cada capítulo não vemos, como num bom romance, por exemplo, o desenvolvimento
de um tema ou subtexto junto com o desenvolvimento dos personagens, bem
dizendo, o narrador apenas explicita o desenrolar dos fatos e deixa para nós atribuir a tarefa de atribuir um
significado a tudo isso. Por que Robbie passa por isso? Que sentido há nesse
sofrimento? Só Satanás sabe, se ele existir. E ele existe.
Independentemente disso, o livro tem
uma escrita bastante gostosa, sempre tecida de maneira causar uma sensação de
objetividade, como se estivéssemos acompanhando o evento quase em tempo real,
como um observador solitário no canto da sala. Suponho que pessoas que tenham
crenças religiosas fortes ou mesmo que, em algum lugar de seus corações,
guardem espaço para o sobrenatural, tendam a aproveitar o livro muito mais que
aquelas pessoas incrédulas e chatas que ficam procurando explicações em tudo,
como eu, pois têm motivos a mais para sentir medo daquilo que estão lendo.
Ainda assim, a obra não requer que adotemos o discurso do autor ou qualquer
crença no sobrenatural para ser apreciada, pois seja como um discurso ambíguo,
que pode ser real ou não, seja como um relato que penda para a crença ou
descrença, ela contém uma narrativa confortável e fácil de acompanhar. Para
além da história do garoto, por exemplo, vamos descobrindo várias informações
interessantes sobre os EUA do meio do século vinte, a ordem jesuíta e vários
outros elementos sociais e históricos que envolvem a vida do garotinho
endemoniado, e nem sempre são fáceis de encontrar (ou são e eu que nunca
pesquisei). Como entretenimento, então, Exorcismo funciona muito bem e
pode ser lido rapidamente. Se bem me lembro, junto com aquelas enciclopédias que
a faculdade quer eu dê conta, consegui ler esse livro em uns três ou quatro
dias, nas pausas de minhas obrigações.
Por fim, devo dizer que,
diferentemente do Victor, o outro bocó que escreve neste blogue, nunca dei
muita bola para o trabalho gráfico em torno dos livros, se vocês lerem qualquer
resenha minha pela internet, verão que esse é um aspecto que nunca comentei
antes. Na verdade, solicitei o livro pela parceira do Café com a Darkside books
só por interesse no tema e sem sequer ter visto a capa do livro, sendo que
quando o recebi aqui em casa, no interior de um plástico bolha trevosão, tomei
um susto. Ele veio no interior de uma bolsa-ouija bacanérrima e parecia, em si
mesmo, uma obra de arte: tinha capa dura com diferenças de textura onde aparece
a cruz, continha algumas páginas negras no meio e um marcador de cetim na cor
dourada que dava a impressão de segurar um livro de magia negra, além disso, a
contra guarda e a folha de guarda foram feitas como um tabuleiro de ouija,
vindo também com a panchette, aquela palheta que se move sobre o
tabuleiro, uma vela preta para invocar o Demo e um crucifixo para se defender
quando ele der as caras. Tudo magnífico.
Já que nunca reparei nessas coisas
de material gráfico, cheguei a perguntar a outras pessoas se fiquei fascinado
por ignorância ou não (sou um ator nato para papel de trouxa), mas por todos
com quem conversei, parece que é um trabalho singular mesmo. Um pontinho para a
editora nesse aspecto.
"Ser possuído é gostoso ou só dói?" AHEHAEHAHEHAHE sensacional. Parabéns pelo post, como sempre um conteúdo de extrema qualidade por aqui <3333
ResponderExcluirValeu, Raquel!
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