terça-feira, 27 de setembro de 2016

Literatura: Evangelho de sangue (Clive Barker)


Se você está nesse blog pouco convidativo para as pessoas de bem, é porque você já participou de muitas festinhas e praticou atos, como eu posso dizer, inadequados, que Cristo não aprovaria. Sendo assim, se você ainda não se converteu a alguma religião na esperança de apagar a sujeira do seu passado, você é como nós do Café e já aceitou sua passagem pro inferno e continua usufruindo dos prazeres mundanos enquanto o chifrudo não chega. Não é mesmo?
Apesar dos pecados mortais serem bem divertidos, ouvimos falar por aí que existe uma caixinha capaz de proporcionar uma experiência singular, uma tal de “Caixa de Lemarchand”. Mas calma, isso não é um merchan de Sex Shop, não é nenhum brinquedinho que está à venda. É um objeto que está por ai no mundo e apenas alguns encontram, e por acaso recebemos ela em nossa caixa postal essa semana. E como somos pessoas legais, vamos compartilhar essa experiência com nossos leitores.
Então esqueça tudo que você conhece sobre dor e prazer, e venha abrir a caixa com a gente, hoje iremos muito além dos limites da carne.




“Você contou a ele onde estavam seus manuscritos? ” Poltash inquiriu.
“Com um gancho e uma corrente subindo pelo meu cu e puxando o estômago até as entranhas, sim, Arnold, contei. Eu guinchei como um rato numa armadilha. Então, ele me deixou lá, com a corrente lentamente me estripando, até que tivesse ido à minha casa e trazido de volta tudo o que escondi. Àquela altura eu queria tanto morrer que recordo-me de ter literalmente implorado que ele me matasse. Dei informações que ele nem precisou perguntar. Tudo o que eu queria era a morte. O que, enfim, consegui. E nunca fui tão grato por algo na vida. ”

Título original: The Scarlet gospels
Autor: Clive Barker
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 317
                Harry D’Amour é um detetive que passou a trabalhar em casos sobrenaturais devido ao seu histórico com demônios e criaturas do além. Quem costuma lhe passar os casos é Norma Paine, uma senhora cega capaz de ver e conversar com os mortos, que vão até ela para buscar ajuda e tentar resolver assuntos que ficaram pendentes no mundo dos vivos. É num desses casos que Harry acaba encontrando a “Caixa de Lemarchand” e abrindo o portal para que Pinhead viesse ao mundo dos mortais.

O que queremos? Gore
Quanto queremos? Muito
Vamos ter? ...

            Antes da história principal se iniciar, há um prólogo que desenvolve assuntos que serão importantes ao longo da narrativa. Nessa introdução, um grupo de magos se reúne em frente ao tumulo de um antigo membro para realizar um ritual com o intuito de ressuscitá-lo. Quando o ritual é finalizado, é revelado ao ex-morto que eles buscam ajuda, pois aquele grupo é formado pelos últimos magos que restaram, sendo que todos os outros foram mortos por um demônio que estava caçando um por um em busca de seus segredos, magias e artefatos. E eles são os próximos da lista até não sobrar mais nenhum.
            Após um tempo de conversa, o tão temível demônio (o já conhecido Pinhead de Hellraiser) aparece e se aproveita da situação para dar fim a todos os restantes de uma vez só, mostrando para o grupo que depois de encontrá-lo o único desejo que alguém pode ter é a morte, mas não será algo simples de se alcançar. O sofrimento, a dor e o desespero vão perdurar até o ultimo sinal vital.
            Se você tem problemas, como nós do blog, e adora ver cenas de gore com muito sangue, sexo e escatologias, o prólogo do livro vai te animar bastante. Logo no início do livro ele já te joga um balde de sangue e Tripas na cara ao mostrar o Cenobita em ação, com suas correntes e seu sadismo peculiar, matando um por um das formas mais dolorosas possíveis.
            Mas, infelizmente (pelo menos pra mim), o livro não mantém essa mesma pegada gore do prólogo ao longo da história. Ainda vamos ter bastante sangue e situações bizarras durante a narrativa, no entanto a crueldade vai se apresentar diluída em meio a outros elementos. Ela não será servida pura, como gostamos, mas continua sendo uma iguaria interessante.


