terça-feira, 14 de junho de 2016

Literatura: Exorcismo (Thomas B. Allen)


            Quem é esse ser aí bem atrás da sua cadeira, caro leitor do Café? Esse aí com o aspecto ameaçador e o olhar assassino – não, não adianta virar a cabeça e conferir, ele se escondeu logo que você se virou. Agora voltou, está atrás de ti de novo. Tente olhar. Não viu? Que pena.
            Acho que ele é tímido. Mas até que um sorriso bonito, se não fossem esses dentes pontudos e enormes... Espere, ele etá sussurrando alguma coisa. Vou ouvir...
            Credo, que odioso! É melhor eu não te contar o que ele está dizendo. Melhor não ler esta resenha, caro leitor, vá para outro site e aproveite sua vida enquanto ainda está no poder. Não clique! Não clique!


"O catolicismo, embora preserve a crença dogmática em possessão, raramente reconheceu a existência de possessão no mundo contemporâneo. Tanto em Roma quanto em outros lugares, os poucos padres que foram designados como exorcistas devotam grande parte das suas vidas à orações e ao estudo sobre possessão demoníaca. E, em raras ocasiões, eram chamados por superiores eclesiásticos para consultas acerca de casos de possíveis possessões. Todo padre católico sabia, em teoria, que poderia ser chamado para colocar a sua alma à prova contra Satã. Porém, em tempos modernos, nenhum padre - em particular um jovem padre paroquiano norte-americano - jamais esperou se tornar um exorcista."

Título original: Possessed
Autor: Thomas B. Allen
Ano: 1993
Editora: Darkside books
Páginas: 254
            Antes de tudo, leitores, leitoras e leitorxs do Café, é preciso ressaltar uma coisinha aqui: que Exorcismo não é o mesmo que O exorcista, embora eles estejam relacionados. A relação é a seguinte: o filme da década de setenta se baseou num livro de mesmo nome lançado alguns anos antes, sendo que esse livro se baseou num caso real de exorcismo ocorrido nos EUA nos anos quarenta. Exorcismo, a obra que estou resenhando hoje, é um trabalho jornalístico (de 1993) que tenta reconstruir esse caso real que originou tanto o livro quanto o filme. Com isso, fiquem tranquilos, pois qualquer ficção descrita aqui não passa de realidade.

Que corpo o canhoto escolheu?

            O livro conta a história de Robbie, um adolescente (sim, um menino, diferentemente do filme) comum dos anos quarenta, apreciador de livros e jogos de tabuleiro (como o ouija), com os quais brincava regularmente com sua tia. Quando mais tarde ela morre, o rapaz começa a apresentar comportamentos cada vez mais incomuns: ligeiras mudanças de personalidade acompanhadas de fenômenos físicos inexplicáveis tais como sons de arranhões pela casa, tremores nos móveis e outros. A situação piora gradativamente e os familiares do garoto começam a acreditar que se trata de um caso de possessão demoníaca.


Romance? Livro de magia? Reportagem?

            Exorcismo suscita um problema básico de interpretação de texto que é definir a qual gênero o livro pertence. Ao mesmo tempo em que o narrador apresenta a vida de alguém que existiu realmente lá na primeira metade do século passado, como num relato, quase a totalidade da história trata de coisas que acreditamos – por conta das leis  da física – serem impossíveis, como numa ficção.
            Penso que existem dois modos simples de resolver esse problema: caso o leitor endosse tudo o que diz respeito ao sobrenatural e ao exorcismo, ele pode entender o livro como um relato fidedigno de um caso sobrenatural real; entretanto, caso o leitor creia que aquilo que aparenta sobrenatural tem na verdade uma explicação natural, ele poderá entender o livro como literatura ficcional de algum tipo. Particularmente, não me identifico com nenhuma dessas duas posições e acho que a solução desse problema é um pouco mais complexa.
            A princípio, o livro tem uma pretensão realista por dever sua narrativa a um evento histórico real e por, supostamente, não narrar nada que não tenha origem nele. Apesar disso, em vez de descrever as sobrenaturalidades do livro com um distanciamento, suspendendo o juízo quanto a elas serem reais ou não, o autor simplesmente as descreve como se fossem reais. Em vez de dizer algo como “supostamente o jarro voou pela sala” ele simplesmente diz “o jarro voou pela sala”, no entanto, sabemos que jarros não voam sozinhos por aí (não na minha casa, pelo menos). Assim, como devemos interpretar essa decisão do autor de relatar o sobrenatural como factual? Ele estaria endossando uma crença sua no sobrenatural e forçando uma interpretação desde o começo? Estaria descrevendo assim as coisas porque foi por pensar que elas eram assim que os personagens agiram como agiram? Ou esse é apenas um recurso literário para facilitar a escrita (afinal, é mais simples dizer a cada página que “o jarro voou” do que dizer que ele “supostamente voou”)? Seja qual for a explicação correta, é inegável que há uma decisão por parte do autor em transformar um conjunto questionável de fatos numa narrativa supostamente fluída, sendo que essa decisão torna o livro menos teórico e repleto de discussões sobre as fontes, e mais legível e agradável, como se o autor decidisse privilegiar a narrativa no lugar da discussão crítica. A verdade ou inverdade dos acontecimentos acaba ficando para o leitor discutir.
            Por tudo isso, creio que Exorcismo não seja propriamente nem ficção, nem relato. Não é ficção porque ele está delimitado por um caso histórico e não cria nada que seja puramente imaginário, porém tampouco é um relato, pois o autor não está apenas recriando um acontecimento, mas criando uma narrativa “fantástica” a partir de relatos. A obra constitui  uma espécie de sistematização de relatos contidos nas fontes, que tenta dar coerência e sistematicidade a elas inclusive adotando que nesses relatos não é verossímil. Vocês podem chamar isso de jornalismo ou simplesmente de não-ficção (o que eu prefiro): escolham o que quiserem.


