segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Literatura: Fabrica de vespas (Iain Banks)


Você se sente sozinho? As vezes acha que não tem ninguém ao seu lado e tem que resolver os problemas por conta própria? Você já perdeu a única pessoa que parecia ter algum valor? Você tem amigos? Como você extravasa essas frustrações existenciais? Você já pensou em matar algum animal ou alguma pessoa pra descontar sua raiva? Como você lida com a solidão?
Eu realmente espero que você lide essas questões com um psicólogo, e não com a Fábrica de Vespas...
  


“Uma morte é sempre excitante, sempre faz com que você perceba quão vivo e vulnerável está, mas quão sortudo é. Mas a morte de alguém próximo dá uma boa desculpa para que você fique um pouco doido por um tempo, e faça coisas que de outro modo seriam indesculpáveis. Que maravilha seria agir feito um alucinado e ainda assim ganhar a simpatia de todos!”

Título original: The wasp factory
Autor: Iain Banks
Ano: 1984
Editora: Darkside books
Páginas: 233
            Frank é um garoto de 16 anos que vive junto com seu pai em um pequeno vilarejo de uma ilha escocesa. Afastado da cidade grande, sem amigos e sem muita coisa pra fazer, ele passa seus dias, acompanhado de seu fiel estilingue, praticando um dos seus únicos hobbies: matar.

Filho de vespa, vespinha é

O livro é narrado pelo próprio Frank, então conheceremos esse universo em que ele vive a partir de seu próprio ponto de vista, o que é interessante por permitir que o leitor tenha certa proximidade com o narrador, algo que seria difícil caso o livro fosse narrado por terceiros, uma vez que mudaria completamente a forma de tentar compreender o protagonista e suas atitudes.
Calma, não estou dizendo que você vai passar a concordar com as atitudes dele nem nada do tipo, pois e impossível defendê-lo, mas que quero apresentar aqui uma visão mais ampla e menos determinista, para em vez de vermos apenas as suas ações, vermos sobretudo a trajetória que o levou a ser essa criança problemática.
Mas antes de entrar nessa questão, é preciso compreender o meio em que ele vive e as pessoas que o cercam.
A mãe de Frank o abandonou quando ainda era criança, sendo que desde então ele passou a viver só com o pai e com o irmão. Seu pai é um tanto quanto excêntrico, pra não dizer outra coisa: ele é um cientista que tem obsessão pela forma e medida das coisas, e espera que os outros também saibam, como, por exemplo, a medida de cada azulejo e quantos deles são utilizados para compor a parede de casa, etc. Já o seu irmão está preso em uma clinica psiquiátrica devido a alguns eventos que serão contados no decorrer do livro, mas teve uma infância relativamente normal (levando em consideração a situação apresentada da família) junto com Frank, tanto que ele até chegou a ir para a faculdade por determinado período.
É nesse ambiente isolado da Escócia, com a ausência da mãe e cercado por pessoas nem um pouco comuns que Frank irá crescer. Aprendendo e conhecendo o mundo a partir de uma perspectiva diferente das demais crianças de sua idade.
Nem preciso dizer que o protagonista irá crescer um tanto quanto perturbado, né?


