quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Resenha: Exorcismo negro


            Se eu perguntar pra você qual é o maior filme de terror da história do cinema, provavelmente você irá me responder: O exorcista. Se eu te perguntar qual é o maior diretor de terror do Brasil, provavelmente você irá me responder: José Mojica Marins. Agora me responde uma coisa: Você já pensou em como seria o Mojica fazendo uma releitura do exorcista?
            Vem assistir ao filme com a gente que você descobre...
  






Título original: Exorcismo negro
Lançamento: Brasil (1974)
Duração: 100 minutos
Direção: José Mojica Marins




            O diretor de cinema José Mojica Marins decide aproveitar os feriados de final de ano para passar um tempo na casa de campo de um amigo, onde terá tranquilidade para descansar e, também, trabalhar em seu novo roteiro. Seriam as férias perfeitas se não fosse pelos diversos fenômenos que começam a ocorrer ao seu redor, desde objetos se movimentando sozinho até pessoas possuídas.

What an excellent day for an exorcismo negro

            Hoje o Café retorna com mais um filme do Mojica para dar continuidade ao projeto “O Zé Além do Caixão”. Se nos filmes passados abordamos películas que não tinham a participação do seu personagem mais conhecido o Zé do Caixão aqui ele vai estar presente em alguns momentos da história. Apesar dele ter um peso importante no desenvolvimento, no entanto, ele não é o centro das atenções, como era na famosa trilogia. O mais importante em Exorcismo negro não é necessariamente os personagens ou até mesmo a história e o horror construídos na narrativa, mas sim a brincadeira de metalinguagem que ele constrói de maneira bem simples e eficiente, mas falaremos disso mais pra frente.
            Antes de começar a resenha de fato vamos conversar um pouco sobre a situação do Mojica na época.
            Se nas resenhas anteriores uma das coisas que mais falei foi sobre a falta de dinheiro e a dificuldade que o Mojica tinha para bancar suas produções, aqui ele estava relativamente tranquilo essa estabilidade financeira não ia durar muito, mas durante a produção ela esteve presente.
            No início dos ano 70, o nome do Mojica começou a circular bastante na Europa, aparecendo em diversas revistas especializadas. Essa repercussão fez com que em 1974 ele fosse convidado para um evento de cinema fantástico em Paris, onde teve alguns de seus filmes exibidos e também recebeu um prêmio pelo conjunto de sua obra. A premiação do Mojica na Europa repercutiu na imprensa brasileira, fazendo com que seu nome ficasse em evidencia.
            Paralelamente a isso, estava começando a divulgação do filme O exorcista, que teria sua estreia no final do mesmo ano nas salas brasileiras. Até então as produções de terror eram deixadas de lado porque não pareciam atrativas, mas quando surge O exorcista e causa todo esse impacto, um produtor nacional vê uma oportunidade e decide chamar o Mojica para dirigir um filme sobre exorcismo. Ele lhe dá o livro que originou o filme e pede pra que ele faça uma releitura da obra, oferecendo um orçamento três vezes maior do que qualquer outro filme que ele já tenha dirigido. Mojica passa suas ideias pro Luchetti (roteirista que também trabalhou em Inferno carnal, O estranho mundo de Zé do Caixão e outras obras do diretor) e pede para que ele escreva o roteiro. Uma sugestão dada por Mojica é que ele gostaria de trabalhar uma história que misturasse realidade com fantasia, levando-o a interpretar a si mesmo no filme.
            Na época, alguns críticos não gostaram muito por ter Mojica perdido um pouco da essência e por ele estar mais contido, afinal pela primeira vez ele tinha orçamento para fazer o que ele queria.
            Era planejado pro filme estrear junto com O exorcista, mas devido à censura ele acabou atrasando e só foi lançado um mês depois. Apesar disso, ele teve um relativo sucesso e se manteve nos cinemas por quase dois meses. Uma curiosidade interessante é que na estreia do filme O exorcista o Mojica se vestia de Zé do Caixão e ia nas filas do cinema pra promover o seu filme que iria estrear algum tempo depois. Ele conclamava as pessoas a ignorarem o exorcista americano e prestigiar o brasileiro:
                  
             “- Porque vocês estão interessados nesse demônio americano? Lá nos EUA ninguém sabe de diabo! Quem sabe de diabo é brasileiro! O diabo é nosso!”

            Panorama dado, vamos ao filme.

