segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Resenha: O estranho mundo de Zé do Caixão


            Como anunciamos anteriormente, o mês de Outubro será uma mês maldito aqui no blog, pois toda semana vamos assistir e resenhar obras do Sr. José Mojica Marins. Dando inicio ao projeto “O Zé além do Caixão”, o Café traz nessa semana a resenha de O estranho mundo de Zé do Caixão, uma obra que compila três curtas do mestre. Mas não se engane, não é porque são filmes de 20/30 minutos que a sua violência e seu horror também são reduzidos...



“Quem sou eu, não interessa, como também não interessa quem é você, ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que importa é saber o que somos. Não se dê ao trabalho de pensar porque a conclusão seria: a loucura. O final de tudo, para o início de nada.
A coragem inicia onde o medo termina. O medo inicia onde a coragem termina. Mas será que existem a coragem e o medo? Coragem para quê? Medo do quê? De tudo? O que é tudo? Do nada? O que é nada?
A existência, o que é a existência? A morte? O que é a morte? Não seria a morte o início da vida? Ou seria a vida o início da morte?
Você não viu nada e quer ver tudo. Você viu tudo, mas não viu nada. Teme o que desconhece e enfrenta o que conhece. Por que teme o que desconhece e enfrenta o que conhece? Sua mente confusa não sabe o que procura. Porque o que procura confunde a sua mente. E nasce o terror. O terror da morte. O terror da dor. O terror do fantasma. O terror do outro mundo. Agora vê no terror que nada é terror, não existe o terror. No entanto o terror o aprisiona. O que é o terror? Ah! não aceita o terror porque o terror é você.”


 

Título original: O estranho mundo de Zé do Caixão
Lançamento: Brasil (1968)
Duração: 80 minutos
Direção: José Mojica Marins




           
            O mais interessante de O estranho mundo de Zé do Caixão é que mesmo os três curtas pertencendo ao mesmo gênero, o horror, todos eles possuem temáticas e até mesmo estilos bem diferentes entre si, mostrando diversas facetas do diretor. Na verdade, é justamente por isso que escolhemos esse filme para dar o start no projeto.
            Em menos de uma hora e meia, o espectador, principalmente aquele que nunca assistiu a filmes do Mojica, consegue conhecer diferentes abordagens do seu trabalho em três histórias diferentes que carregam a simplicidade e a intensidade tão característica de suas obras.
            Algo importante de ressaltar é que apesar do nome, nenhum dos três curtas tem relação com o personagem Zé do Caixão; todos eles constituem histórias independentes, fechadas e com personagens diferentes. Entretanto, no ultimo deles, Ideologia, vamos perceber algumas características em comum com outros filmes do Mojica, mas falaremos disso mais pra frente.
            Recado dado, vamos adentrar nesse estranho mundo...

            Obs. Na versão do DVD há uma introdução, feita pro lançamento das mídias provavelmente, em que o Mojica, vestido de Zé do Caixão, faz uma breve apresentação falando sobre alguns temas que irão aparecer ao longo dos curtas que iremos assistir. Esse tipo de introdução também foi utilizada em outras obras lançadas, em que ele comenta um pouco antes do filme iniciar. Não acrescenta em nada. Mas é divertido.

O estranho mundo de Zé do Caixão

            Uma característica bem marcante nas obras do Mojica, principalmente as relacionadas ao Zé do Caixão, são os discursos existencialistas que antecedem os filmes. Aqui, apesar de nenhuma história contar com o personagem, elas se são como se o Zé do Caixão estivesse por trás delas, não influenciando no desencadeamento e nem nada do tipo, mas sim como se estivesse apresentando aos outros como forma de mostrar e dar embasamento as suas filosofias e pontos de vista.
            Como vamos descobrir ao longo das três historias, o tema principal desse monologo é o terror causado pelo próprio homem: temos medo de tantas coisas que desconhecemos, mas esquecemos que o maior terror está dentro de nós mesmos. Não são espíritos, demônios e seres sobrenaturais que estão causando terror, mas sim nossos próprios fantasmas interiores...
            Durante o filme Mojica trabalha justamente isso, os limites que os homens ultrapassam pelos mais determinados motivos (desejo, ganancia, natureza, busca pela perfeição...) e que acabam despertando a besta interna.

