terça-feira, 1 de novembro de 2016

Literatura: Confissões do crematório (Caitlin Doughty)


            Para todos aqueles que já morreram numa vida passada ou que estão pretendendo — quem sabe — morrer um dia nessa vida, o Café com Tripas traz agora uma resenha de Confissões do crematório, de Caitlin Doughty, fruto de nossa parceria com a Darkside books. A obra é um prato cheio para quem tem afinidade com mundo dos mortos, com reflexões sobre o fato de que as pessoas morrem e que seus corpos sobram para os vivos junto com um monte de dúvidas sobre o significado disso.




            Não importa quantos álbuns de heavy metal você viu, quantas pinturas Hieronymus Bosch sobre as torturas do inferno, ou até mesmo a cena em Indiana Jones, onde o rosto do Nazi derrete, você pode não estar preparado para ver um corpo a ser cremado. Vendo um crânio humano flamejante é mais intenso, além de seus voos mais selvagens da imaginação.

Título original: Smoke gets in your eyes
Autor: Caitlin Doughty
Ano: 2014
Editora: Darkside books
Páginas: 260

 O que dorme dentro da tumba?


            Em Confissões do crematório Caitlin Doughty (a própria autora) narra sua vida a partir do momento em que passou a trabalhar no serviço funerário, contando o que descobriu por lá.

Você tem estômago?

            Confissões do crematório é um livro singular até mesmo para o catálogo trevoso da Darkside books. Por mais que nós que frequentamos o Café estejamos acostumados com a violência gráfica do cinema e com bizarrices literárias de todo o tipo, na maioria das vezes, sempre que abordamos coisas do tipo há algo que nos protege de ser atingido por elas: sua ficção. Saber que o sangue é só suco de tomate e ketchup nos protege de nos sentirmos muito incomodados com as coisas que o cinema trash apresenta, pois dá a impressão de que elas nunca nos aconteceriam. Quando se trata de Confissões do crematório, todavia, estamos diante de como as coisas acontecem no mundo, o que retira todos aqueles nossos consolos que nos fazem dormir bem durante a noite.
            Como se trata de uma obra de não-ficção e, mais ainda, de uma obra que não tem uma estrutura narrativa romanceada que vá levar os personagens a uma conclusão bonitinha, o conteúdo do livro não é exposto de maneira a nos perturbar, a nos envolver literariamente e nos fazer passar por experiências imaginativas atemorizantes, a bem dizer, ele é um relato de vida permeado por reflexões a respeito da morte o qual, por descer aos detalhes de diversas práticas que a humanidade tem com os mortos e por cutucar esse nosso tabu com a morte, acaba sendo pesado em vários pontos. Por isso, suspeito que mesmo leitores que gostem das temáticas que o livro envolve podem acabar preferindo outras obras a essa aqui. Não é que estejamos diante de uma loucura literária como Panorama do inferno, de Hideshi Ino, de uma loucura filosófica como Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, ou de um relato escabroso como As boas mulheres da China, de Xinran, mas há momentos de bastante peso que não oferecem nenhuma desculpa teórica ou estética para atenuar a experiência. Para quem está acostumado com elas, eis aqui um livrinho que pode incomodar.

Cérebro

            O livro tem uma estrutura bem própria: cada capítulo é curtinho e conta algum acontecimento pelo qual a autora passou em seu trabalho na indústria funerária, ao mesmo tempo em que levanta algum tipo de reflexão a respeito do modo como nós ocidentais lidamos com a morte. Aliás, tudo é bastante interessante, pois nosso contato com a morte tende mesmo a ser mediado pela ficção, pelo sensacionalismo dos jornais e coisas assim, de modo que, se há alguns séculos as famílias tinham todo o trabalho de lidar com o corpo de um falecido, banhando-o e o preparando para o enterro, hoje temos espaços específicos para a morte, quase completamente segregados dos espaços dos vivos, não sendo necessário que nos envolvamos muito com a morte. Inclusive, até é possível mesmo marcar uma cremação pela internet, pagar o serviço pelo cartão de crédito e ter o menor contato possível com quem já morreu.
            Lembro do interessantíssimo A vida e a obra de Semmelweis, que narra a trajetória de um médico húngaro do século XIX que buscou explicações para o fato de que as grávidas de seu hospital estavam sistematicamente morrendo de febre. Naquela situação, cada uma daquelas mulheres tinha características diferentes e, mesmo sem ter contato umas com as outras, elas continuavam adquirindo a doença por algum meio não detectado. Com o tempo, depois de várias investigações fracassadas, Semmelweis criou uma hipótese: ao notar que os médicos faziam partos e exames nas grávidas depois que lidavam com defuntos, ele supôs que, de algum modo, a “matéria cadavérica” (suas palavras) poderia de algum modo estar passando pelas mãos dos médicos até o corpo daquelas mulheres e causando a doença. Em seu período inexistiam as nomeadas “medidas profiláticas”, aquelas normas básicas de higiene amplamente conhecidas por nós (“não ponha o dedo do nariz”, “tenha seu próprio cachimbo de crack”, “troque de cueca pelo menos uma vez por mês”, “lave as mãos depois de fazer xixi”, “não divida a seringa de heroína com o coleguinha do lado”, “use meias limpas para fazer café”, “não examine sua paciente depois de abrir o tórax de um cadáver”), além disso, ainda não existiam instrumentos de observação que relevassem à ciência a existência de microrganismos. Como consequência disso, quando Semmelweis propôs aos médicos do hospital que lavassem as mãos antes de lidar com as mulheres grávidas, ele foi tomado como um impertinente acabou sendo expulso do hospital. Quem iria acreditar numa loucura dessas?
            Do cume dos nossos olhos “moderninhos” essa história parece estrambótica, porém as noções que temos da morte e de nosso próprio corpo tendem a mudar de acordo com nosso lugar na história e de acordo com nosso conhecimento a respeito daquilo que a morte envolve. Por isso, quando toca nesse tipo de relação entre sociedade e morte, Confissões do crematório se torna mais que um livro divertido, ele se torna também um livro reflexivo e interessante, pois desnaturaliza um pouco o modo como vemos a morte e mostra outras formas, geralmente mais saudáveis, como poderíamos lidar com ela.
            O movimento do livro é mais ou menos o seguinte: enquanto a própria autora conta, numa ordem quase cronológica, o que descobriu na indústria da morte, ela também vai discutindo seus tabus e mostrando como eles sumiram e foram sendo substituídos por uma visão pretensamente mais realista a respeito do assunto. Enquanto ela cresce e aprende com o que vê, podemos também aprender e crescer com ela, com a segurança de não precisarmos queimar cabeças humanas e corpos encontrados boiando na praia. Evidentemente, as reflexões estão ali como um complemento de uma narrativa que — no fundo — é entretenimento desprendido e não algo em que vamos continuar pensando muito tempo depois de fecharmos a obra, porém, ainda assim, elas estão lá e enriquecem nossa experiência de leitura e impedindo que a obra seja mero aproveitamento de um tema polêmico em função de uma diversão tola.