Férias macabras

            O filme inicia com Mojica saindo de uma filmagem e indo para uma entrevista em que os repórteres o questionam sobre o prêmio que ele recebeu na França, sobre o próximo filme e sobre quem é mais importante, José Mojica ou Zé do Caixão? Essa última pergunta terá grande relevância no decorrer da narrativa, mas trataremos disso quando for o momento.
            Após essa cena teremos os créditos rolando na tela enquanto Mojica é mostrando num barco que está indo em direção ao sitio de seu amigo detalhe pro terno rosa super tendência que ele está vestindo. Chegando ao seu destino, seremos apresentados aos outros personagens da trama. Na casa teremos o amigo de Mojica, sua esposa, seu pai e suas três filhas, duas já adultas e uma criança e, posteriormente, iremos conhecer também o noivo de sua filha. Logo no inicio já percebemos que há um clima estranho na família: uma das filhas irá casar, e sempre que o casamento é mencionado a mãe parece inquieta, como se estivesse escondendo algo. Além disso, na primeira noite já vamos começar a perceber coisas estranhas, cadeiras se movimentando sozinha e uma inquietação que persegue o protagonista.
            Mojica só vai perceber que há algo de errado de fato quando ele encontra o pai de seu amigo tendo um ataque em que ele começa a rasgar as próprias roupa e falar coisas estranhas com uma voz que não parece a dele (lembra muito a voz do Zé do Caixão). A partir desse ponto a história vai se desenvolvendo e diversos outros eventos bizarros vão acontecer e deixar o protagonista cada vez mais intrigado. Sendo assim não contarei mais do roteiro para não estragar as surpresas, mas como disse anteriormente, as questões abordadas no filme são até mais interessantes que o próprio desenvolvimento.

Mojica x Caixão
           
            Durante toda a trama vamos ver o embate entre o real José Mojica e o ficcional Zé do Caixão , uma vez que o Mojica interpreta ele mesmo. O filme vai criar um jogo que vai mesclar realidade de fantasia, sempre causando certa estranheza pra quem assiste.
Não digo que o filme tenha ar documental, muito pelo contrário, ele é uma ficção que em nenhum momento se apresenta como verdade, mas o diretor e o roteirista se apropriam da realidade e da situação vivida por Mojica para criar camadas que tornam a história mais completa, interessante e, até mesmo, crítica. Mas vamos por partes.
No início do filme, Mojica dá uma entrevista falando sobre o prêmio que ganhou na França e também das próximas produções, mas a pergunta mais importante dessa coletiva é: “Quem é mais importante: Mojica ou Zé”. Mojica vai responder que logicamente é ele, Zé do Caixão é apenas uma criação sua, é ele que dá vida para o personagem. Assim que ele fala que o Zé não existe, uma luz da sala que ele está queima. Assim como esse evento, outras coisas estranhas vão acontecer sempre que ele menciona algo semelhante ao Zé do Caixão, dando a entender que existe uma força que está além dele e que o personagem não é apenas uma criação, mas sim uma entidade independente.
Então uma das principais questões do filme vai ser esse embate entre criatura e criador que sempre levanta a questão: será que o Zé do Caixão é apenas um personagem ou ele existe de fato? Até certo ponto do filme vamos ter apenas sugestões, só depois iremos descobrir o que está havendo. Essa sacada do filme é interessante porque ela dialoga diretamente com a vida real do Mojica, afinal, todos sabemos quem é o criador e quem é a criatura, entretanto, se observarmos bem a trajetória do diretor, vamos perceber que, de certa forma, ele foi “dominado” pela sua criação. Às vezes, a criatura se torna tão poderosa que ela sai do controle.
Ok, você deve estar se perguntado: isso faz sentido no filme, mas como isso pode acontecer na vida real? Simples, é só pensarmos na nossa própria relação com o Mojica. É bem provável que você tenha conhecido o diretor pela figura do Zé do Caixão. Mesmo hoje em dia, 50 anos depois do lançamento do “Esta noite”, o personagem ainda é mais conhecido que seu criador. É muito difícil ver alguém falando sobre o Mojica sem vincular diretamente a figura do Zé, mesmo ele tendo dirigido diversos outros filmes que não tem relação nenhuma com seu personagem. Um exemplo claro disso são as diversas participações que ele fez em programas de TV, quando ele era convidado as pessoas não queriam o José Mojica Marins, o diretor que produziu diversos filmes com baixo orçamento, as pessoas queriam o Zé do Caixão, não importa quem está por baixo da capa e da cartola. Sim, isso é compreensível, mas não deixa de ser triste, afinal ele é muito mais que um personagem.
Claro que no filme ele não vai levantar essas questões da vida pessoal do Mojica, mas é impossível não pensar nessa questão de criatura e criador, ainda mais porque no filme o Mojica se apresenta de uma forma totalmente diferente. Se na vida real ele é ridicularizado pela crítica e está cheio de dívidas e problemas, se colocando no papel de Zé diariamente para conseguir algum dinheiro, no filme ele é um homem rico, culto e popular que pode negar a existência do seu personagem mais famoso e tratá-lo como quiser. Não sei se isso é uma forma de desabafo, mas é algo pra se pensar.

