Quanta sofrência cabe aí dentro do
seu coraçãozinho apodrecido, caro leitor do Café? Uma xícara?
Duas? Um bule inteiro e umas gotinhas de adoçante? Quem sabe trezentos e
cinquenta páginas de pura depressão melancólica, enegrecida, lodosa e mal
cheirosa para você sair por aí atraindo morcegos e urubus com sua aura
amargurada?
“Como qualquer outro bilhete de
suicídio, foi curto e direto ao ponto. Estava escrito:
Desculpa, mãe, mas eu estava muito
vazio.
Ele não escreveu um bilhete ao nosso
pai. Nem a nenhum de seus amigos. Nem a mim. Só deixou essas sete palavrinhas
em um post-it amarelo, colado no espelho do quarto. Sua única explicação.
Ainda está lá”
Título original: The last time
we say goodbye
Autor: Cynthia Hand
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 352
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A
superficialidade do abismo
Depois do suicídio de seu irmão
caçula, Lex aceita a recomendação de seu terapeuta de começar a escrever um
diário para lidar melhor com seus sentimentos. A trama apresenta parte desse
processo de cura e desenvolvimento psicológico a partir do que ela escreve
nesse diário.
A
superfície é supérflua?
(umas
palavrinhas sobre crítica literária...)
Existe certa vertente da crítica
literária que, em linhas bem gerais, valoriza o quanto um texto se estende para
além da simples literalidade ou, em outras palavras, quantas camadas de
significados há nele para além daquilo que está meramente escrito.
Por exemplo: quando um poeta como o
Manuel de Barros diz algo como: “Bernardo já estava uma árvore quando eu o
conheci/ Passarinhos já construíam casa na palha do seu chapéu/ Brisas
carregavam borboletas para o seu paletó” podemos interpretar que esse poema diz
respeito a uma pessoa – real ou fictícia – cujo nome é Bernardo. Essa é uma
leitura óbvia e fácil de realizar, que toca o sentido mais literal das palavras
e pode ser concluída a partir de uma única leitura do poema. E não está errada,
embora se restrinja ao que está colocado mais superficialmente no texto.
Apesar de podermos ler “Bernardo”
assim, esse texto também se presta à vários tipos de aprofundamento. Caso
queiramos ir além da literalidade do texto e tenhamos atenção aos verbos, à
colocação dos termos, entre outras coisas, poderemos perceber que as palavras
do poema foram dispostas de maneira a expressar outros significados que podem
ser desvelados por essa leitura mais detida. Quando realizamos uma leitura
assim, bem mais difícil e lenta, o poema
se torna outro que, aliás, é muito mais rico e complexo que aquele do começo,
pois suas palavras e relações passam a suscitar diversos outros sentidos,
postos para além da literalidade das palavras. Aí, o “Bernardo pessoa” pode até
desaparecer e virar outra coisa, completamente diferente, sendo que a resposta
para a pergunta sobre quem ou o quê é Bernardo pode depender do quão longe o
leitor está disposto a ir na interpretação do poema.
Textos como esse, “não literais”,
mesmo quando apreciados logo de cara, têm muito mais a oferecer que uma única
leitura possa revelar, sendo por isso que tanta gente se dedica a abordar
longamente obras densas e a investigar as várias possibilidades interpretativas
que elas suscitam. Por sinal, Manuel de Barros é um ótimo exemplo de escritor
que permite várias leituras, já que podemos ler qualquer poema seu e o achar
“gostoso” e “acessível” sem sequer notar que eles também se presta à leituras
sofisticadíssimas, bem mais difíceis de realizar.
Mas nem todos são Manuel de Barros.
Existem (muitos) textos que não
possuem toda essa densidade interpretativa e cujo sentido se encerra numa única
leitura. Há textos que quando dizem Bernardo estão mesmo tratando de um rapaz
chamado Bernardo e não há outro sentido a ser encontrado aí. Textos assim –
“literais” – têm significados que não vão além do sentido mais imediato posto
por suas palavras.
Com isso, se para analisarmos textos
profundos temos que mergulhar em sua dificuldade e passear longamente em suas
cavernas obscuras, tentando iluminar o que existe lá, para analisarmos textos
superficiais, temos que considerar essa mesma superfície em que eles se
desenvolvem, já que nada existe para além dela. É preciso escorregar nessa
superfície e ver aonde ela nos leva.
(Não)
reconhecimento?
Antes que tomates voem na direção
deste blogue, devo ressaltar que ao fazer essa distinção entre “textos
literais” e “não literais” (que é
totalmente artificial, é bom que se diga, eu só a estou usando para vocês me
entendam) eu não quero, de nenhum modo, inventar aqui uma hierarquia de valor
entre o que é bom e profundo e o que é ruim e superficial, pois todos sabemos
que o superficial pode ser magnífico e o profundo uma porcaria. Nem vou citar
exemplos. Na verdade, ao fazer essa distinção, quero apenas ressaltar que obras
diferentes pedem análises diferentes e que pretendo me adaptar a isso ao fazer
esta resenha.