O inferno é logo ali

            Se o livro começa com um prólogo de terror, a história de fato se inicia como um thriller sobrenatural e acaba virando uma fantasia, mas falaremos disso mais pra frente.
            Harry D’Amour é o típico detetive canastrão tem problema com bebidas, é assombrado por assuntos do passado, não mede suas palavras, não se importa em fazer coisas ilegais ou encobrir parceiros corruptos, etc. que passa seus dias (ou noites) em bares, remoendo assuntos mal resolvidos, ou lidando com os casos que surgem para ele. Por isso, quando lhe é solicitado, por um recém morto, que vá a sua casa e se livre de coisas estranhas que ele costumava ter e não queria que a família descobrisse, ele aceita o caso rapidamente, tanto pela facilidade e quanto pela recompensa.
            Num primeiro momento ele acredita que está lidando apenas com um pervertido interessado em orgias e fetichismos, mas quando encontra um quarto secreto cheio de artefatos, objetos para magia negra e uma caixa de Lemarchand, ele percebe que o trabalho não seria tão simples quanto o previsto. Atraído pela caixa, ele acaba abrindo o portal para o inferno, trazendo para nosso mundo o cenobita Pinhead, com quem irá travar uma “batalha”, tanto na terra quanto no inferno, literalmente.
            A partir desse ponto o livro vai assumindo ares de fantasia que vão permanecer por todo o restante da história. Isso se dá porque o sobrenatural não se resume à espíritos e demônios, como nas produções de horror, mas também inclui magias, objetos mágicos, pessoas com dons, além disso, o protagonista e alguns amigos/conhecidos irão partir em uma jornada extraterrena no caso, até a morada do capiroto em busca de algo que não preciso dar spoiler. Se eu forçar um pouquinho da até pra falar que é uma mistura de Hellraiser com Senhor dos anéis, mas é preciso de um pouco de imaginação pra aceitar a comparação.
            Se por um lado o “herói” e seus amigos partem em uma aventura pelo inferno, o nosso querido vilão tem planos mais complexos que envolvem toda a estrutura e a hierarquia do inferno.


Prego na cabeça dos outros é refresco

            A narrativa de Evangelho segue por dois caminhos distintos que irão cruzar em determinados momentos. Se por um lado a história tem como foco Harry e seu grupo, por outro vamos acompanhar o próprio vilão, intercalando entre capítulos do detetive e capítulos do Pinhead, algo que, na minha humilde opinião, é uma das coisas mais interessantes do livro.
            Logo nas primeiras páginas, no prólogo, vamos descobrir que Pinhead está caçando os magos, um a um, para roubar seus segredos e se tornar mais poderoso. A partir disso, no desenrolar, o leitor começa a compreender tanto o motivo dele buscar poder, quanto o papel de Harry na história.
            Acompanhar o vilão é particularmente interessante porque passamos a vê-lo não apenas como um demônio sedento de sangue (ou qualquer coisa do tipo), mas como um ser que também tem sentimentos, mesmo que eles sejam cruéis. Agindo de maneira calculista e não apenas por impulso. Com isso o leitor vai partilhando de toda a conspiração desenvolvida por ele para colocar seu plano em pratica.
            A trama do cenobita, em um primeiro momento, vai parecer estranha e não fará muito sentido, mas aos poucos vamos conhecendo os detalhes e compreendendo aonde o autor que chegar. Esses capítulos destinados a ele sempre causam certo estranhamento, porque para entender o que se passa é necessário não apenas conhecer as intenções do vilão, mas também toda a organização do lugar em que ele está inserido, o inferno. Então conforme vamos conhecendo melhor o personagem e, também, a posição que ele ocupa naquela hierarquia infernal, seus planos começam a fazer mais sentido e como tudo aquilo vai relacionar as tramas e o prólogo.