Realidade x Ficção


Voltando para o filme. Em certo momento haverá um embate entre os dois personagens. E o mais interessante é que esse encontro entre criador e criatura acontece num espaço meio lúdico, mostrando que eles estão em atmosferas diferentes, mudando a tonalidade do filme. O personagem sai do ambiente comum e adentra aquele espaço infernal e cruel de Zé do Caixão, o que mostra que Mojica criou não apenas um personagem, mas todo um universo, porque se até certo ponto o filme parece um filme qualquer de horror/suspense, quando se aproxima do fim fica claro que estamos vendo um filme do Mojica, pois suas características mais marcantes estão ali. E por mais que ele tente lutar contra isso, ele nunca vai conseguir se livrar totalmente.
Mas o ponto que quero levantar aqui não é o embate entre os dois em si, mas sim as diferentes interpretações que o filme permite. Desde o início percebemos que há uma espécie de metalinguagem: o filme começa com a filmagem de uma cena, com o Mojica interpreta ele mesmo, tendo que lidar com sua criação, etc. Mas o que torna tudo mais intrigante é pensar até que ponto os acontecimentos do filme são “reais” ou se tudo não passa da imaginação fértil do Mojica.
No inicio, ele revela que o título do seu próximo filme vai ser “o tirador de demônios” e que vai pegar umas férias pra escrever o roteiro, logo, ele já sabe sobre o que se trata e tem pelo menos a ideia inicial para começar o roteiro. Sendo assim, quando ele chega na casa do amigo e as coisas estranhas começam a ocorrer podemos seguir por dois caminhos interpretativos: 1) o Zé do Caixão está de fato por trás das coisas macabras 2) tudo não passa de um processo criativo do próprio Mojica, que cria situações a partir dos personagens e ambientações que ele está observando no dia a dia da família de seu amigo.
Então, Exorcismo negro acaba sendo um filme que abre diversas possibilidades, criando diálogos dentro do próprio filme e, também, entre realidade e ficção.

Está pronto pra missa negra?

Apesar do filme ter sido feito pra aproveitar todo o hype que O exorcista estava causando, ele não é uma copia barata como tantas outras que vemos por aí, tanto que a primeira vez que assisti ao filme foi antes de ler a biografia do Mojica e, tirando pelo título, em nenhum momento eu pensei na obra americana, nem mesmo como referência. É que, apesar de ambos tratarem de possessão, eles possuem premissas e desenvolvimentos completamente diferentes.
Exorcismo negro, diferente das outras obras do Mojica que já abordamos, teve um orçamento que permitia com que ele pudesse ir um pouco além: não era um orçamento grande, mas era maior do que qualquer outro que ele já teve. Um efeito disso que podemos perceber são as cenas externas, como a cena que ele está no barco, algo impensável se ele tivesse orçamento reduzido que o obrigaria a focar em cenas feitas em estúdio.
Alguns críticos da época reclamaram do filme, falando que o Mojica perdeu a essência e que não era tão intenso quanto as obras anteriores. Em partes eu concordo, afinal é um filme menos inventivo, se comparado com os primeiros filmes do Zé do Caixão, que o obrigava a fazer alguns milagres. Entretanto, apesar de eu não achar esse filme tão bom quanto aos outros, acho injusto esperar que ele repetisse a fórmula dos outros sendo que ele tinha orçamento pra fazer algo mais elaborado. E mesmo assim, as cenas finais carregam o DNA do Mojica, é impossível falar que não é um filme dele.
Enfim, Exorcismo negro é um filme que mostra um outro lado do Mojica, fica perceptível que é um filme com mais recursos e que ele tinha maior liberdade pra fazer o que queria. Não vamos ter muitos improvisos, cenas reaproveitadas ou outras malandragens pra terminar o filme. É interessante ver como a partir da ideia de O Exorcista, Mojica e Luchetti conseguiram criar um filme bem único e diferente, se aproveitando da metalinguagem para criar uma história simples mas que tem várias camadas e permite diversas interpretações.

Então acende as velinhas pretas e vem incorporar o Zé com a gente.

Assista aqui

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