A singularidade da vespa

No meu ponto de vista, uma das principais problemáticas suscitadas pelo livro, dentre tantas que ele levanta, é a busca por uma identidade. Apesar de elementos como violência, religião e conflitos familiares serem  recorrentes, todos eles servem para explorar um questionamento maior do protagonista: “quem sou eu?”. Ao longo da resenha vamos compreendendo melhor o por quê disso.
Apesar de viver com o pai, Frank não mantém muitas relações humanas, nem mesmo dentro de casa, com isso, ele passa seu tempo buscando uma forma de se entreter que dependesse somente dele mesmo. Durante a infância ele tinha certa proximidade com o irmão Eric, mas quando Eric se muda para fazer a faculdade ele se vê sozinho, uma vez que seu pai sempre está trancado em seu escritório ou fazendo alguma coisa na cidade. A relação entre Frank e seu pai é totalmente rotineira: eles se encontram nas refeições, trocam meia dúzia de palavras e assim seguem sem que um interfira na vida do outro. Por isso, o protagonista, por meio de seus atos de violência e reflexões sobre a vida, vai tentar descobrir quem ele é, já que, ao interferir na vida de alguns animais e causar danos ao meio a seu redor, ele se sente vivo. Sem esses atos ele passa a não existir nem mesmo pra si, do mesmo modo que não existe (legalmente) para a sociedade.
Como vamos descobrir logo no inicio, Frank é uma espécie de fantasma para o sistema. Devido a uma fase Hippie do seu pai, ele decidiu que não iria registrar o filho legalmente e que iria criá-lo a partir de métodos diferentes do convencional, em que ele teria sua educação pautada mais na natureza que em formulas acadêmicas. Sendo assim, Frank não pode frequentar a escola e nem mesmo outros programas sociais, limitando a sua vida geograficamente e socialmente.
Sem contato com pessoas diferentes, com exceção de seu único amigo – um anão com quem ele se encontra regularmente pra beber na cidade, ele busca refugio pro marasmo de sua vida na violência diária, porque é o único momento em que ele sente não apenas ter controle sobre a própria vida, mas também ser capaz de influenciar a vida do outro. No fundo, ele não tem controle sobre seu próprio “eu”, posto que as escolhas de seu pai limitaram sua vida em diversos sentidos. Com a falta de uma educação formal, uma limitação do ir e vir, uma criação diferente das outras crianças, ele acaba sendo um experimento do seu próprio progenitor. Sem todos esses elementos que lhe foram privados, sua vida está limitada àquela ilha, já que não existe futuro em qualquer coisa que exceda suas fronteiras. Como consequência disso, as atitudes do rapaz, de certo modo, são um reflexo daquilo que ele inconscientemente sente em seu dia a dia, a violência é apenas uma forma de extravasar suas frustrações, mesmo que muitas vezes o próprio personagem não compreenda isso.


O passado e o presente obscuro

            A história começa quando Frank fica sabendo que seu irmão Eric fugiu da clínica psiquiátrica e está foragido, em função disso, o protagonista fica um pouco perturbado com as lembranças do irmão, uma vez que Eric foi a única pessoa com quem Frank teve certa aproximação e admiração, tanto que ele fica chocado ao descobrir que o irmão irá sair de casa para ir cursar uma faculdade em outra cidade. A agitação de Frank com a noticia aumenta ainda mais quando ele começa a receber ligações estranhas de Eric, que são sempre confusas e dão a entender que ele está se aproximando da ilha para o encontro com o pai e o irmão.
            A partir dessas lembranças do irmão e desse desconforto causado por essas ligações, o protagonista começa a rememorar o passado e compartilhar com o leitor algumas situações de sua vida que contribuem para compreender cada vez mais os fatores que levaram Frank a se tornar aquilo que ele é. Outro ponto que tem grande importância para a trama, e que sempre despertou curiosidade no personagem, é o escritório de seu pai, Angus. Desde o início vamos saber que o escritório é uma área proibida para Frank, tanto que seu pai sempre deixa a porta trancada, mas sempre que ele sai, Frank vai lá conferir se ele não esqueceu a porta destrancada para dar uma espiada e descobrir qual é o segredo que seu pai guarda.
            Assim, a história vai avançar a partir do passado (por parte do irmão) e do presente (por parte do pai). Se por um lado o protagonista tenta relembrar os fatos marcantes de sua vida e compreender os mistérios que o cercam, por outro ele tenta lidar com os segredos que seu pai esconde e com a figura do irmão que parece ter voltado para assombrá-lo. E é nessa mistura entre passado e presente que vamos adentrando na historia desses três personagens e percebendo que o ninho de vespas é muito maior que aparenta.
           
Psicopata???

