terça-feira, 20 de setembro de 2016

Literatura: Os condenados (Andrew Pyper)


Pode parecer uma pergunta estranha, mas... você já morreu? Não? Tudo bem, já imaginava que essa seria a sua resposta. Agora tenho uma outra pergunta, se você pudesse morrer por alguns minutos, você morreria só para saber o que te espera ali do outro lado?
Ok, não precisa me responder agora, pode ir pensando enquanto você lê a resenha de “Os condenados”, talvez ela te ajude a encontrar uma resposta sobre isso, se sua/seu irmã(o) deixar, é claro.



Por que eles nos odeiam, se nem nos conhecem?
É como na prisão. Os novatos recebem o pior tratamento porque ainda carregam o cheiro lá de fora. É como se você esfregasse isso na cara deles, apenas por estar ali. Faz com que eles se lembrem da vida, e a única coisa boa de estar lá dentro é que, quando você entra no ritmo, é mais fácil esquecer da prisão. ”


Título original: The damned
Autor: Andrew Pyper
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 332
Danny Orchard teve uma experiência extracorpórea quando esteve clinicamente morto ao sobreviver a um incêndio que matou sua irmã gêmea Ash. Após o evento, ele decide publicar um livro que relata a sua própria morte e, ganhando reconhecimento, ele se torna um escritor de relativo sucesso e passa a dar palestras e acompanhar grupos de pessoas que passaram por experiências semelhantes. Desde o incêndio, entretanto, ele sente que não se livrou da morte sozinho, mas que trouxe o espirito da irmã junto consigo, sempre o acompanhando e interferindo em suas ações. Quando ele se apaixona por uma mulher que passou por uma situação semelhante a dele, começa a perceber que só conseguirá seguir com a própria vida quando se livrar do fantasma que o assombra desde a adolescência.

Irmãos de morte

Os condenados é um thriller sobrenatural que apresenta a busca de Danny Orchard por informações que expliquem certos eventos do passado. A história passa por diversos momentos de sua vida para mostrar os eventos que anteciparam e sucederam o incêndio que tirou a vida de sua irmã e quase o matou.
Conforme a narrativa avança, vamos descobrindo detalhes da vida atual e pregressa do personagem, entendendo seu relacionamento com seus pais e com sua irmã Ash na infância, além disso, como o sobrenatural e a morte sempre estiveram presente em sua vida. Diante dessas revelações, a história vai se amarrando e mostrando as complexidades que envolvem não apenas o incêndio, mas também o pós-vida e, principalmente, a relação entre irmãos.
Assim como outras produções já discutiram o assunto, Andrew Pyper desenvolve sua história a partir do relacionamento entre irmão gêmeos, mostrando como essa característica impacta a vida dos personagens. Será que existe de fato uma união espiritual entre os dois? O mito de que um gêmeo nasce bom e o outro mal é verdadeiro? Será que após a morte de um o outro continua espiritualmente em sua vida? Essas e outras questões são desenvolvidas no decorrer da narrativa para mostrar como Danny e Ash (mesmo morta) se comportam um em relação ao outro, e como tudo isso afeta a vida do protagonista.


Se está difícil viva....

Um dos principais elementos para compreender a história é a vida de Ash antes de sua morte, entretanto, abrindo um parêntese, é sempre bom lembrar que o livro é em primeira pessoa narrado pelo próprio Danny, então todas as informações que temos sobre sua irmã partem dele. Não, não pretendo criar teorias conspiratórias por aqui, mas é um detalhe importante que não pode passar despercebido: sabemos da história apenas pelo seu ponto de vista e não deixa de ser uma visão infantil, pois o incêndio ocorreu quando ainda eram adolescentes.
Ao sermos apresentados aos personagens vamos percebendo que o autor desenvolve a narrativa a partir da perspectiva do gêmeo bom e do gêmeo mal. Ash é sempre mostrada com características de psicopatia: diante dos outros ela é uma garota linda, popular e encantadora, mas quem a conhece de perto sabe que existe muita sujeira por trás de sua aparência. Ela é fria, manipuladora e maldosa. Já Danny, de acordo com ele mesmo, se mostra como o oposto da irmã: ele não é bonito nem popular, entretanto ele parece ser uma pessoa bondosa, pois mesmo conhecendo a irmã e sabendo de todas as suas maldades ele está sempre por perto.
Durante a narrativa o autor vai reforçando a ideia determinista de que Ash é um ser mal e nasceu assim, sem sequer abrir espaço para as influências sociais, porém, nem por isso é possível deixar de pensar nessas questões, afinal, temos apenas um ponto de vista na história toda. Fazendo um paralelo com o tema central de Menina Má acerca da origem da maldade, podemos questionar se essa maldade de Ash é de fato biológica/espiritual ou se ela foi se tornando assim. Sabemos que depois do nascimento dos gêmeos a mãe começou a beber e o pai a ficar cada vez mais no escritório para evitar os filhos. Segundo o narrador, isso é culpa de Ash, que levou os país a buscarem um escape para não terem que lidar com os problemas da filha, sendo que essa ausência dos pais fez com que parte dos problemas recaíssem sobre Danny, que não tinha a opção de se afastar da irmã e acabava sendo intimidado pela mesma. Partindo desse princípio podemos levar em consideração que há a possibilidade da maldade de Ash ser algo que foi se intensificando devido à ausência e a falta de referenciais, pois a única pessoa que estava por perto era o próprio irmão de mesma idade.
Essa responsabilidade (ou medo) que Danny tem com a irmã, mesmo sabendo de todos os podres da mesma, não permite que se afaste, independente das questões e de vontade. Estando sempre por perto para ajudá-la. Quando acorda, após o acidente, e descobre que sua irmã está morta, ele acredita que vai encontrar algum sossego, mas...


Imagine morta

            Quando sai do hospital, mesmo havendo uma ligação entre os dois, Danny sente uma certa tranquilidade por saber que a irmã está morta, afinal, ela sempre foi um peso e ele nunca conseguiu se afastar dela devido a influência que Ash exercia sobre sua pessoa. Ou seja, acima de tudo, a morte da irmã representava a sua própria liberdade porque até então sua vida estava vinculada a ela, sempre em segundo plano, o que o fazia ser tratado como o irmão sem graça da garota popular.
            Não muito tempo depois, o protagonista vai descobrir que a liberdade é uma ilusão e que Ash sempre estará presente em sua vida, acompanhando seus passos e julgando cada uma de suas atitudes. Por algum motivo, mesmo depois de morta, Ash ainda está próxima, sempre fazendo aparições para o irmão e atrapalhando a sua vida, tanto que ele não consegue manter relacionamentos devido ao ciúme da irmã, que encontra um meio de atrapalhá-lo. Isso tem um grande impacto psicológico em Danny: ele carrega a irmã com ele sempre, como uma culpa ou um assunto mal resolvido que não consegue encerrar. É possível ver as consequências disso no próprio dia a dia do protagonista, já que ele não tem muitos amigos, não mantém relacionamentos e sua principal atividade está relacionado à morte da irmã.
            Dependendo da leitura que você fizer do livro, as aparições da irmã podem ser vistas como um reflexo do trauma e de todos os sentimentos mal resolvidos que ele ainda carrega
Com o tempo, Danny vai se acostumando com a vida sem graça e aceitando que ele está destinado a viver sozinho e ser atormentado pela irmã, como em toda a sua infância. Mas algo surge para mudar tudo isso.
Sim leitores do Café, por mais piegas que isso possa parecer, é o amor que mexe com sua cabeça e deixa Danny assim.

