Muito bem,
crianças, sem delongas: quem quer brincar de Edgar Allan Poe?
Titulo original: Morella
Autor: Edgar Allan Poe
Ano: 1835
Paginas: 4
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Nesse conto
curtinho e econômico um narrador um tanto misterioso descreve sua vida a partir
de seu envolvimento com Morela, uma moça versada em leituras de ocultismo, que
começa a arrastá-lo para um mundo obscuro e terrível.
Atenção, caras pálidas!
Esta resenha
é analítica e solta uns spoilers de vez em quando para poder ir mais
fundo no conto, então leia o texto de Poe antes de ler esta
resenha.
Como se conta o conto?
Há muito o
que dizer a respeito desse texto, mas antes de tudo eu gostaria de abordar um
pouco a maneira pela qual ele é escrito para somente depois abordar seu
conteúdo. Particularmente, conheço pouco a respeito de Poe e pouco a respeito
daquela maneira singular como ele entendia a literatura, apesar disso, algumas
coisas acerca de seu modo de escrever são perceptíveis mesmo para leitores
leigos como eu e tentarei ressaltá-las a seguir.
Uma das mais
interessantes, a meu ver, que aparece também em outras obras que li desse
autor, é que seu texto frequentemente suscita outro texto, ou melhor, seu conto
conta outro conto. A princípio, podemos ler Morela e entender sua trama
numa boa, pois não há dificuldade na linguagem, nem muitas voltas em torno de
raciocínios difíceis. De parágrafo em parágrafo, o narrador já inicia e termina
um raciocínio, avança anos no tempo ou conclui um pensamento, sendo que a
leitura decorre de forma ágil e o conto é curtinho se considerarmos a
quantidade de informação e tempo que condensa. A despeito disso, em vários
pontos fundamentais o narrador evita explicar por que as coisas ocorrem como
ocorrem ou por que são como são, limitando-se a descrever o que acontece sem porém
dizer por que as coisas se dão desse ou daquele modo. Dizendo de outra forma,
lemos sobre o horror, lemos sobre o medo, sentimos horror, sentimos medo, mas
afinal por que há horror, por que há medo? O que especificamente suscita tais
coisas? Apesar da facilidade da leitura, o conto parece esconder mais que
apresenta e quando nos perguntamos pelas razões dos eventos da trama as
sugestões do narrador nunca são suficientes para nos dar certezas. Suas
sugestões são quase sempre lacônicas e é o leitor quem completa o sentido das
frases, quem preenche a lacuna do texto e cria interpretações para entender a
economia verbal do poeta. Assim, ao lermos Morela, precisamos criar para
nós mesmos uma espécie de segunda história – ou “conto dentro do conto” – para
fazermos com que a história original funcione. Quando lemos algo que parece
lacunar, pensamos numa explicação ou num sentimento que complete tal lacuna e
formamos, paralelamente ao que está escrito, um segundo texto. O que realmente
assustou o narrador quanto à sua esposa? Por que ele é repelido pelo ocultismo
dela se foi justamente esse ocultismo que o atraiu para ela a princípio? Até
existem indícios no texto que sugerem respostas a essas perguntas, mas não há
nele uma frase sequer que sirva como resposta absoluta, sendo o leitor quem dá
inteligibilidade ao conto ao imaginar razões não escritas, ao contar para si o
conto que existira detrás do conto escrito.
A bem dizer,
aí está a graça do texto: sem entregar tudo ao leitor, Poe o faz notar que por
detrás das coisas descritas é que está aquilo que as explica, nas profundezas
do conto é que jaz o conto verdadeiro ou a razão do conto, todavia, como a
única coisa a qual acessamos é o texto escrito e o texto oculto é nada mais que
uma conjectura, ficamos com somente uma imagem tépida disso que não podemos
acessar. Sem termos razões para dar sentido à história e explicar seus
acontecimentos, restam-nos apenas sentimentos vagos e fracamente racionais
quanto ao oculto.
