Pode
parecer uma pergunta estranha, mas... você já morreu? Não? Tudo bem, já
imaginava que essa seria a sua resposta. Agora tenho uma outra pergunta, se você
pudesse morrer por alguns minutos, você morreria só para saber o que te espera
ali do outro lado?
Ok,
não precisa me responder agora, pode ir pensando enquanto você lê a resenha de “Os
condenados”, talvez ela te ajude a encontrar uma resposta sobre isso, se sua/seu
irmã(o) deixar, é claro.
“Por que eles nos odeiam, se nem nos
conhecem?
É como na prisão. Os novatos
recebem o pior tratamento porque ainda carregam o cheiro lá de fora. É como se
você esfregasse isso na cara deles, apenas por estar ali. Faz com que eles se
lembrem da vida, e a única coisa boa de estar lá dentro é que, quando você
entra no ritmo, é mais fácil esquecer da prisão. ”
Título original: The damned
Autor: Andrew Pyper
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 332
|
Danny
Orchard teve uma experiência extracorpórea quando esteve clinicamente morto ao
sobreviver a um incêndio que matou sua irmã gêmea Ash. Após o evento, ele
decide publicar um livro que relata a sua própria morte e, ganhando
reconhecimento, ele se torna um escritor de relativo sucesso e passa a dar
palestras e acompanhar grupos de pessoas que passaram por experiências
semelhantes. Desde o incêndio, entretanto, ele sente que não se livrou da morte
sozinho, mas que trouxe o espirito da irmã junto consigo, sempre o acompanhando
e interferindo em suas ações. Quando ele se apaixona por uma mulher que passou
por uma situação semelhante a dele, começa a perceber que só conseguirá seguir
com a própria vida quando se livrar do fantasma que o assombra desde a
adolescência.
Irmãos de morte
Os
condenados é um thriller sobrenatural que apresenta a busca de Danny
Orchard por informações que expliquem certos eventos do passado. A história
passa por diversos momentos de sua vida para mostrar os eventos que anteciparam
e sucederam o incêndio que tirou a vida de sua irmã e quase o matou.
Conforme
a narrativa avança, vamos descobrindo detalhes da vida atual e pregressa do
personagem, entendendo seu relacionamento com seus pais e com sua irmã Ash na
infância, além disso, como o sobrenatural e a morte sempre estiveram presente em
sua vida. Diante dessas revelações, a história vai se amarrando e mostrando as
complexidades que envolvem não apenas o incêndio, mas também o pós-vida e,
principalmente, a relação entre irmãos.
Assim
como outras produções já discutiram o assunto, Andrew Pyper desenvolve sua história
a partir do relacionamento entre irmão gêmeos, mostrando como essa
característica impacta a vida dos personagens. Será que existe de fato uma
união espiritual entre os dois? O mito de que um gêmeo nasce bom e o outro mal
é verdadeiro? Será que após a morte de um o outro continua espiritualmente em
sua vida? Essas e outras questões são desenvolvidas no decorrer da narrativa
para mostrar como Danny e Ash (mesmo morta) se comportam um em relação ao
outro, e como tudo isso afeta a vida do protagonista.
Se está difícil viva....
Um
dos principais elementos para compreender a história é a vida de Ash antes de
sua morte, entretanto, abrindo um parêntese, é sempre bom lembrar que o livro é
em primeira pessoa narrado pelo próprio Danny, então todas as informações que
temos sobre sua irmã partem dele. Não, não pretendo criar teorias
conspiratórias por aqui, mas é um detalhe importante que não pode passar
despercebido: sabemos da história apenas pelo seu ponto de vista e não deixa de
ser uma visão infantil, pois o incêndio ocorreu quando ainda eram adolescentes.
