Se eu perguntar pra você qual é o
maior filme de terror da história do cinema, provavelmente você irá me
responder: O exorcista. Se eu te perguntar qual é o maior diretor de
terror do Brasil, provavelmente você irá me responder: José Mojica Marins.
Agora me responde uma coisa: Você já pensou em como seria o Mojica fazendo uma
releitura do exorcista?
Vem assistir ao filme com a gente
que você descobre...
Lançamento:
Brasil (1974)
Duração:
100 minutos
Direção:
José Mojica Marins
O diretor de cinema José Mojica
Marins decide aproveitar os feriados de final de ano para passar um tempo na
casa de campo de um amigo, onde terá tranquilidade para descansar e, também,
trabalhar em seu novo roteiro. Seriam as férias perfeitas se não fosse pelos
diversos fenômenos que começam a ocorrer ao seu redor, desde objetos se
movimentando sozinho até pessoas possuídas.
What an
excellent day for an exorcismo negro
Hoje o Café retorna com mais um filme do
Mojica para dar continuidade ao projeto “O Zé Além do Caixão”. Se nos filmes passados abordamos películas que não
tinham a participação do seu personagem mais conhecido — o Zé do Caixão — aqui ele vai estar presente em alguns momentos
da história. Apesar dele ter um peso importante no desenvolvimento, no entanto,
ele não é o centro das atenções, como era na famosa trilogia. O mais importante
em Exorcismo negro não é necessariamente os personagens ou até mesmo a
história e o horror construídos na narrativa, mas sim a brincadeira de
metalinguagem que ele constrói de maneira bem simples e eficiente, mas
falaremos disso mais pra frente.
Antes de começar a resenha de fato
vamos conversar um pouco sobre a situação do Mojica na época.
Se nas resenhas anteriores uma das
coisas que mais falei foi sobre a falta de dinheiro e a dificuldade que o
Mojica tinha para bancar suas produções, aqui ele estava relativamente
tranquilo — essa estabilidade
financeira não ia durar muito, mas durante a produção ela esteve presente.
No início dos ano 70, o nome do
Mojica começou a circular bastante na Europa, aparecendo em diversas revistas
especializadas. Essa repercussão fez com que em 1974 ele fosse convidado para
um evento de cinema fantástico em Paris, onde teve alguns de seus filmes
exibidos e também recebeu um prêmio pelo conjunto de sua obra. A premiação do
Mojica na Europa repercutiu na imprensa brasileira, fazendo com que seu nome
ficasse em evidencia.
Paralelamente a isso, estava
começando a divulgação do filme O exorcista, que teria sua estreia no
final do mesmo ano nas salas brasileiras. Até então as produções de terror eram
deixadas de lado porque não pareciam atrativas, mas quando surge O exorcista
e causa todo esse impacto, um produtor nacional vê uma oportunidade e decide
chamar o Mojica para dirigir um filme sobre exorcismo. Ele lhe dá o livro que
originou o filme e pede pra que ele faça uma releitura da obra, oferecendo um
orçamento três vezes maior do que qualquer outro filme que ele já tenha
dirigido. Mojica passa suas ideias pro Luchetti (roteirista que também
trabalhou em Inferno carnal, O estranho mundo de Zé do Caixão e outras obras do diretor) e pede para que ele escreva o
roteiro. Uma sugestão dada por Mojica é que ele gostaria de trabalhar uma
história que misturasse realidade com fantasia, levando-o a interpretar a si
mesmo no filme.
Na época, alguns críticos não
gostaram muito por ter Mojica perdido um pouco da essência e por ele estar mais
contido, afinal pela primeira vez ele tinha orçamento para fazer o que ele
queria.
Era planejado pro filme estrear
junto com O exorcista, mas devido à censura ele acabou atrasando e só
foi lançado um mês depois. Apesar disso, ele teve um relativo sucesso e se
manteve nos cinemas por quase dois meses. Uma curiosidade interessante é que na
estreia do filme O exorcista o Mojica se vestia de Zé do Caixão e ia nas
filas do cinema pra promover o seu filme que iria estrear algum tempo depois.
Ele conclamava as pessoas a ignorarem o exorcista americano e prestigiar o
brasileiro:
“-
Porque vocês estão interessados nesse demônio americano? Lá nos EUA ninguém
sabe de diabo! Quem sabe de diabo é brasileiro! O diabo é nosso!”
Panorama dado, vamos ao filme.
Férias macabras
O filme inicia com Mojica saindo de
uma filmagem e indo para uma entrevista em que os repórteres o questionam sobre
o prêmio que ele recebeu na França, sobre o próximo filme e sobre quem é mais
importante, José Mojica ou Zé do Caixão? Essa última pergunta terá grande relevância
no decorrer da narrativa, mas trataremos disso quando for o momento.