Primeiro curta:
O fabricante de bonecas

            Antes mesmo da história começar de fato, já vamos perceber uma caraterística das obras do diretor, que é o “copiar/colar”. É que devido à falta de recursos, uma das saídas para economizar dinheiro era reaproveitar material – cenas gravadas de outros filmes, material cenográfico e até mesmo obras de outras pessoas. No início do filme percebemos isso, pois durante os créditos está rolando a cena de um bar com música ao vivo, pessoas dançando, e coisas assim, sendo que quando o curta começa, estamos em um outro bar, que é nitidamente diferente daquele apresentado durante os créditos.
            Mas enfim, vamos ao que interessa.
            A premissa de O fabricante de bonecas é bem simples: após escutar falar sobre um senhor que mora sozinho com as belas filhas e, provavelmente, guarda uma boa quantia de dinheiro em casa, devido as bonecas que confecciona, um grupo de ladrões decide invadir a casa do velho para roubar seu dinheiro e abusar de suas filhas, mas eles não esperavam que roubo seria mais difícil do que imaginavam.
            Não irei dar mais detalhes pra não estragar a surpresa, afinal o curta tem cerca de 20 minutos apenas, mas é interessante como vamos mudando de perspectiva ao longo da narrativa, mostrando que a maldade está em todos nós, principalmente naqueles que não aparentam. A meu ver, é como se o roteirista quisesse mostrar que vivemos em um mundo onde a maldade já é esperada, então precisamos usar disso em nosso favor, antecipando o crime do outro para pegá-lo desprevenido e, em cima disso, cometermos os nossos próprios.
            Algo bem interessante, é como o diretor utiliza das bonecas para dar um clima mais “assustador” pra trama, a câmera diversas vezes irá dar closes em bonecas sem olhos, dando a impressão que mesmo incapazes de ver, elas tão observando tudo que se passa naquele ambiente. Além disso, é curioso como há uma inversão de papel entre as pessoas e os objetos: durante uma cena de estupro há diversos momentos em que as bonecas parecem ter mais vida que as próprias garotas, como se naquele momento elas estivessem se tornando um simples objeto na mão daqueles criminosos, enquanto as bonecas observam e condenam a atitude, esperando o momento pra vingança.
            O fabricante de bonecas é o curta mais simples da antologia, tanto no que diz respeito ao roteiro quanto nos seus aspectos técnicos, mas nem por isso ele é pior que os outros, pois é justamente essa simplicidade que dá valor a obra. Pessoalmente, o que mais gosto nele é como o Mojica, em um único ambiente e com pouquíssimos diálogos, consegue criar algo tão interessante, apropriando-se de elementos do próprio cenário para criar tensão. É perceptível que a intenção era apenas criar uma história de terror, mas nem por isso ela é banal, já que ela não quer apenas assustar, mas também expôr a maldade do homem, reforçando o discurso do início do filme: o terror está no homem.
            Uma característica que vai perpassar os outros dois curtas e muitas outras obras é o fato do Mojica sempre buscar trabalhar com temas pouco comuns e que irão causar espanto naqueles que irão assistir. Sempre há a necessidade de causar desconforto e mostrar que a maldade vai além daquilo que conhecemos.
            Nesse primeiro ele vai abordar, principalmente, a questão do estupro, já no próximo...


Segundo curta:
Tara


            Um pobre vendedor de balões se vê em uma paixão doentia por uma linda garota burguesa que ele vê passar. Sabendo da sua condição e sem coragem de se aproximar, ele passa dia após dia seguindo a mulher na esperança de que um dia ele seja notado. Mas é somente quando a garota morre que ele vê a oportunidade de consumar esse amor impossível.
            É curioso como a partir de clássicos infanto-juvenis Mojica e Lucchetti (o roteirista) conseguem extrair elementos para criar uma história de amor doentia. Com influencias de O corcunda de Notre Dame e Cinderella a narrativa se desenvolve com base no cinema mudo. Sem diálogos e só com a trilha sonora, toda a trama é construída a partir das expressões, evidenciando o clima de solidão, rejeição e melancolia que o personagem se encontra.
            Diferente de tudo que o diretor já tenha feito (pelo menos dentre as coisas que assisti), Tara consegue se desenvolver de maneira delicada e sentimental, como uma poesia, até mesmo em seus momentos mais repulsivos, algo que, sem intenção, faz lembrar a Álvares de Azevedo.
            O importante desse curta não é tanto como ele termina, mas sim como a história vai se desenvolvendo e mostrando a relação que o protagonista vai construindo com a mulher, mesmo sem conhecê-la, até culminar na cena de necrofilia. Mesmo quando Mojica adota uma estética mais delicada, ele não deixa suas raízes de lado e insere elementos não convencionais, causando esse choque, que contrasta o repulsivo com o poético.
            Tara, apesar de não ser o meu favorito, a meu ver é o melhor dos três quando se trata de qualidade, pois suas limitações não transparecem pro espectador e tudo funciona muito bem. Utilizando de temas como o “amor doentio”, necrofilia e, até mesmo, as condições de classes (pois um dos principais fatores que separam o protagonista e a mulher é a condição social), Mojica cria uma belíssima obra, mostrando sua principal qualidade: fazer tanto com tão pouco.