Ao
sermos apresentados aos personagens vamos percebendo que o autor desenvolve a
narrativa a partir da perspectiva do gêmeo bom e do gêmeo mal. Ash é sempre
mostrada com características de psicopatia: diante dos outros ela é uma garota
linda, popular e encantadora, mas quem a conhece de perto sabe que existe muita
sujeira por trás de sua aparência. Ela é fria, manipuladora e maldosa. Já
Danny, de acordo com ele mesmo, se mostra como o oposto da irmã: ele não é
bonito nem popular, entretanto ele parece ser uma pessoa bondosa, pois mesmo
conhecendo a irmã e sabendo de todas as suas maldades ele está sempre por
perto.
Durante
a narrativa o autor vai reforçando a ideia determinista de que Ash é um ser mal
e nasceu assim, sem sequer abrir espaço para as influências sociais, porém, nem
por isso é possível deixar de pensar nessas questões, afinal, temos apenas um
ponto de vista na história toda. Fazendo um paralelo com o tema central de Menina Má acerca da origem da maldade, podemos questionar se essa maldade de Ash é
de fato biológica/espiritual ou se ela foi se tornando assim. Sabemos que
depois do nascimento dos gêmeos a mãe começou a beber e o pai a ficar cada vez
mais no escritório para evitar os filhos. Segundo o narrador, isso é culpa de
Ash, que levou os país a buscarem um escape para não terem que lidar com os
problemas da filha, sendo que essa ausência dos pais fez com que parte dos
problemas recaíssem sobre Danny, que não tinha a opção de se afastar da irmã e
acabava sendo intimidado pela mesma. Partindo desse princípio podemos levar em
consideração que há a possibilidade da maldade de Ash ser algo que foi se
intensificando devido à ausência e a falta de referenciais, pois a única pessoa
que estava por perto era o próprio irmão de mesma idade.
Essa
responsabilidade (ou medo) que Danny tem com a irmã, mesmo sabendo de todos os
podres da mesma, não permite que se afaste, independente das questões e de
vontade. Estando sempre por perto para ajudá-la. Quando acorda, após o
acidente, e descobre que sua irmã está morta, ele acredita que vai encontrar
algum sossego, mas...
Imagine morta
Quando sai do hospital, mesmo
havendo uma ligação entre os dois, Danny sente uma certa tranquilidade por
saber que a irmã está morta, afinal, ela sempre foi um peso e ele nunca
conseguiu se afastar dela devido a influência que Ash exercia sobre sua pessoa.
Ou seja, acima de tudo, a morte da irmã representava a sua própria liberdade
porque até então sua vida estava vinculada a ela, sempre em segundo plano, o
que o fazia ser tratado como o irmão sem graça da garota popular.
Não muito tempo depois, o protagonista
vai descobrir que a liberdade é uma ilusão e que Ash sempre estará presente em
sua vida, acompanhando seus passos e julgando cada uma de suas atitudes. Por
algum motivo, mesmo depois de morta, Ash ainda está próxima, sempre fazendo
aparições para o irmão e atrapalhando a sua vida, tanto que ele não consegue
manter relacionamentos devido ao ciúme da irmã, que encontra um meio de
atrapalhá-lo. Isso tem um grande impacto psicológico em Danny: ele carrega a
irmã com ele sempre, como uma culpa ou um assunto mal resolvido que não
consegue encerrar. É possível ver as consequências disso no próprio dia a dia
do protagonista, já que ele não tem muitos amigos, não mantém relacionamentos e
sua principal atividade está relacionado à morte da irmã.
Dependendo da leitura que você fizer
do livro, as aparições da irmã podem ser vistas como um reflexo do trauma e de
todos os sentimentos mal resolvidos que ele ainda carrega
Com
o tempo, Danny vai se acostumando com a vida sem graça e aceitando que ele está
destinado a viver sozinho e ser atormentado pela irmã, como em toda a sua
infância. Mas algo surge para mudar tudo isso.
Sim
leitores do Café, por mais piegas que isso possa parecer, é o amor que mexe
com sua cabeça e deixa Danny assim.