Após essa cena teremos os créditos
rolando na tela enquanto Mojica é mostrando num barco que está indo em direção
ao sitio de seu amigo —
detalhe pro terno rosa super tendência que ele está vestindo. Chegando ao seu
destino, seremos apresentados aos outros personagens da trama. Na casa teremos
o amigo de Mojica, sua esposa, seu pai e suas três filhas, duas já adultas e
uma criança e, posteriormente, iremos conhecer também o noivo de sua filha.
Logo no inicio já percebemos que há um clima estranho na família: uma das
filhas irá casar, e sempre que o casamento é mencionado a mãe parece inquieta,
como se estivesse escondendo algo. Além disso, na primeira noite já vamos
começar a perceber coisas estranhas, cadeiras se movimentando sozinha e uma
inquietação que persegue o protagonista.
Mojica só vai perceber que há algo
de errado de fato quando ele encontra o pai de seu amigo tendo um ataque em que
ele começa a rasgar as próprias roupa e falar coisas estranhas com uma voz que
não parece a dele (lembra muito a voz do Zé do Caixão). A partir desse ponto a
história vai se desenvolvendo e diversos outros eventos bizarros vão acontecer
e deixar o protagonista cada vez mais intrigado. Sendo assim não contarei mais
do roteiro para não estragar as surpresas, mas como disse anteriormente, as
questões abordadas no filme são até mais interessantes que o próprio
desenvolvimento.
Mojica x Caixão
Durante toda a trama vamos ver o
embate entre o real — José
Mojica — e o ficcional — Zé do Caixão —, uma vez que o Mojica interpreta ele
mesmo. O filme vai criar um jogo que vai mesclar realidade de fantasia, sempre
causando certa estranheza pra quem assiste.
Não
digo que o filme tenha ar documental, muito pelo contrário, ele é uma ficção
que em nenhum momento se apresenta como verdade, mas o diretor e o roteirista
se apropriam da realidade e da situação vivida por Mojica para criar camadas
que tornam a história mais completa, interessante e, até mesmo, crítica. Mas
vamos por partes.
No
início do filme, Mojica dá uma entrevista falando sobre o prêmio que ganhou na
França e também das próximas produções, mas a pergunta mais importante dessa
coletiva é: “Quem é mais importante: Mojica ou Zé”. Mojica vai responder que
logicamente é ele, Zé do Caixão é apenas uma criação sua, é ele que dá vida
para o personagem. Assim que ele fala que o Zé não existe, uma luz da sala que
ele está queima. Assim como esse evento, outras coisas estranhas vão acontecer
sempre que ele menciona algo semelhante ao Zé do Caixão, dando a entender que
existe uma força que está além dele e que o personagem não é apenas uma
criação, mas sim uma entidade independente.
Então
uma das principais questões do filme vai ser esse embate entre criatura e
criador que sempre levanta a questão: será que o Zé do Caixão é apenas um
personagem ou ele existe de fato? Até certo ponto do filme vamos ter apenas
sugestões, só depois iremos descobrir o que está havendo. Essa sacada do filme
é interessante porque ela dialoga diretamente com a vida real do Mojica,
afinal, todos sabemos quem é o criador e quem é a criatura, entretanto, se
observarmos bem a trajetória do diretor, vamos perceber que, de certa forma,
ele foi “dominado” pela sua criação. Às vezes, a criatura se torna tão poderosa
que ela sai do controle.
Ok,
você deve estar se perguntado: isso faz sentido no filme, mas como isso pode
acontecer na vida real? Simples, é só pensarmos na nossa própria relação com o
Mojica. É bem provável que você tenha conhecido o diretor pela figura do Zé do
Caixão. Mesmo hoje em dia, 50 anos depois do lançamento do “Esta noite”, o personagem ainda é
mais conhecido que seu criador. É muito difícil ver alguém falando sobre o
Mojica sem vincular diretamente a figura do Zé, mesmo ele tendo dirigido
diversos outros filmes que não tem relação nenhuma com seu personagem. Um
exemplo claro disso são as diversas participações que ele fez em programas de
TV, quando ele era convidado as pessoas não queriam o José Mojica Marins, o
diretor que produziu diversos filmes com baixo orçamento, as pessoas queriam o
Zé do Caixão, não importa quem está por baixo da capa e da cartola. Sim, isso é
compreensível, mas não deixa de ser triste, afinal ele é muito mais que um
personagem.