Terceiro curta:
Ideologia

            O ultimo curta é o que mais gosto, ele é o mais brutal dos três e o que mais se aproxima dos filmes com o famoso personagem Zé do Caixão. Ele inicia com um programa de TV, “Os homens que fazem noticia”, em que o professor Oãxiac Odéz (leia de trás pra frente) discute com outros intelectuais sobre a sua teoria de que o amor não existe, o que existe é atração e repulsão em que o homem busca elementos que o complementem, seja em pessoas ou em objetos. Não convencidos com as teorias, o professor convida um dos presentes a ir, com sua esposa, jantar em sua casa, prometendo que lá iria dar as devidas evidencias para provar a sua teoria. O que ele e sua esposa não esperavam é que eles seriam as cobaias da experiência.
            Para o professor, a atração e a repulsão que ele defende está diretamente ligado a discussão entre natureza e razão, justamente por isso o amor não existe, pois ele faz parte de razão, algo que é construído socialmente, diferente da natureza que é algo que acompanha o homem desde sempre. Para provar a sua teoria, ele expõe aos seus visitantes, antes de transformá-los em experiência, pessoas em seu mais completo estado de natureza que apresentam um comportamento totalmente primitivo, pautado em necessidades e ações básicas do homem privado das convenções (sexo, fome, violência, instinto, etc).
            A questão é: como levar o homem já socializado ao estado de natureza? E é justamente isso que veremos no decorrer da história. Para provar a teoria aos seus convidados, ele irá se utilizar dos mesmos como instrumentos de pesquisa. O professor irá prender cada um numa cela, de modo que fiquem um de frente pro outro. Para o homem ele ira dar água e comida, e para a sua esposa ele não dará nada. Com isso ele vai observando dia após dia a mudança de comportamento de seus convidados, principalmente da garota.
            Apesar de eu falar, lá no inicio da resenha, que o Zé do Caixão não aparece em nenhuma das três historias, pode ser que não seja totalmente verdade. Porque podemos interpretar que o professor Oãxiac é o próprio Zé do Caixão, apesar de não termos fatos concretos sobre isso, apenas suposições. Além do nome ser uma clara referencia ao outro personagem, há pelo menos dois outros elementos que ajudam a fortalecer essa teoria. Um é que ao chegar na casa do professor, o visitante fala algo como: “as suas feições me lembram a outra pessoa”, que a meu ver é uma citação ao Zé. Outro ponto é a casa do professor, que é a mesma em que se passa o filme anterior do Mojica Esta noite encarnarei no teu cadáver. Além disso, a crueldade e as reflexões feitas pelos dois personagens são bem semelhantes. A única coisa que pode causar uma quebra nessa teoria de que o professor e o coveiro são a mesma pessoa é justamente isso, a escolaridade.
            Enfim, Ideologia é mais do que um simples curta de terror ele é um experimento onde Mojica explora o sadismo e a blasfêmia para ver até que ponto o publico aguenta. Cheio de cenas gore que contém canibalismo, ácido, maquinas de tortura, sadomasoquismo e surpresas mais, ele consegue criar passagens que causam desconforto ainda hoje. Você pode até falar: “Ah, mas tem filmes muito piores”, mas vamos lembrar que o filme é de 68, plena ditadura militar, e feito com recursos limitadíssimos. Então levando em conta a situação e a qualidade podemos dizer que Mojica fez milagre, não apenas com esse curta mas com todos da antologia.

Devo navegar por esse estranho mundo?

            Sim, sem duvidas.
O estranho mundo de Zé do Caixão é um clássico que merece ser visto e revisto. Nessas três obras é possível conhecer um pouco mais do trabalho do diretor. Desde uma narrativa mais poética e singela como Tara até histórias mais cruéis e cheias de violência gráfica como Ideologia.
Apesar das diversas qualidades, não podemos ignorar os diversos defeitos do filme. Tirando Tara que a meu ver é o mais bem feito dos três (talvez por ser mudo), os outros dois tem vários problemas técnicos que interferem na experiência, mas não a ponto de estragá-la. O principal dele é em relação ao áudio, que muitas vezes as falas acabam se embolando com a trilha sonora ou ficam abafadas. Além disso há problemas de continuidade, atuações, etc. É perceptível que todos os problemas técnicos do filme têm o mesmo motivo: orçamento. Então se você assistir tendo noção disso, você releva facilmente tudo aquilo que criticaria em outros filmes com um orçamento adequado.
Outro ponto que merece ser levado em consideração, como dito anteriormente, é o período em que o filme foi feito: ditadura. Quando resenharmos a biografia falaremos mais disso, mas Mojica foi bem perseguido no período, grande parte dos seus filmes foram barrados pela censura, e com “O estranho mundo” não foi diferente. O censores falaram que só liberariam caso o filme tivesse um final feliz, mostrando que o mal perde no final. A saída que o diretor encontrou foi: depois da genial cena do banquete, ele colocou a cena de uma explosão (de um outro filme, que nem era dele), como se Deus não permitisse tamanha crueldade e se vingasse explodindo a casa do professor Oãxiac. Durante essa explosão, ainda surge um trecho da bíblia na tela. Facilitando a liberação do filme.

            Se você leu até aqui a única pergunta que resta é: O que você está esperando pra visitar o professor Oãxiac Odéz?

Assista aqui:

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