Amor(te)
Devido
a perseguição da irmã, Danny não consegue ter uma vida muito empolgante, como
se vivesse numa gaiola, limitado aos brinquedos postos dentro dela e, cada vez
que tentasse escapar, teria sua irmã de volta para infernizá-lo. Por esse
motivo o protagonista limitou suas relações sociais e românticas, sendo que
após sua “ressurreição” ele escreve seu livro sobre o que ele viu enquanto
estava morto e acabou fazendo da sua morte seu meio de vida, dando palestras e
participando de grupos. Assim, mesmo continuando vivo, é a morte que manda em
sua vida e ele não faz nenhuma outra atividade ou tem algum outro
relacionamento que não seja pautado nisso.
Quando
o protagonista conhece e começa a se relacionar com Willa e seu filho Eddie,
ele encontra o pedaço de vida que sempre lhe faltou. Pela primeira vez tem
perspectiva de felicidade e um motivo pra viver que não fosse pela própria
morte, de modo que, mesmo com os ataques da irmã, ele começasse a buscar meios
de resolver os problemas do passado.
Isso
acaba sendo o mote principal de toda a trama, como se o autor desenvolvesse
toda a narrativa para discutir e mostrar essas situações e pessoas na vida que
fazem você erguer a cabeça e enfrentar todos os problemas. Danny sempre foi um
bundão que nunca teve coragem de assumir a própria vida e sempre viveu à margem da irmã. Apesar de conseguir superar a morte diversas vezes ele, nunca fez sua
existência valer a pena, mantendo uma vida medíocre e sem graça. Quando Willa
surge, é como se ele levasse um tapa na sua cara que mostrasse que há muito
mais para fazer do que ficar sendo intimidado por uma morta. Se você não lida
com os fantasmas do passado você acaba se tornando o fantasma de sua própria vida.
Com
isso, o protagonista acorda e decide enfrentar irmã e/ou seus traumas para
conseguir começar uma vida ao lado de Willa e Eddie, contudo, para fazer isso
ele vai precisar desenterrar algumas sepulturas do passado.
Burn baby burn
Apesar
de Os condenados abordar todos esses temas (ligação entre irmãos, busca
pela felicidade, traumas do passado, etc.), toda a sua narrativa é construída
como um thriller sobrenatural. Mesmo desenvolvendo alguns temas pra você
pensar, a intenção do autor é levar o leitor numa jornada investigativa, com
mistérios, reviravoltas e uma pitada de terror.
Quando
Danny decide de fato enfrentar a irmã, ele sabe que isso não será tão simples,
afinal ela está morta e é intocável. Então ele tem que encontrar os meios para
atingi-la, começando, por exemplo, por descobrir os detalhes da sua morte. É
que mesmo depois do incêndio, sempre houve uma fumaça negra encobrindo os
fatos: quem estava no local, quem começou o fogo, o que Ash estava fazendo lá,
entre outas coisas, sendo que o protagonista acredita que um dos motivos de sua
irmã continuar a perturbá-lo é devido a sua incapacidade de compreender sua
morte.
Durante
a trama Danny vai a fundo na breve vida da irmã, e em sua própria, para
desvendar tudo aquilo que ele nunca entendeu. E nessa busca, que não se resume
ao plano terreno, ele vai descobrindo detalhes sobre todos aqueles que estavam
ao seu redor durante sua infância e, também, os motivos que permitem Ash
transitar entre os dois mundos, além de toda a verdade que há por trás daquele
fatídico dia que quase tirou sua vida, mas que permitiu ter uma perspectiva
maior sobre o depois.
Heaven & Hell
Além
do aspecto thriller, que mostra todo o percurso do personagem para
descobrir sobre seu passado, suas conversas com pessoas que os conheciam e sua
investigação dos fatos, o livro carrega também um aspecto sobrenatural bem
forte, que não se dá apenas pela questão da irmã morta que atormenta sua vida
(pois querendo ou não ela pode ser um reflexo psicológico do trauma). Na
verdade, em diversas passagens o protagonista vai transitar entre a vida e a
morte, e uma vez que você está morto, existe o paraíso e o inferno. (Mas lembre-se
que isso é um livro de ficção, então não criem esperanças: todos sabemos que a
existência não tem sentido nenhum e que tudo que nos espera após a morte é o
nada.)