            Nas resenhas que eu li sobre Fabrica de Vespas há um tópico que é predominante em quase todas elas que é a psicopatia do protagonista. Bem dizendo, é totalmente compreensível o porquê disso, afinal estamos lidando com um jovem que tem como principal passatempo matar animais e, como você vai descobrir ao longo da narrativa, ele já matou algumas pessoas. Entretanto, particularmente, durante a leitura, não pensei em Frank como um psicopata.
            Calma lá, antes que você venha me tacar pedras e me chamar de “anticristo comunista satanista defensor de bandido”, não estou absolvendo o protagonista de seus crimes, pelo contrário, é mais do que perceptível que ele não bate bem das ideias. Contudo, no meu ponto de vista, o problema de Frank não é algo patológico, mas sim social, mais especificamente familiar.
            Levando em consideração sua família desfuncional (um pai excêntrico, mãe ausente e um irmão que está internado), sua falta de interação social devido ao isolamento (em seus vários sentidos), os traumas que ele passou na infância (abandono da mãe, afastamento do irmão, um acidente que causou danos a seu corpo), sua maior proximidade com a natureza do que com a sociedade e sua falta de uma identidade própria, é totalmente compreensível esperar um “desvio” comportamental de uma pessoa que cresça nessas condições. Não é possível querer que Frank seja um garoto assim como todos os outros se ele não vive da mesma maneira, e nem mesmo se relaciona com ninguém para ter uma referência em que se basear. Sua vida, seus valores e sua educação se dão a partir de referenciais diferentes, e é impossível que se espere dele um comportamento  “normal”, provindo de uma sociedade que ele desconhece.
            Não estudo psicologia e não sou qualificado pra falar sobre psicopatia, mas me parece que esse conceito não pode ser aplicado a Frank porque ele está a margem disso. Seu comportamento não está relacionado a algo psicológico (aparentemente) mas a uma criação diferente daquilo que se é esperado. Você pode até argumentar que ele é criado com o pai, que já recebeu visita de um familiar ou outro e visita a cidade de vez em quando, entretanto, ele não pertence à aquele lugar e não existe ali. Frank não tem o mesmo contato e nem a mesma sensibilidade que as outras pessoas tem o mundo, sendo impedido a fazer qualquer coisa que esteja fora daquele microcosmo que ele habita. Deste modo, ele acaba criando a sua própria estrutura social (justiça, religião, cultura, arte...) dentro daquele universo que ele conhece, que é a natureza.


Welcome to the jungle, baby

            Como Frank não pertence à sociedade e não foi criado para viver como as outras pessoas, ele busca, inconscientemente, um lugar onde possa se sentir bem, ser relevante no meio, ter relativo poder e não ser um simples excluído. E esse lugar é a natureza nos arredores de sua casa.
            Apesar de ele viver numa casa normal com seu pai, com objetos do cotidiano de qualquer pessoa da época, fica claro que ele não se enquadra naquele ambiente, ele pertence a uma estrutura que ele mesmo criou, dando mais importância para objetos simples e rudimentares (como seu estilingue) ou, até mesmo, coisa criadas por ele (como a máquina de vespas) do que para os aparatos tecnológicos tão cobiçados por jovens de sua idade.
            Boa parte do seu tempo é gasto numa espécie de esconderijo criado por ele, adornado por cabeças de animais empaladas e objetos que tenham algum significado, no qual o protagonista pensa nas coisas do passado e planeja o que irá fazer no resto do dia. O mais interessante é que a partir dessas coisas ele vai criando um modo de vida, que por mais simplório que possa parecer de fora, tem sua complexidade. Da mesma forma que a minha vida e a sua é baseada em diversos valores, a de Frank também é.
            Frank não é um garoto da cidade, mas ele também não é um garoto selvagem. Desde criança ele foi criado dentro de uma casa, com comodidades e artigos tecnológicos, ao mesmo tempo em que cresceu tendo mais contato com a natureza do que com outras pessoas. E isso vai ficando claro conforme a leitura porque ele está em um meio termo, e isso vai moldando sua personalidade. Ele tem o conceito de certo e errado, o que é crime e o que não é, e coisas assim, mas dentro da natureza, o local em que ele passa a maior parte de seu tempo, esses pressupostos não fazem tanto sentido. Por isso, ele acaba adaptando tais questões para sua própria realidade, e vivendo de acordo com a perspectiva que ele mesmo foi criando ao longo da vida.
            O curioso disso é que vez e outra ele entra em contradições que, embora sejam notórias, dentro de seu contexto e da sua lógica fazem total sentido. Um exemplo disso é que em determinado momento do livro ele sente pena de um cachorro que foi maltratado, sendo que seu principal passatempo é caçar animais. Fora de contexto pode parecer hipócrita e sem sentido, mas dentro da cabeça do personagem é algo logico, e você sente isso.
            A grande maluquice do livro é que somos conduzidos pela história por um protagonista totalmente fora dos padrões, que mata animais, já cometeu assassinatos, não é das pessoas mais simpáticas, e mesmo assim nunca estamos 100% com raiva dele. Em alguns momentos sentimos dó ou, até mesmo, rimos de suas piadinhas sarcásticas.
            Isso me leva a duas suposições: ou ele é mesmo essa pessoa perdida e acabamos nos sensibilizando apesar do seu currículo nada amigável ou ele é, de fato esse psicopata e está manipulando todo mundo, afinal, o livro está em primeira pessoa, e como já cansamos de falar, o narrador nunca é confiável.