Amor(te)

Devido a perseguição da irmã, Danny não consegue ter uma vida muito empolgante, como se vivesse numa gaiola, limitado aos brinquedos postos dentro dela e, cada vez que tentasse escapar, teria sua irmã de volta para infernizá-lo. Por esse motivo o protagonista limitou suas relações sociais e românticas, sendo que após sua “ressurreição” ele escreve seu livro sobre o que ele viu enquanto estava morto e acabou fazendo da sua morte seu meio de vida, dando palestras e participando de grupos. Assim, mesmo continuando vivo, é a morte que manda em sua vida e ele não faz nenhuma outra atividade ou tem algum outro relacionamento que não seja pautado nisso.
Quando o protagonista conhece e começa a se relacionar com Willa e seu filho Eddie, ele encontra o pedaço de vida que sempre lhe faltou. Pela primeira vez tem perspectiva de felicidade e um motivo pra viver que não fosse pela própria morte, de modo que, mesmo com os ataques da irmã, ele começasse a buscar meios de resolver os problemas do passado.
Isso acaba sendo o mote principal de toda a trama, como se o autor desenvolvesse toda a narrativa para discutir e mostrar essas situações e pessoas na vida que fazem você erguer a cabeça e enfrentar todos os problemas. Danny sempre foi um bundão que nunca teve coragem de assumir a própria vida e sempre viveu à margem da irmã. Apesar de conseguir superar a morte diversas vezes ele, nunca fez sua existência valer a pena, mantendo uma vida medíocre e sem graça. Quando Willa surge, é como se ele levasse um tapa na sua cara que mostrasse que há muito mais para fazer do que ficar sendo intimidado por uma morta. Se você não lida com os fantasmas do passado você acaba se tornando o fantasma de sua própria vida.
Com isso, o protagonista acorda e decide enfrentar irmã e/ou seus traumas para conseguir começar uma vida ao lado de Willa e Eddie, contudo, para fazer isso ele vai precisar desenterrar algumas sepulturas do passado.


Burn baby burn

Apesar de Os condenados abordar todos esses temas (ligação entre irmãos, busca pela felicidade, traumas do passado, etc.), toda a sua narrativa é construída como um thriller sobrenatural. Mesmo desenvolvendo alguns temas pra você pensar, a intenção do autor é levar o leitor numa jornada investigativa, com mistérios, reviravoltas e uma pitada de terror.
Quando Danny decide de fato enfrentar a irmã, ele sabe que isso não será tão simples, afinal ela está morta e é intocável. Então ele tem que encontrar os meios para atingi-la, começando, por exemplo, por descobrir os detalhes da sua morte. É que mesmo depois do incêndio, sempre houve uma fumaça negra encobrindo os fatos: quem estava no local, quem começou o fogo, o que Ash estava fazendo lá, entre outas coisas, sendo que o protagonista acredita que um dos motivos de sua irmã continuar a perturbá-lo é devido a sua incapacidade de compreender sua morte.
Durante a trama Danny vai a fundo na breve vida da irmã, e em sua própria, para desvendar tudo aquilo que ele nunca entendeu. E nessa busca, que não se resume ao plano terreno, ele vai descobrindo detalhes sobre todos aqueles que estavam ao seu redor durante sua infância e, também, os motivos que permitem Ash transitar entre os dois mundos, além de toda a verdade que há por trás daquele fatídico dia que quase tirou sua vida, mas que permitiu ter uma perspectiva maior sobre o depois.