Quando recebi pela parceria com a
Dark Side O último adeus aqui em casa, essa questão da literalidade foi
a primeira que me coloquei e, basicamente, será ela que orientará esta resenha.
Dito isso, penso que o melhor motivo
para considerarmos que essa obra não deve ser analisada como um livro que
ultrapassa sua própria literalidade é bem simples: a narrativa da obra não
suscita quase nada além daquilo que está em suas próprias palavras, quer dizer,
quando a protagonista diz “eu amava meu irmão” ou “fui pegar um pudim na
geladeira” ela só quer dizer isso mesmo, que amava o irmão e que estava com
fome. A geladeira não é uma metáfora para a condição humana, nem o irmão é uma
alegoria dos nosso afetos ou coisa assim. Não há grandes mistérios por detrás
daquilo que a narradora diz e o livro transcorre inteiramente sobre as linhas
do papel.
Uma consequência que surge daí é que
a mensagem contida na obra se torna imediata e fácil de pegar. Como não existe
muito o que ponderar a respeito do livro, podemos ler O último adeus
rapidamente e sem a necessidade de retomá-lo ou de repensá-lo repetidamente,
além disso, também não surgem dúvidas sobre a validade das palavras da
narradora (como poderia existir se ela fosse mentirosa ou confusa), e vamos
vencendo páginas e mais páginas da verborragia infinita que ela mantém sobre si
mesma sem nem mesmo sentirmos tédio sobre isso, pois o livro flui. Inclusive,
aí está sua força, é uma obra gostosa e fácil de apreciar.
Se num texto “não literal” nos
defrontamos comumente com aquilo que é esquisito, com uma linguagem difícil ou
incomum, com personagens densos que não são imediatamente compreensíveis, com
tramas repletas de referências, sutilezas difíceis de pegar, e assim por
diante, nesse livro existe um tremendo esforço por parte da autora em não nos
demover um centímetro sequer de nossa zona de conforto. O último adeus
nos dá poucos sustos. Durante as mais de trezentas e cinquenta páginas do livro
não somos apresentados a muitas informações sobre assuntos que desconhecemos,
não lemos sobre descrições psicológicas que sejam densas ou tão singulares que
nos causem estranheza, também não acompanhamos uma história que fuja muito às
nossas expectativas, e nem mesmo encontramos uma linguagem que cause qualquer
surpresa – todo o livro é bastante coloquial e descomplicado.
E digo tudo isso sem preconceito ou
nariz torcido, o livro é bem gostoso.
Essa fluidez da obra, porém, não
está ligada só a sua literalidade, mas também ao esforço da autora de fazer com
que exista reconhecimento entre nós leitores e a narradora. A estratégia de Cynthia
Hand é atrair o leitor pela simpatia e pela compaixão, fazendo com que ele se
reconheça na dor da personagem e sinta piedade dela. O formato de diário, que
coloca o leitor diante dos pensamentos mais cotidianos e sinceros da personagem
(sobretudo sua tristeza), funciona muito bem nesse sentido, pois a melancolia
de Lex serve para nos desarmar, aproximando-nos dela e fazendo com que sejamos
benevolentes para com a personagem.
Ademais, como a literalidade da obra
não permite grandes aprofundamentos ou estranhamentos, o livro transcorre nas
camadas mais imediatas dos pensamentos da protagonista, colocando-nos diante
das necessidades mais cotidianas da personagem. Todas as banalidades comuns ao dia a dia dela – aliás, comuns ao
dia a dia de todos – passam a ser compartilhadas conosco, e vamos entendendo a
personagem e desenvolvendo certa familiaridade com ela por estarmos, de certo
modo, também vivenciando sua vida.
Aquela sensação de “ah, eu também”,
“eu te entendo, amiga” é bem comum no correr da leitura e faz parte da
armadilha literária de O último adeus – cuidado, leitor!
Criticando
Como já ressaltei aí atrás, a
literalidade da obra está amarrada à imediaticidade dos pensamentos da
personagem, à fluidez da leitura e outras coisas mais. No geral, esse nó todo
funciona muito bem e me divertiu bastante, mas ele tem também algumas pontas
soltas que eu gostaria de tocar.
Uma delas é a pouca engenhosidade do
livro. Não há muita inventividade nem na personalidade na protagonista, nem na
forma da escrita. De um lado, Lex tem pensamentos bastante lineares os quais
pouco desviam a trama para o inesperado. De outro, a autora escreve com uma
linguagem restrita e que não expressa senão o mais óbvio, além de usar poucos
recursos literários e gramaticais. Exceto pelo aposto. Desse recurso ela abusa.
