terça-feira, 28 de junho de 2016

Literatura: O demônio da perversidade (Edgar Allan Poe)


            Dando prosseguimento ao desafio literário #12MesesDePoe o Café traz de volta o Sr. Edgar Allan Poe para discutir a maldade humana. Será a maldade uma predisposição biológica assim como muitos de nossos instintos ou será que existe um pequeno diabo ao lado de nosso ouvido tentando nos corromper a todo instante? Porque, mesmo sabendo das conseqüências de nossas ações, continuamos a nos auto-sabotar diariamente?
            O Sr. Bigodinho irá responder, mas fique atento querido leitor, até mesmo os clássicos escondem o verdadeiro significado de seus discursos.



            “Estamos à borda dum precipício. Perscrutamos o abismo e nos vem a náusea e a vertigem. Nosso primeiro impulso é fugir ao perigo. Inexplicavelmente, porém, ficamos. Pouco a pouco, a nossa náusea, a nossa vertigem, o nosso horror confundem-se numa nuvem de sensações indefiníveis. Gradativamente, e de maneira mais imperceptível, essa nuvem toma forma, como a fumaça da garrafa donde surgiu o gênio nas Mil e uma Noites. Mas fora dessa nossa nuvem à borda do precipício, uma forma se torna palpável, bem mais terrível que qualquer gênio ou qualquer demônio de fábulas. Contudo não é senão um pensamento, embora terrível, e um pensamento que nos gela até a medula dos ossos com a feroz volúpia do seu horror. É , simplesmente, a ideia do que seriam nossas sensações durante o mergulho precipitado duma queda de tal altura.


Titulo original: The imp of the perverse
Autor: Edgar Allan Poe
Ano: 1845
Lido em: Online (baixe aqui)
Paginas: 4
            Após ler sobre o caso em que uma pessoa morreu devido a uma vela envenenada, um homem se vê tentado a cometer o crime perfeito utilizando o mesmo método. Ao colocar em pratica o seu plano, ele tem grande sucesso. O protagonista mata a pessoa pretendida, herda seus bens e se vê livre de qualquer suspeita. Entretanto, com o tempo, algo começa a assombrá-lo.

Perversidade biológica x Perversidade demoníaca

            O demônio da perversidade pode ser dividido em duas partes. Na primeira, o protagonista faz um ensaio sobre a maldade humana e tenta compreender os motivos que levam o homem a cometer certos atos. Já a segunda parte tem como objetivo contar brevemente a história do narrador. Toda a história do conto em si pode ser explicada em um único paragrafo, tanto que Poe nem se preocupa em dar muitos detalhes. A discussão gerada pelo protagonista é muito mais importante do que a história de fato.
            Sem antes mesmo se apresentar ou dar qualquer informação sobre sua vida, o narrador já começa o conto desenvolvendo uma pequena tese sobre os impulsos humanos e os motivos que levam o homem a fazer o mal. Para dar validade ao seu argumento, ele expõe e explica o funcionamento da ciência que tentou determinar as ações humanas e, logo após, irá desconstruir a mesma para mostrar sua posição. A princípio, ele irá discutir sobre a frenologia, uma teoria que acreditava ser possível determinar características e traços de personalidade a partir do formato do crânio, contudo, de acordo com o narrador, a teoria peca em ter suas explicações planejadas a priori, ou seja, ela não tenta explicar a característica por si só, mas sim procura algum modelo padrão em que ela seja aplicável, no qual o comportamento se submete a biologia. Por exemplo: a fome e a sensação de frio são impulsos do cérebro para a autopreservação, logo, a maldade também é um impulso que funciona da mesma maneira e se desenvolve em indivíduos que tenham determinado formato de cranio.
            Contradizendo essa teoria, o autor diz que a maldade (e alguns outros impulsos) partem de um principio inato e primitivo, chamado de perversidade, que não envolve características biológicas determinantes. A perversidade contraria os outros comportamentos humanos, pois, enquanto alguns seguem predisposições biológicas e são uteis para a sobrevivência, esse tem um impeto destrutivo e, muitas vezes, destituído de razão. Assim, a perversidade age como uma especie de demônio, ela surge como um simples pensamento mas, com o tempo, ela começa ficar cada vez mais frequente e poderosa, levando o homem a determinados atos.
            A perversidade, ao longo do conto, vai estar relacionada a maldade, tanto que o autor vai se utilizar dela para falar sobre o seu crime, mas o mesmo conceito pode ser aplicado em diversos outros contextos. Segundo o raciocínio desenvolvido pelo narrador, a perversidade é um sentimento que surge sem uma razão aparente e que, aos poucos, vai devorando a vitima a ponto dela não aguentar e se submeter a tentação. Esse impeto, por mais que contrarie a razão, muitas vezes se torna forte o suficiente para que o indivíduo se auto sabote, mesmo tendo total consciência dos problemas que aquilo pode gerar.

Não é culpa minha, foram as vozes

            Ao fim do seu desenvolvimento teórico sobre a perversidade, o narrador irá contar rapidamente ao leitor sobre o crime que cometeu e o que ocorreu após. A curta história será essencial para exemplificar e dar vida a tudo que foi desenvolvido anteriormente, mas ela também serve para levantar algumas questões que são ainda mais importantes. O protagonista em nenhum momento fala seu nome ou quem ele é, sendo que, tirando o caso que ele conta, não temos qualquer informação sobre ele. Do inicio ao fim, portanto, somos conduzido por um personagem que está escondido por trás de palavras e que levanta suspeitas tanto da veracidade do que é narrado quanto de suas intenções. A única coisa que é possível concluir é que ele parece ser alguém estudado, pois ele consegue desenvolver um tema nem um pouco simples que envolve assuntos como filosofia e psicologia. Sendo assim, não fica muito claro a sua motivação com o texto escrito.
            Sim, ele pode estar apenas contando a sua historia, mas ele também pode estar usando isso como uma forma de justificar seu crime ou justificar sua tese.

Poerversidade

            Em seu conto, Poe consegue fazer com que cada leitor acabe tendo sua própria interpretação. Ao mesmo tempo que ele conduz a leitura para um caminho, ele deixa outros abertos para quem quiser explorar, mas nenhum tem uma conclusão e nenhum trás a verdade, porque independentemente da explicação, a perversidade está além da compreensão. O demônio da perversidade é um conto de apenas quatro paginas, entretanto, apesar de curto, ele tem uma leitura bem densa e, de certa forma, complicada, obrigando o leitor a voltar e reler diversas vezes. Apesar da leitura “difícil”, é um conto que recompensa ao levantar diversas hipóteses e continuar conversando com o leitor mesmo ao término da narrativa. 

3 comentários:

  1. Esse é um dos meus contos favoritos até agora, Victor! Passei dias e dias pensando nas teorias que o Poe fala no começo do conto. Também tive essa impressão que o falatório podia ser um cover up pro crime dele, mas ao mesmo tempo ele mesmo diz que a verborragia é uma forma de perversidade. Achei genial!
    Como sempre, resenha maravilhosa. Obrigada por participar!

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    Desafio de leitura #12mesesdepoe

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    1. Brigado Anna ;)
      eu curti bastante o conto também, é interessante como ele desenvolve a narrativa. Ele começa como se tivesse discutindo o tema sem muita pretensão e no final vai la e apresenta o crime, como se ele estivesse criando uma anestesia para que o leitor pegue mais leve e tente compreender as suas ações.

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  2. É intrigante o quanto o tema da "perversidade" é frequente nos contos de Poe. Em O Gato Preto, por exemplo, o personagem transgressor que igualmente não tem seu nome revelado, discorre sobre a natureza desse denominado espírito: “A própria filosofia não estudou este espírito. E todavia, assim como tenho certeza de possuir uma alma vivente, é minha convicção que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades primárias e indivisíveis, um dos sentimentos que dão origem e orientam o caráter do Homem. Quem já não se flagrou uma centena de vezes a cometer uma ação vil ou meramente tola por nenhuma razão exceto sentir que não devia? Não temos todos nós uma inclinação perpétua e contrária a nosso melhor julgamento para violar as Leis, simplesmente porque compreendemos que são obrigatórias?”. É como se o próprio autor, valendo-se de seus personagens, propusesse um apelo direto ao leitor sobre a devida atenção à complexidade dos fatores por trás de uma mente criminosa e o quanto os elementos precípuos de tal mentalidade são mais ordinários do que imaginamos. Tal ideia conversa muito com o conceito de depravação agostiniano.

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