Uma história encapetada

            Explicando de maneira sintética, o livro apresenta cronologicamente determinados três meses da vida de Robbie (nome falso para proteger o rapaz) nos quais, depois da morte de sua tia, uma espiritualista, ele começa apresentar sinais de possessão demoníaca. Seu caso vai piorando até o ponto de não poder mais ser ignorado ou tratado por métodos convencionais (como psiquiatria ou a boa e velha havaiana de pau, por exemplo), o que faz com que seus pais recorrem à religião para conseguir uma solução.
            Segundo o autor, todo o processo do exorcismo demorou meses, necessitou de dezenas de sessões de banimento e uma rotina diária de combate ao capiroto, com rezas, água benta, uso de relíquias sagradas e coisas assim. Ao longo disso tudo, o menino vivenciou diversos surtos de possessão em que queria sair tocando o terror (aliás, de modo semelhante ao filme), e passou por um sofrimento desgraçado junto com sua família e os padres praticantes do ritual. Todo o processo pelo qual ele vai pirando e agindo cada vez mais violentamente, maliciosamente, é bastante cruel, por isso, penso que mesmo que você seja um daqueles céticos encardidos de incredulidade até os ossos, que não reconheça nada de sobrenatural ali, há de reconhecer que é bem triste todo o sofrimento existente ali.
            No que diz respeito à narrativa, enquanto os acontecimentos se dão em torno da criança, o autor nos apresenta algumas informações sobre o contexto histórico da época e, com um pouco mais de profundidade, explica parte da hierarquia da igreja católica, seus rituais e suas organizações internas, como a Companhia de Jesus, na medida em que essas coisas vão surgindo na vida do menino. Quando Robbie tenta uma cura pelo luteranismo, por exemplo, nos é explicado como essa religião entende o exorcismo e quais são seus antecedentes com esse tipo de caso. Quando mais tarde Robbie passa a ser assistido diretamente por jesuítas, por sua vez, o mesmo é feito e vamos conhecendo um pouco mais sobre a história da ordem e sua relação com o exorcismo e a fé.
            Particularmente, acho que essas informações são muito bem vindas já que aliviam um pouco o livro de sua carga dramática, e das incontáveis sessões de exorcismo que a certa altura cansam um pouco nosso olhar. Aliás, além de relatar informações relacionadas ao que acontece em torno do personagem, o autor também retoma alguns casos semelhantes ao do menino ou que simplesmente fazem parte do imaginário popular quanto à ideia de exorcismo, como aquele das freiras de Loudun, que inspirou Huxley, ou o das irmãs Fox, tão caro aos espiritas brasileiros. No fim do livro, inclusive, consta a principal fonte  da obra: o relatório que o padre responsável pelo caso fez desse exorcismo.
            Uma limitação da obra nesse sentido é que embora o autor cite outros casos de possessão e até explore historicamente o tema, ele não tem nenhum pudor em escolher as religiões bíblicas como base das explicações para o fenômeno da possessão. Do começo ao fim de Exorcismo, a explicação do problema do garoto sempre está entre a possessão, tal como entendida nas religiões baseadas na bíblia, e o problema psiquiátrico. Penso que caso essa dicotomia ficasse somente no pensamento e na cultura dos personagens e fizesse apenas parte do que eles pensaram na época, então não existiria problema algum, contudo, o próprio autor parece ficar restrito a esse modo de entender as coisas e não vai além do que aqueles envolvidos no caso consideraram, quer dizer, que ou o problema tem uma explicação natural, ou tem uma explicação bíblica. No entanto, se vamos entender algum fenômeno do “caso Robbie” como sobrenatural ou simplesmente inexplicável para a ciência, por que temos que tomar uma mitologia particular para explicar tal fenômeno? Como um hinduísta ou um xintoísta explicaria o caso do menino, por exemplo? Se aplicássemos os conceitos deles ao caso, ainda seria possível usar o termo “possessão” para descrever que se passou com o garoto?
            Evidentemente, o livro não faz esse tipo de questionamento, pois está demasiadamente fincado no terreno do catolicismo e dos valores dos envolvidos no caso, mas é justamente isso que, a meu ver, retira grande parte da credibilidade do caso como sendo uma “possessão real”. Dizendo de outro modo, o autor aceita facilmente as categorias religiosa pelas quais já pensa  o mundo e sequer considera que outras possam ter qualquer validade. Como não há uma grande discussão de fontes, nem uma tentativa muito aprofundada de dar um veredito ao caso, o livro acaba abraçando sem qualquer pudor o imaginário religioso e cultural envolvido ali, e terminamos a história mais ou menos restritos ao pensamento de seus participantes: será que foi possessão ou não? Será que  o menino estava louco ou eram mesmo demônios?
            Se você estiver em busca de saber se possessões são reais ou não, saiba que não dá para fazer antropologia com essa obra, mas se estiver apenas procurando entretenimento, o livro está aberto para ti.