As engrenagens da fabrica
           
            Como foi dito, o protagonista vai construindo seus próprios valores a partir das experiências e da vida que leva, sendo que uma das coisas mais interessante a esse respeito, que não pretendo expôr em muitos detalhes, é a fábrica de vespas.
            Angus, o pai de Frank, tem um problema na perna que o impede de subir escadas, com isso, o protagonista se apropriou do sótão para usar como refúgio, guardando lá as coisas que ele não quer que seu pai encontre e utilizando o lugar para construir sua fábrica.
            Desde o início da narrativa escutaremos falar da fábrica de vespas, mas é só perto do final que vai ser revelado a sua função e como ela trabalha, então não vou falar muito para não dar spoiler, mas a questão central, que é muito mais importante do que seu funcionamento, é a sua importância e o simbolismo na vida de Frank. Em diversos momentos o protagonista irá citar a fábrica como local onde vai buscar conselhos e respostas, ela é, de certo modo, toda a estrutura do seu modo de vida. Sem a fábrica, a vida de Frank perde muito do seu sentido.
            No início da leitura, não será muito clara a sua importância, mas conforme você vai conhecendo o personagem e observando suas ações, o impacto na vida do personagem fica evidente. É como se a fábrica assumisse o papel da religião e, de certo modo, da justiça na vida de Frank. Como ele tem maior contato com animais e insetos do que com pessoas, ele acaba recorrendo a um artefato externo, já que animais não falam e as pessoas que ele conhece o julgaria, para buscar as respostas ou previsões que ele não encontra.
            Então mesmo percebendo a sua importância, é só quando ele explica o funcionamento que você vai ligando as peças e compreendendo que a fábrica de vespas é algo muito além do que um objeto criado por um jovem problemático.

Devo entrar nesse ninho de vespas?

            Por ser narrado em primeira pessoa e por ter um protagonista que tem uma vida e uma percepção completamente diferente da sua (pelo menos assim eu espero), Fábrica é um livro que vai te causar incomodo do início ao fim. Tudo nele é muito cru: o protagonista joga coisas pesadíssimas em sua cara, como assassinatos e tortura de animais, sem demonstrar o mínimo de remorso ou sentimento, como se ele estivesse narrando algo completamente normal, assim como falaria sobre preparo de uma xícara de café. E é exatamente isso que faz o livro funcionar tão bem.
            Quanto à história, apesar de ter uma premissa simples, ela está sempre te surpreendendo. A cada descoberta sobre o passado do protagonista mais interessado você fica em querer saber o resto dos detalhes, e é partir dessas peças que vão sendo dadas que você vai tentando juntar para descobrir o grande mistério que permeia toda a trama. O mais engraçado de tudo é que quando você se aproxima do final você já montou diversos desfechos na sua cabeça (alguns até mais doentios que o do livro), aí o autor joga na cara algo completamente diferente mas que faz todo o sentido, e você vai lembrando de todos os momentos que ele deu “pistas” sobre essa conclusão e se pergunta “como não pensei nisso? ”. Outro ponto quanto ao desfecho que também me agradou foi o fato dele saber a hora de parar e não entregar todas as respostas. Algumas questões ficam abertas, mas elas são mais importantes e emblemáticas não sendo respondidas.
            Por fim, se você leu até aqui a única coisa que me resta a dizer é: leia. É um livro curto mas que tem bastante personalidade, levando o leitor a refletir sobre diversas questões ao mesmo tempo em que entretém e/ou causa repulsa naqueles que tem o mínimo de sensibilidade.
            A edição da Darkside, recebida em parceria, está incrível como sempre: a capa é simples, porém bem impactante (há uma vespa em baixo relevo no canto superior que dá um charme a mais para o livro). Além dos detalhes já conhecidos e do padrão de qualidade, o livro também traz um prefácio do próprio autor falando um pouco sobre o livro e sobre o início dele na literatura, já que fábrica de vespas é o seu primeiro romance publicado.

            Então, caro leitor, venha visitar esse ninho de vespas, mas não se aproxime muito...


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