Muito.
Sobre essa questão da linguagem,
aliás, fiquei com a impressão de que a autora deve escrever todos os livros do
mesmo jeito. Com alguma benevolência, talvez fosse até possível dizer que essa
limitação é, na verdade, um artifício para simular as capacidades próprias de
uma jovenzinha sem tino literário, entretanto, mesmo outros personagens também
estão limitados da mesma forma (o irmão suicida escreve igualzinho a ela, por
exemplo), o que mostra que a limitação é da autora e não da personagem.
O outra ponta solta do livro deriva
do fato de que tudo na obra conduz à interioridade da personagem. Estamos lendo
o diário dela, os pensamentos imediatos dela num momento de tristeza e
isolamento, e justamente no momento em que ela se afastou de todos os amigos,
em que sua família está devastada e pouco se relaciona com ela, e assim por
diante, sendo que esse recuo para dentro de Lex faz com que outros personagens
tenham pouco peso na trama como agentes de suas circunstâncias. Eles tendem a
parecer conceitos sem personalidade, como se a protagonista não conseguisse
lhes dar substância, ou como se eles não fossem pessoas propriamente. De
maneira geral, Lexy pouco fala dos outros com interesse; ela os descreve como
se soubesse exatamente quem são e, igualmente, dá a entender que eles são menos
complexos que ela e mais fáceis de entender. Em função disso, o que tais personagens
dizem ou fazem na história pouco altera o modo de pensar da protagonista e não
lhe abre outros pontos de vista. A trama sempre parte das ações de Lex e da
imagem que ela tem dos outros, que segue inquestionável por quase toda a obra.
A autora deixa poucas brechas para
pensarmos que a protagonista pode apenas estar sendo injusta ou imatura por
achar que sabe o que precisa saber dos outros e que ela mesma é super complexa
e inteligente. Tudo acaba por ficar por demais “ensimesmado”, digamos assim, e,
algumas vezes, entre uma página e outra, bate aquela vontade saudável dar uns
tabefes nessa menina mimada e egoísta.
Particularmente, penso que tais
problemas se devem ao fato de que Cynthia Hand faz parte de um grupo de
escritores – muito popular hoje em dia – que não são propriamente literatos,
mas “pessoas comuns” encontrando expressão numa literatura que também não tem
os requisitos daquela dos livros mais densos. Por isso, a simplicidade, a
superficialidade e todas essas coisas não são só um recurso, mas também o único
modo pelo qual tais autores conseguem se expressar.
O último adeus foge de
simbologias muito densas e tudo o que está nele é óbvio e explicadinho, de modo
que não há perspectivas sinuosas, dúvidas, ou mesmo a necessidade de retomar o
que é lido, já que sua compreensão é imediata e o livro se esgota na fruição de
cada letra. Porém isso não é um problema; é apenas uma característica do tipo
de literatura de que ele faz parte. Dizendo de outro modo, esse livro pretende
ser tal como é, e caso você esteja em busca do tipo de experiência que ele
oferece, provavelmente gostará do que irá encontrar.
A leitura
vale a sofrência?
Consideradas essas coisas todas,
acho que dentro de sua proposta O último adeus é um livro bacana: ele é
gostoso e fluído, atraindo-nos por meio de descrições simples de situações
comuns que nós frequentemente vivenciamos. É um livro sobre o dia a dia e sobre
encontrar motivos para continuar existindo. Além disso, aqueles que gostam de
obras que abordem os desconfortos de todo adolescente com a própria pele ou com
o lugar que ocupa no mundo, encontrarão aí um bom entretenimento também, pois a
obra toda tem uma aura teen.
Aliás, a edição da Dark Side tenta
transmitir isso. Embora seja menos impressionante que outros livros do
catálogo, ela combina bem com a temática do livro, tendo capa dura, diagramação
azul que imita a escrita em caneta no diário, marcas de caneta em todo o
interior (como se alguém tivesse rabiscando freneticamente os espaços em
branco), fita de cetim para marcação de página e um bloquinho de post-it para
você deixar suas próprias mensagens aterrorizantes pela casa.
Apesar da morbidade do tema que leva
toda a trama adiante, como nada é explorado com muita penetração, a leitura
segue de maneira confortável e rápida, sem nos derrubar com aquela densidade
toda que esse tema carrega, o que é algo bem curioso para um livro que é
basicamente sobre sofrimento e suicídio. Por isso, caso você esteja aí com
medinho, saiba que não estamos nem perto de um novo Werther, contudo,
embora a superfície de O último adeus seja mesmo supérflua, ela não é
vazia ou obtusa. Muitas coisas boas e interessantes podem ser vistas na
superfície de um espelho.
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