O
autor desenvolve uma ideia de céu e inferno um tanto quanto simplista e que
poderia ser muito melhor, mas que funciona na história e auxilia o seu
desenrolar. Em Os condenados, após a sua morte você pode ir tanto para o
paraíso como para o inferno, sendo que o que determina seu destino e como
funciona não é muito bem explicado, mas a premissa é simples. Caso você vá para
o paraíso você irá reviver o melhor momento da sua vida, relembrar todas
aquelas sensações e vivê-las mais intensamente. Já o inferno é o oposto, você
revive um momento ruim de sua vida, mas ainda pior.
No
livro vamos ter uma perspectiva melhor do inferno do que do paraíso, mas em
ambos os casos eu senti que faltou desenvolvimento. Vi muitas resenhas
interpretando que o paraíso é um eterno looping de um dia bom, algo que
não faz sentido pra mim, pois chegará uma hora que isso se tornaria um inferno.
Então não é muito concreto o que o autor quer passar. Sabemos que revivemos
momentos bons de nossas vidas, mas não sabemos se é uma repetição, se o tempo
avança de um modo diferente ou outra coisa.
Já
o inferno, apesar das mesmas questões inconclusivas do paraíso, tem um maior
desenvolvimento. Ele não é narrado apenas como o pior dia de sua vida como ele
também carrega uma ambientação estranha: o céu nublado, a cidade abandonada, a
hostilidade das outras pessoas, etc. Algo que achei interessante no inferno é
como o autor se utiliza das outras personagens presentes para fazer alegorias e
reflexões sobre o mundo dos vivos, tendo em vista que muitos deles, apesar de
serem pessoas, são apresentados como animais ou com características não
humanas. Entretanto, algo que não compreendi muito bem é o fato de que, mesmo
representando o pior dia do indivíduo, o inferno do protagonista está cheio de
outras pessoas que estão dentro dessa mesma situação, como se cada um saísse do
seu inferno particular para atormentar Danny em um outro inferno, algo que
parece contraditório. (Se eu deixei passar algo que explique essas questões
poste nos comentários, por favor)
Sendo
assim, mesmo apresentando algumas boas ideias, essa perspectiva do autor sobre
“o depois” parece um tanto quanto preguiçosa, quer dizer, falta um maior
desenvolvimento dessas questões para convencer o leitor de sua concepção de céu
e inferno. Apesar disso, por ser uma perspectiva totalmente centrada no
protagonista, há a possibilidade de ser algo particular dele, e que não
necessariamente condiz ou existe, talvez fosse apenas um sonho durante o coma.
Ta preparado pro inferno?
Os
condenados, cedido em
parceria com a Darkside books, segue o mesmo padrão de “o demonologista”
(também publicado pela editora), tanto na parte externa, com a capa simulando o
desgaste e marcas do tempo, quanto na parte interna. Mais um belo trabalho da
caveirinha.
Pra
ser sincero eu esperava um pouco mais do livro, mas isso não significa que não
gostei. Ele tem boas ideias e um ritmo de leitura bem bacana que nunca se torna
cansativo. Apesar de uma coisa ou outra não tão boa, você embarca nessa busca
junto com o personagem e se interessa pelo que vai ocorrer ao longo da história.
Como já disse, ele é um thriller, então não espere um livro de terror,
já que mesmo o sobrenatural é passível de interpretação e não há muitas cenas
assustadoras e/ou nojentas, a não ser que você seja bem sensível.
Apesar
de eu gostar de O demonologista até mais que de Os condenados, eu
sei que muita gente não gostou do primeiro livro do autor por causa do final.
Caso você seja um desses, pode dar uma nova chance para o Pyper porque ele
segue por caminhos diferentes do livro anterior. Vi muita gente que não gostou
do primeiro elogiando este. Portanto, caso já goste do autor ou de thrillers
e se interesse por temas sobrenaturais, Os condenados é um livro bem
interessante para se ter na estante, mas mantenha longe do fogo e do alcance de
crianças, por que ele é altamente inflamável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário