sexta-feira, 24 de junho de 2016

Literatura: O vilarejo (Raphael Montes)


            Atire a primeira pedra quem nunca pecou. Nada de fazer essa carinha de bom moço/boa moça. Assumam! suas almas já estão perdidas mesmo. Não tem mais salvação, aceitem os seus pecados. Não importa o que você diga, se você está nesse inferninho cibernético chamado Café com Tripas pode ter certeza que o futuro que te aguarda é um open bar no inferno. Posso dizer, por experiência própria, que se conformar é a melhor opção.
            Mas não importa quantas vezes vamos avisar, vocês vão continuar acreditando em salvação. Tudo bem, nós entendemos. Por isso mesmo hoje o Café traz um livro para discutir os sete pecados capitais, talvez vocês se identifiquem neles e aceitem a sua deplorável condição.


            “O velho estava certo. O vilarejo vem sendo dizimado dia após dia. O luto sentou-se à mesa. Ninguém chora os mortos. Não podem desperdiçar energia lamentando a partida dos que não suportaram o frio e a fome. Há duas semanas, Irina, a vizinha da direita, gritou durante toda a madrugada a morte de seu bebê. No dia seguinte, estava morta. Foi burra. Felika não é burra e não se permite sentir pena de ninguém.

Título original: O vilarejo
Autor: Raphael Montes
Ano: 2015
Editora: Suma de letras
Páginas: 96
             Após receber alguns cadernos – escritos a mão e ilustrados – que pertenceram a  Elfrida Pimminstoffer, uma falecida senhora, Raphael Montes, intrigado com a língua desconhecida e com a história que aqueles documentos guardavam, decide traduzi-los. Depois de passá-los para o português, Montes descobre que a narrativa é dividida em sete partes, cada uma representando um demônio e um pecado capital, e todas as historias se passam em um vilarejo onde os seus moradores, aos poucos, acabam se entregando aos pecados.

Tradutor x autor

            O vilarejo é uma compilação de sete contos inseridos numa historia maior. Para dar um clima de terror e de mistério, Montes inicia a obra dizendo que é apenas o tradutor do livro e não seu autor, o que é nada mais que uma tática utilizada que objetiva passar a ideia de que não se trata de uma narrativa fantástica, mas de uma história real.
            Nesse sentido, tanto o prefácio quando o posfácio funcionam como uma maneira de agrupar todas as histórias num único contexto: o primeiro apresenta como ele recebeu esses cadernos e os traduziu, e o último relata o que houve após a tradução dos mesmos. Apesar disso dar um clima interessante a história, o que realmente importam são os sete contos. Vamos a eles conferir por quê.


Sete pecados? De novo?

            A ideia de pegar os sete pecados para criar uma historia é um tanto quanto batida, entretanto, o autor consegue desenvolver isso de uma forma que não incomoda o leitor, pois os pecados funcionam apenas como um fio condutor da história e não como fins em si mesmos. Tanto é assim que durante a leitura nós acabamos pouco nos importamos em pensar sobre qual dos sete ele está se referindo (mesmo alguns sendo bem óbvios), e apenas aproveitamos a história.
            Todos os contos podem ser lidos individualmente porque se sustentam sozinhos, mas o que torna o livro ainda melhor é como essas historias estão ligadas umas às outras. Uma vez que todos os personagens moram no mesmo vilarejo, eles se cruzam em diferentes contos, e o que pode ser meramente um detalhe na história de um, pode justificar um acontecimento maior na história de outro. As narrativas também se encontram em tempos diferentes, algumas se passam uns anos antes da anterior e outras depois. Apesar da organização da obra não ser cronológica, não há uma distancia temporal muito grande entre umas e outras.
            Os moradores desse vilarejo, ao longo da leitura, vão se unindo pelos pecados praticados por cada um, com isso Montes consegue explorar a maldade humana a partir de perspectivas diferentes, desde a maldade mais crua e bestial até aquela que se mostra disfarçada de belas intenções. Com isso, uma pergunta que permanece conforme avançamos é: Essa maldade sempre esteve presente na vila ou existe algo além agindo na pacata vida dessas pessoas?   


O mal em cada um

            Por conta dos demônios que nomeiam cada conto e de algumas passagens das histórias, certa “aura sobrenatural” acaba envolvendo os acontecimentos e suscitando interpretações supranaturais, porém, como é sempre o caráter humano que trás todo o terror às histórias, podemos sempre duvidar: é o demônio que está por trás do pecado, ou são as circunstâncias e a própria essência do indivíduo que tomaram esse vilarejo? Trata-se de algo sobrenatural ou totalmente social? O homem é mal por natureza ou é tudo influencia do coisa ruim?
            Um dos backgrounds que podemos perceber é que o vilarejo está passando por um frio intenso e também está situado num país em guerra, atenuando os problemas da comunidade. Independente de questões sociais ou demoníacas, é perceptível então que isso agrava o relacionamento entre as pessoas, e é a partir disso que o autor desenvolve criticas sociais bem interessantes. Por estarmos em contato com aquela vila, que é um microcosmo do social, as atitudes individuais acabam ficando mais evidentes do que em uma grande metrópole. Com isso, podemos perceber críticas claras, não apenas as que se referem aos pecados capitais (inveja, cobiça…), mas também questões como o racismo, capitalismo e moralismo. Mesmo limitado à poucas paginas e sem largar o terror, as criticas feitas pelo autor conseguem ser mais estruturadas que o esperado, principalmente no conto sobre o negro, que além de mostrar o racismo direto, também mostra um racismo velado que vai se desvelando aos poucos, e que ao mesmo tempo que afaga, também explora.
            Por fim, após visitar sete historias que escancaram o pior do ser humano, o autor consegue amarrar todos os contos de uma maneira simples e criativa, mostrando que, nas mãos certas, é possível contar boas historias mesmo com assuntos que parecem esgotados.

Devo visitar esse vilarejo?

            Querido leitor, eu recomendo passar longe desse local. Se fossem só os demônios tudo bem, mas essas pessoas não valem nada.
            O vilarejo é o terceiro livro de Raphael Montes (até onde eu sei), e é o primeiro de terror, diferente dos anteriores que eram policiais. A despeito disso, algumas de suas características continuam bem presentes, mesmo num gênero diferente.
            Apesar de gostar mais das obras anteriores (Dias perfeitos e Suicidas), por serem livros maiores e melhores trabalhados, O vilarejo é um livro que merece ser lido por todos que se interessam por terror, ainda mais por ser uma obra nacional. O livro é bem curto e tem uma leitura rápida, ainda mais por conter diversas ilustrações, mas é muito eficiente no que planeja ser: intrigante, tenso e violento.


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