De um lado,
isso faz do texto um terreno repleto de fendas e rachaduras deixadas lá
justamente para que o leitor tropece e experimente um desconforto aqui, um
temor ali e assim consecutivamente até que, sem saber exatamente do que tem
medo, passe a carregar um sentimento denso quanto ao que leu. Não é anormal,
portanto, quando muita gente, ao discutir esse autor, converse antes sobre
sentimentos e a experiência da leitura que sobre a interpretação adequada do
texto, uma vez que ele não cede ao leitor razões suficientes para ser explicado
e, apesar disso, parece conter uma explicação, parece querer dizer alguma coisa
mesmo que ela não seja lá muito clara. Essa coisa pouco nítida acaba
sobrevivendo no leitor como um sentimento de que algo não está no lugar.
De outro
lado, esse laconismo faz com que coloquemos em dúvida o próprio narrador e seus
motivos reais para ser tão sucinto, já que um narrador que deixa lacunas é
possivelmente um sujeitinho mentiroso que quer ocultar detalhes constrangedores
do leitor, ou alguém cuja descrição das coisas não é lá muito confiável.
Existem variados momentos no conto em que podemos levantar dúvidas desse tipo e
perguntar, por exemplo, quais foram as razões que levaram o narrador a agir como agiu ou por
que ele esconde seu nome e os detalhes que poderiam identificá-lo, existindo
bons motivos para não confiarmos plenamente no narrador e para pensarmos que
pode existir, escondido de nós leitores, uma verdade não escrita, pronta para
derrubar as dissimulações do narrador caso seja descoberta.
De um modo ou
de outro, a estrutura do conto leva o leitor à sensação e ao pensamento de que
existe algo para além da superfície das coisas que não podemos acessar de
maneira racional e direta, sejam as razões que temos que construir para
preencher as lacunas do texto, sejam as coisas que o narrador esconde. Na
verdade, esse é um dos temas centrais da história, pois é a propensão do
narrador ao ocultismo que o leva a se casar com Morela, uma mulher que ele não
ama mas que conhece coisas misteriosas que o fascinam, e é também esse propensão
que o faz se envolver mais e mais com aquilo que, por fim, o aterrorizará.
Peguemos então nosso candelabro para explorar essa temática obscura.
O que o conto oculta?
Lendo Morela
não ficou muito claro para mim a que tipo de literatura sobre ocultismo o
protagonista e sua esposa tinham acesso. O fato do narrador não citar nomes
pode tanto indicar que não faz a menor diferença quem seriam tais ocultistas,
ou que qualquer leitor da época sabia exatamente quem eles eram, sendo
desnecessário mencioná-los. Bem, deem aí seus palpites: Mesmer? Swedemborg? Blavatsky? Rudolf
Steiner? Kardec? Sinceramente não sei. O século de Poe era povoado por
gurus, charlatãos, místicos e outros
que, embora nem sempre tenham ficado famosos em sua origem, acabaram entrando
para a história.
Seja como
for, ainda que eu não seja capaz de ligar o conceito de ocultismo de Morela a
essas religiões, posso no entanto demostrar como tal conceito opera dentro do
conto.
Independentemente
de sua identidade, o narrador diz que não amava Morela e que seu casamento foi
motivado por um interesse a respeito dela que, malgrado fosse genuíno, não era
porém amoroso. Mas o que o interessava especificamente? Podemos apontar algumas
elementos, mas, a meu ver, não há uma resposta clara no texto acerca disso,
pois embora o narrador faça descrições de sua esposa e dos gostos que ela
tinha, não há nenhuma frase que diga diretamente como ela o fascinava e como o
interessava. A partir da descrição que ele faz de Morela vamos subentendendo
que ela o fascinava em alguma medida e que aquilo que a envolvia também, mas
como o narrador jamais diz especificamente o quê e como (pois se dissesse,
acabaria tendo que falar sobre si mesmo, algo que ele não quer), o conto
progride por certo subentendimento das coisas e das relações entre os
personagens. Aliás, o curioso a esse respeito é que o subentendimento é
proposital e que isso que não é dito ou explicado dá toda a substância do
conto.