Heaven & Hell

Além do aspecto thriller, que mostra todo o percurso do personagem para descobrir sobre seu passado, suas conversas com pessoas que os conheciam e sua investigação dos fatos, o livro carrega também um aspecto sobrenatural bem forte, que não se dá apenas pela questão da irmã morta que atormenta sua vida (pois querendo ou não ela pode ser um reflexo psicológico do trauma). Na verdade, em diversas passagens o protagonista vai transitar entre a vida e a morte, e uma vez que você está morto, existe o paraíso e o inferno. (Mas lembre-se que isso é um livro de ficção, então não criem esperanças: todos sabemos que a existência não tem sentido nenhum e que tudo que nos espera após a morte é o nada.)
O autor desenvolve uma ideia de céu e inferno um tanto quanto simplista e que poderia ser muito melhor, mas que funciona na história e auxilia o seu desenrolar. Em Os condenados, após a sua morte você pode ir tanto para o paraíso como para o inferno, sendo que o que determina seu destino e como funciona não é muito bem explicado, mas a premissa é simples. Caso você vá para o paraíso você irá reviver o melhor momento da sua vida, relembrar todas aquelas sensações e vivê-las mais intensamente. Já o inferno é o oposto, você revive um momento ruim de sua vida, mas ainda pior.
No livro vamos ter uma perspectiva melhor do inferno do que do paraíso, mas em ambos os casos eu senti que faltou desenvolvimento. Vi muitas resenhas interpretando que o paraíso é um eterno looping de um dia bom, algo que não faz sentido pra mim, pois chegará uma hora que isso se tornaria um inferno. Então não é muito concreto o que o autor quer passar. Sabemos que revivemos momentos bons de nossas vidas, mas não sabemos se é uma repetição, se o tempo avança de um modo diferente ou outra coisa.
Já o inferno, apesar das mesmas questões inconclusivas do paraíso, tem um maior desenvolvimento. Ele não é narrado apenas como o pior dia de sua vida como ele também carrega uma ambientação estranha: o céu nublado, a cidade abandonada, a hostilidade das outras pessoas, etc. Algo que achei interessante no inferno é como o autor se utiliza das outras personagens presentes para fazer alegorias e reflexões sobre o mundo dos vivos, tendo em vista que muitos deles, apesar de serem pessoas, são apresentados como animais ou com características não humanas. Entretanto, algo que não compreendi muito bem é o fato de que, mesmo representando o pior dia do indivíduo, o inferno do protagonista está cheio de outras pessoas que estão dentro dessa mesma situação, como se cada um saísse do seu inferno particular para atormentar Danny em um outro inferno, algo que parece contraditório. (Se eu deixei passar algo que explique essas questões poste nos comentários, por favor)
Sendo assim, mesmo apresentando algumas boas ideias, essa perspectiva do autor sobre “o depois” parece um tanto quanto preguiçosa, quer dizer, falta um maior desenvolvimento dessas questões para convencer o leitor de sua concepção de céu e inferno. Apesar disso, por ser uma perspectiva totalmente centrada no protagonista, há a possibilidade de ser algo particular dele, e que não necessariamente condiz ou existe, talvez fosse apenas um sonho durante o coma.

Ta preparado pro inferno?

Os condenados, cedido em parceria com a Darkside books, segue o mesmo padrão de “o demonologista” (também publicado pela editora), tanto na parte externa, com a capa simulando o desgaste e marcas do tempo, quanto na parte interna. Mais um belo trabalho da caveirinha.
Pra ser sincero eu esperava um pouco mais do livro, mas isso não significa que não gostei. Ele tem boas ideias e um ritmo de leitura bem bacana que nunca se torna cansativo. Apesar de uma coisa ou outra não tão boa, você embarca nessa busca junto com o personagem e se interessa pelo que vai ocorrer ao longo da história. Como já disse, ele é um thriller, então não espere um livro de terror, já que mesmo o sobrenatural é passível de interpretação e não há muitas cenas assustadoras e/ou nojentas, a não ser que você seja bem sensível.
Apesar de eu gostar de O demonologista até mais que de Os condenados, eu sei que muita gente não gostou do primeiro livro do autor por causa do final. Caso você seja um desses, pode dar uma nova chance para o Pyper porque ele segue por caminhos diferentes do livro anterior. Vi muita gente que não gostou do primeiro elogiando este. Portanto, caso já goste do autor ou de thrillers e se interesse por temas sobrenaturais, Os condenados é um livro bem interessante para se ter na estante, mas mantenha longe do fogo e do alcance de crianças, por que ele é altamente inflamável.


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