Claro
que no filme ele não vai levantar essas questões da vida pessoal do Mojica, mas
é impossível não pensar nessa questão de criatura e criador, ainda mais porque
no filme o Mojica se apresenta de uma forma totalmente diferente. Se na vida
real ele é ridicularizado pela crítica e está cheio de dívidas e problemas, se
colocando no papel de Zé diariamente para conseguir algum dinheiro, no filme
ele é um homem rico, culto e popular que pode negar a existência do seu
personagem mais famoso e tratá-lo como quiser. Não sei se isso é uma forma de
desabafo, mas é algo pra se pensar.
Realidade x Ficção
Voltando
para o filme. Em certo momento haverá um embate entre os dois personagens. E o
mais interessante é que esse encontro entre criador e criatura acontece num
espaço meio lúdico, mostrando que eles estão em atmosferas diferentes, mudando
a tonalidade do filme. O personagem sai do ambiente comum e adentra aquele
espaço infernal e cruel de Zé do Caixão, o que mostra que Mojica criou não
apenas um personagem, mas todo um universo, porque se até certo ponto o filme
parece um filme qualquer de horror/suspense, quando se aproxima do fim fica
claro que estamos vendo um filme do Mojica, pois suas características mais
marcantes estão ali. E por mais que ele tente lutar contra isso, ele nunca vai
conseguir se livrar totalmente.
Mas
o ponto que quero levantar aqui não é o embate entre os dois em si, mas sim as
diferentes interpretações que o filme permite. Desde o início percebemos que há
uma espécie de metalinguagem: o filme começa com a filmagem de uma cena, com o
Mojica interpreta ele mesmo, tendo que lidar com sua criação, etc. Mas o que
torna tudo mais intrigante é pensar até que ponto os acontecimentos do filme
são “reais” ou se tudo não passa da imaginação fértil do Mojica.
No
inicio, ele revela que o título do seu próximo filme vai ser “o tirador de
demônios” e que vai pegar umas férias pra escrever o roteiro, logo, ele já sabe
sobre o que se trata e tem pelo menos a ideia inicial para começar o roteiro.
Sendo assim, quando ele chega na casa do amigo e as coisas estranhas começam a
ocorrer podemos seguir por dois caminhos interpretativos: 1) o Zé do Caixão
está de fato por trás das coisas macabras 2) tudo não passa de um processo
criativo do próprio Mojica, que cria situações a partir dos personagens e
ambientações que ele está observando no dia a dia da família de seu amigo.
Então,
Exorcismo negro acaba sendo um filme que abre diversas possibilidades,
criando diálogos dentro do próprio filme e, também, entre realidade e ficção.
Está pronto pra missa negra?
Apesar
do filme ter sido feito pra aproveitar todo o hype que O exorcista
estava causando, ele não é uma copia barata como tantas outras que vemos por
aí, tanto que a primeira vez que assisti ao filme foi antes de ler a biografia
do Mojica e, tirando pelo título, em nenhum momento eu pensei na obra
americana, nem mesmo como referência. É que, apesar de ambos tratarem de
possessão, eles possuem premissas e desenvolvimentos completamente diferentes.
Exorcismo
negro, diferente das outras
obras do Mojica que já abordamos, teve um orçamento que permitia com que ele
pudesse ir um pouco além: não era um orçamento grande, mas era maior do que
qualquer outro que ele já teve. Um efeito disso que podemos perceber são as
cenas externas, como a cena que ele está no barco, algo impensável se ele
tivesse orçamento reduzido que o obrigaria a focar em cenas feitas em estúdio.
Alguns
críticos da época reclamaram do filme, falando que o Mojica perdeu a essência e
que não era tão intenso quanto as obras anteriores. Em partes eu concordo,
afinal é um filme menos inventivo, se comparado com os primeiros filmes do Zé
do Caixão, que o obrigava a fazer alguns milagres. Entretanto, apesar de eu não
achar esse filme tão bom quanto aos outros, acho injusto esperar que ele
repetisse a fórmula dos outros sendo que ele tinha orçamento pra fazer algo
mais elaborado. E mesmo assim, as cenas finais carregam o DNA do Mojica, é
impossível falar que não é um filme dele.
Enfim,
Exorcismo negro é um filme que mostra um outro lado do Mojica, fica
perceptível que é um filme com mais recursos e que ele tinha maior liberdade
pra fazer o que queria. Não vamos ter muitos improvisos, cenas reaproveitadas
ou outras malandragens pra terminar o filme. É interessante ver como a partir da
ideia de O Exorcista, Mojica e Luchetti conseguiram criar um filme bem
único e diferente, se aproveitando da metalinguagem para criar uma história
simples mas que tem várias camadas e permite diversas interpretações.
Então
acende as velinhas pretas e vem incorporar o Zé com a gente.
Assista aqui
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