Welcome to Hell

            Outro ponto que merece ser destacado, que no meu ponto de vista é um dos grandes trunfos do livro, é o inferno criado pelo Clive Barker, pois ele não é apenas o local onde irá se passar boa parte do livro, ele é construído de forma que ele tenha uma vida própria. A partir das descrições vamos compreendendo o que é o inferno, e ele não é apenas aquele lugar quente cheio de gente ruim como muitas obras acabam descrevendo, isso é apenas um elemento em meio a tantos outros que vão sendo descobertos pelo leitor.
            Para criar esse inferno Barker vai misturar tanto a mitologia de sua obra, criada em torno dos cenobitas, como também vai se apropriar de diversos elementos do inferno bíblico, tanto que é possível ver algumas referências ao longo da trama, como, por exemplo, um personagem que irá aparecer.
            Durante a trama, sejam as principais ou as paralelas, o leitor vai fazer um passeio pelo inferno junto com os personagens, conhecendo tanto seu aspecto físico e estrutural quanto a sociedade infernal e as histórias que circulam por ali. O inferno construído pelo autor tem uma estrutura bem semelhante à nossa própria sociedade, o que acaba constituindo uma ironia bem curiosa já que o inferno tem problemas semelhantes aos nossos e, tomando as devidas proporções, é possível comparar os demônios aos homens em diversos aspectos.
            Assim como nesse mundinho bizarro que vivemos, o inferno também partilha da organização social e das injustiças causadas por ela (não que sejamos organizados na pratica, mas na teoria a sociedade se diz organizada). No inferno os demônios, assim como os humanos, são divididos por classes e posições sociais, de modo que exista a burguesia, como o próprio Pinhead, que é um sacerdote – os cenobitas são a ordem religiosa do inferno – ou até mesmo os membros do comitê de justiça que irão aparecer em certo momento, e também há os demônios que não fazem parte da “alta cúpula infernal” e são submetidos a morar em favelas ou até mesmo aqueles que são discriminados socialmente por outros demônios e obrigados a viver afastados das cidades (Qualquer semelhança é mera coincidência).
            O desenvolvimento da história nesse ambiente faz com que o leitor fique cada vez mais curioso para compreender melhor seus mecanismos e seus atores, que em muitos aspectos é mais interessante que a narrativa em si.


Pinhead, sangue, inferno, sexo, gore...
Tem como dar errado?

            Gostaria muito de dizer que não, mas, infelizmente, pode. Não me entendam mal, não estou dizendo que o livro é ruim, mas ele está bem longe de ser tudo aquilo que poderia ser.
            Não sei se vocês já assistiram os filmes de Hellraiser, mas se já viram é possível que concordem comigo (se não concordar pode me xingar ai nos comentários). O primeiro filme da franquia é uma das obras primas do terror — tudo nele funciona: a historia é fechada, temos um vilão cruel e enigmático que desperta curiosidade, temos violência e sangue na dose certa, a trama é simples e interessante, e muitas outras coisas. Devido a isso, logo que acaba de assistir você já sai correndo atrás das continuações, pois o filme apresenta os cenobitas, desperta duvidas e você quer saber mais sobre esses seres sado masoquistas tão legais. Só que quando você dá play nas continuações, acaba percebendo que aquilo não é a mesma coisa que o primeiro filme, por mais que elas tenham mortes legais, algumas explicações e novas tramas envolvendo os vilões. No fim das contas, não é aquilo que você espera. Sempre falta algo.
Ao ler Evangelho de Sangue eu senti algo semelhante, assim como as continuações cinematográficas, ele é divertido, entretém, você continua interessado na franquia, mas ainda não é a continuação a altura do original que todos esperamos. É perceptível a grandiosidade da mitologia, mas fica claro que sempre que tentam explorá-la, acabam se perdendo em algum momento, quer dizer, assim como os filmes, o autor tenta ser algo além do que consegue, ao mesmo tempo em que deixa de lado muito daquilo que o consagrou.
Eu tenho a sensação que o universo de Hellraiser é algo que está além das mãos humanas, apesar de ter sido criada por elas. A mitologia foi crescendo de modo que se tornou maior do que ela é de fato, assumindo um papel singular na cabeça de cada um que se interessa pela franquia, permitindo diversas possibilidades e interpretações, com isso, sempre que tentam dar uma continuidade, inclusive seu próprio criador, a produção se torna caótica e sem a consistência necessária para estabelecer seu nome ao lado do original.
Cabe a nós mantermos a esperança de que um dia entreguem uma obra a altura dessa mitologia tão amada por nós, fãs do sangue, sexo e escatologias.


“Pregando” o evangelho...