Assim, quando
as coisas começam a ficar estranhas entre o narrador e sua esposa e o relacionamento deles começa a decair, muito
mais forte que qualquer motivo alegado, são os motivos ocultos e subentendidos
dessa decadência. A Morela descrita pelo narrador, ou melhor, a Morela que
aparece, a esposa zelosa com um interesse peculiar pelo oculto, é muito menos
assustadora que a Morela subentendida e que efetivamente põe medo. Com o tempo,
a personagem não é melhor explicada; ela permanece misteriosa, mas o medo sobre
o que ela é vai se afirmando com mais clareza, aumentando sutilmente sem que
sequer saibamos bem – nós e talvez até o narrador – por que tal mulher nos
atemoriza.
Como filosofa o conto?
Além da
menção aos ocultistas, alguns filósofos também são mencionados no conto,
contudo, não me é clara a relação que o narrador deseja estabelecer entre eles,
exceto por uma que ele mesmo ressalta: a questão da identidade pessoal para
Locke.
Acho que não
é o caso de se expôr longamente aqui sua filosofia, mas algumas palavrinhas
sobre esse tema da identidade podem ser interessantes para pensarmos o conto,
principalmente por que o narrador endossa a maneira o filósofo entende o
assunto.
Em
pouquíssimas palavras: Locke defendia que a partir de nossas memórias do
passado e do presente desenvolvemos uma espécie de consciência da continuidade das
coisas, com diversas memórias ligadas entre si por meio de espécie de tecido
mental em que elas se concatenam e se explicam, sendo aí que está nossa
identidade, nessa consciência da continuidade. Em vez de crer numa espécie de
substrato do pensamento, como acreditava por exemplo Descartes, Locke defendia
que nossa identidade dependia fundamentalmente do que lembramos e de como
agrupamos nossas memórias como indivíduos psicológicos.
No conto o
narrador estabelece duas relações com essa temática.
A primeira é
que ele concorda com Locke quanto à questão da identidade pessoal, crendo na
noção de consciência como algo que está acima de nossos pensamentos regulares e
que lhes dá certa inteligibilidade ao agrupá-los como “nossos pensamentos”.
A segunda é que,
a despeito de sua concordância com o conceito de Locke, ele ainda está
interessado em outra coisa que não tem necessariamente relação com o filósofo,
que é saber se nossa identidade pessoal tem algum tipo de independência em
relação ao nosso corpo, pois caso tenha, então ela talvez possa sobreviver à
morte dele, no entanto caso não tenha, então o fim do corpo é igualmente o fim
de nosso “eu”.
A trama de Morela
levanta questões tanto acerca do tema da identidade pessoal quanto do tema da
sobrevivência dessa identidade com o fim do corpo. Ambos surgem quando a
personagem – olha o mega spoiler! – pare uma filha que é estranhamente
semelhante à mãe, quase uma continuidade dela. Mas a identidade pode passar de
um corpo para outro? Os filhos podem dar continuidade à identidade dos pais de
algum modo? O pasmo do narrador diante dessas questões e sua relutância em
aceitar naturalmente a semelhança entre mãe e filha movimentam o conto mais ou
menos a partir de sua metade. A partir do momento em que é preciso escolher um
nome para a filha, uma palavra que a batize e diga quem ela é, o narrador é
forçado à consciência. Quem seria sua filha? Que nome daria sua identidade? Só
uma resposta é possível.
E nada mais?
Com Morela
o Café continua na pista do desafio #12MesesDePoe, que já
conta com vários textos do bigodudo abordados aqui no blogue e também em outros
blogues que também integram a brincadeira, aliás, é bem legal comparar as
análises e conferir como cada um lê um mesmo conto.
No todo, Morela
me divertiu bastante, fazendo com que eu quisesse ler mais Poe e,
principalmente, que eu quisesse me aprofundar no ponto de vista dele, contudo,
na hora de analisar o conto e tentar ir além da mera diversão de leitor,
confesso que sofri bastante, pois não tenho muito conhecimento acerca desse
autor, que não é assim tão acessível quando queremos realmente descer sem
tochas nas catacumbas que ele abre. Nesse sentido, espero que essa resenha
possa contribuir para que a experiência de desbravar essa leitura possa ser um
pouquinho mais que divertida: intensa.
O mestre Edgar Alan Poe
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