Ser possuído é gostoso ou só dói?

            Como já afirmei, Exorcismo não é propriamente literatura e sua narrativa meio que se esgota em si mesma. A cada capítulo não vemos, como num bom romance, por exemplo, o desenvolvimento de um tema ou subtexto junto com o desenvolvimento dos personagens, bem dizendo, o narrador apenas explicita o desenrolar dos fatos e deixa para nós atribuir a tarefa de atribuir um significado a tudo isso. Por que Robbie passa por isso? Que sentido há nesse sofrimento? Só Satanás sabe, se ele existir. E ele existe.
            Independentemente disso, o livro tem uma escrita bastante gostosa, sempre tecida de maneira causar uma sensação de objetividade, como se estivéssemos acompanhando o evento quase em tempo real, como um observador solitário no canto da sala. Suponho que pessoas que tenham crenças religiosas fortes ou mesmo que, em algum lugar de seus corações, guardem espaço para o sobrenatural, tendam a aproveitar o livro muito mais que aquelas pessoas incrédulas e chatas que ficam procurando explicações em tudo, como eu, pois têm motivos a mais para sentir medo daquilo que estão lendo. Ainda assim, a obra não requer que adotemos o discurso do autor ou qualquer crença no sobrenatural para ser apreciada, pois seja como um discurso ambíguo, que pode ser real ou não, seja como um relato que penda para a crença ou descrença, ela contém uma narrativa confortável e fácil de acompanhar. Para além da história do garoto, por exemplo, vamos descobrindo várias informações interessantes sobre os EUA do meio do século vinte, a ordem jesuíta e vários outros elementos sociais e históricos que envolvem a vida do garotinho endemoniado, e nem sempre são fáceis de encontrar (ou são e eu que nunca pesquisei). Como entretenimento, então, Exorcismo funciona muito bem e pode ser lido rapidamente. Se bem me lembro, junto com aquelas enciclopédias que a faculdade quer eu dê conta, consegui ler esse livro em uns três ou quatro dias, nas pausas de minhas obrigações.
            Por fim, devo dizer que, diferentemente do Victor, o outro bocó que escreve neste blogue, nunca dei muita bola para o trabalho gráfico em torno dos livros, se vocês lerem qualquer resenha minha pela internet, verão que esse é um aspecto que nunca comentei antes. Na verdade, solicitei o livro pela parceira do Café com a Darkside books só por interesse no tema e sem sequer ter visto a capa do livro, sendo que quando o recebi aqui em casa, no interior de um plástico bolha trevosão, tomei um susto. Ele veio no interior de uma bolsa-ouija bacanérrima e parecia, em si mesmo, uma obra de arte: tinha capa dura com diferenças de textura onde aparece a cruz, continha algumas páginas negras no meio e um marcador de cetim na cor dourada que dava a impressão de segurar um livro de magia negra, além disso, a contra guarda e a folha de guarda foram feitas como um tabuleiro de ouija, vindo também com a panchette, aquela palheta que se move sobre o tabuleiro, uma vela preta para invocar o Demo e um crucifixo para se defender quando ele der as caras. Tudo magnífico.
            Já que nunca reparei nessas coisas de material gráfico, cheguei a perguntar a outras pessoas se fiquei fascinado por ignorância ou não (sou um ator nato para papel de trouxa), mas por todos com quem conversei, parece que é um trabalho singular mesmo. Um pontinho para a editora nesse aspecto.
            No mais, só resta ao Café com Tripas recomendar o livro como um bom entretenimento que é, agradecer a Darkside books pela parceria, e fingir que não conhecemos você quando o tinhoso possuir seu corpo. Queime esta resenha depois de ler.


2 comentários:

  1. "Ser possuído é gostoso ou só dói?" AHEHAEHAHEHAHE sensacional. Parabéns pelo post, como sempre um conteúdo de extrema qualidade por aqui <3333

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