Independentemente de Evangelho de sangue não atingir minhas expectativas, afinal, quando se trata de Hellraiser eu sempre acabo esperando mais do que deveria, esse é um livro que merece ser lido por todos aqueles que gostam desse universo e/ou se interessam por terror/gore. Meu maior “problema” com o livro em si foi algo pessoal e não um defeito de fato, que é a questão da fantasia. Apesar de gostar de uma coisa ou outra, fantasia não é um gênero que me agrada, essa questão do herói com seus amiguinhos, viajando por um lugar mágico com criaturas fantásticas e derivados, eu, particularmente, tenho um pouco de preguiça, mas sei que muita gente gosta. Evangelho não é de fato uma fantasia, mas tem muito elementos, pelo menos nos capítulos focado no Harry, sem contar que a trama é previsível em alguns pontos.
Quando os capítulos focam em Pinhead, no entanto, o livro ganha sua singularidade. Cliver Barker nos conduz pela mente maquiavélica do vilão, acompanhando os processos e ações do plano que ele arquiteta durante a narrativa. Então quando o livro acabou eu fiquei pensando que o autor poderia ter facilmente descartado a história principal, que é legal mas nada surreal, e ter focado somente na trama do Pinhead desenvolvendo melhor tanto o personagem quanto o próprio inferno, que é composto por diversas estruturas e criaturas que mereciam uma maior atenção.
Evangelho é um livro frenético. Com pouco mais de 300 páginas, sempre está acontecendo alguma coisa e sempre há alguma trama paralela acontecendo, sem contar que, muitas vezes, o capítulo acaba no clímax e você não quer parar de ler pra saber logo o que acontece. Esses dois elementos fazem com que a leitura seja bem fluida e gostosa (se você gostar de umas gotas de sangue na cara), e nunca se torne cansativa. Apesar de pertencer ao mesmo universo de Hellraiser (também publicado pela Darkside) não e necessário ter lido e/ou assistido antes, contudo eu recomendo a leitura ainda assim. Antes ou depois, não importa, mas leia.
Feita a análise do conteúdo, vamos falar de outro ponto muito importante do livro, a edição. O livro foi recebido de parceria com a Darkside, e quando chegou em casa fiquei impressionado (sem contar que os parceiros recebem a edição enrolada em uma corrente), ouso dizer que é minha capa favorita da editora: há mistura entre o universo de Hellraiser com o universo bíblico, fazendo uma capa profana cheia de detalhes e significados que dialoga perfeitamente com o conteúdo. Internamente o livro mantém a mesma qualidade que sempre esperamos: bom tamanho de letra, boa formatação e muitos detalhes.

Enfim, mesmo com defeitos ainda é uma obra de Baker que entretém e causa repulsa, cheia de cenas que só poderiam sair da cabeça criativa e doentia do autor. E, independentemente de qualquer coisa, é sempre bom acompanhar as maldades de Pinhead, ainda mais quando ele é um dos protagonistas. Mas lembre-se, por mais legais que os cenobitas sejam, nunca, em nenhuma hipótese, procure pela Caixa de Lemarchand.

2 comentários:

  1. AMARRADO EM NOME DE PINHEAD. Ótima resenha, adorei os pontos que vcs levantaram. E concordo, a capa é uma das melhores, amarra várias questões e ainda provoca todo mundo. :P

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  2. Não kkkk, eu não aceitei minha passagem para o Inferno, sou cristã, gosto de Jesus, apesar dele ter uns fãs que olhaaa... Deus me livre hahah Mas, estou aqui!!! kkk

    Achei essa ideia da Caixa de Lemarchand interessante, afinal tenho fascinil por caixas fechadas e o que elas guardam, não por acaso utilizo a quase 10 ano o codinome Pandora para circular pelos descaminhos da internet. Não sou uma grande fã de caixas fechadas, o fecho é só um prenuncio do que virá porque nenhuma fechadura dura eternamente então é melhor abrir logo, vê o que há para ser visto e bem... quem conseguir seguir segue... quem não... bem um homem tem que morrer néh?!?! Eu não sou uma grande fã de crueldade crua servida com o sangue ainda escorrendo, gosto dela ao ponto para mais sabe então apressiei essa ideia do livro caminhar mais para uma fantasia, me fez ter vontade de ler ele, coisa que olhando apenas a capa não tive.

    Gosto de livros que abordam e problematizam a realidade na qual vivemos, gosto de ser convidada a pensar sobre essas coisas. Então inusitadamente sua resenha me fez ter vontade de ler o livro, me convidou a da uma chance a ele.

    E não, não vou procurar pela Caixa de Lemarchand, como sou uma pessoa de fé acrescento até que vou pedir a Deus para deixa-la longe de mim, mas acho que esse tipo de coisa para achar ninguém precisa procurar... elas simplesmente acontecem quanto tem que acontecer e ai é respirar fundo...

    Pandora
    O que tem na nossa estante

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