Carne!

            Fora essa parte mitológica, filosófica e blá blá blá, o livro aborda longamente como funcionam os trabalhos na indústria funerária e como é o tratamento dos mortos de maneira geral. Afinal, sobram dúvidas a esse respeito: em quanto tempo um cadáver começa a feder? Os ossos são cremados junto com o corpo? Quais são os procedimentos da cremação? Que tipo de morto chega normalmente a um crematório? Essas questões geram respostas em geral bem interessantes e ocasionalmente repulsivas. A própria autora conta um pouco de seu choque com determinadas descobertas e sua surpresa com algumas delas. Embora ela seja uma pessoa bastante tolerante, que consegue lidar com pedaços de corpos, cheiros nauseantes, imagens feias e coisas que sabemos que  permearão seu trabalho, há coisas que estão além dessa expectativa inicial e que marcam sua entrada nesse novo mundo, como a primeira vez em que tem que cremar um bebê. Quem não ficaria derrotado num dia desses?
            O que é descoberto nesse percurso acaba mudando um pouco a trajetória de vida da autora, que de historiadora medievalista acaba entrando de vez nas catacumbas do Hades para vasculhar o que tem lá dentro e perder de vez suas ilusões a esse respeito. Antes que essa imagem surja aí na mente de vocês, devo dizer que não é tanto que Caitlin seja uma pessoa bizarra, cheia de piercings, tatuagens de Baphomet, gatos enterrados no quintal, movida por curiosidades mórbidas, na verdade, tirando por uma coisa ou outra, ela aparenta ser uma pessoa bem comum e sem grande brilho cuja convivência com aquilo que normalmente somos privados, faz com que ela perca o medo e o nojo da morte e comece a aceitá-la com mais naturalidade, sem tantas neuras e medo. Em alguma medida, acho que o percurso da autora poderia ser saudável para diversas pessoas, inclusive eu mesmo, para naturalizar um pouco mais a morte em nossa vida. Talvez isso diminua um pouco o peso que ela tem quando aparece ou, ao menos, a torne mais fácil não de entender mas de aceitar.
            Mais ou menos duas vezes por ano, meu professor de Filosofia do Renascimento na graduação, marcava aulas no laboratório de anatomia para explicar na prática como foram feitos os trabalhos de Da Vinci. Sua intenção era mostrar como os corpos utilizados nos desenhos do autor, por onde começavam as secções e, enfim, ilustrar com os cadáveres aquela montanha de coisas interessantes que o Da Vinci produziu. Por conta de greves e coisas assim, no entanto, essas aulas não foram dadas nos anos em que frequentei a universidade, mas sobreviveram com carinho na memória de quem fez parte delas, não pelos defuntos, obviamente, mas pela proposta ousada do professor de trazer algo mais que livros e palavras para a experiência dos alunos. Graças à Confissões do crematório, fico pensando que a ausência dessa experiência talvez não seja uma lacuna na minha formação universitária, mas uma pequena lacuna em minha vida.

Vale a pena morrer?

            Se vale a pena ou não, amiguinhos e amiguinhas, acho que pouco importa, já que não temos muita escolha a esse respeito de morrer ou não, contudo, temos a escolha de pensar se vale a pena ou não viver e isso, a meu ver, já está de bom tamanho, pois, se não podemos mudar nossa morte, podemos ao menos mudar nossas vidas.
            Confissões do crematório é um livro bacana e interessante, que fornece pequenas doses de indústria funerária junto com pequenas reflexões sobre a morte, numa mistura harmônica e agradável. Quer dizer, se você não ligar muito para aquelas descrições todas.
            A edição da Darkside é primorosa como todas as outras que tive a oportunidade de ler, seguindo sua orientação de tornar a estética do livro tão atrativa quanto o conteúdo. A capa é pintada em vermelho, simulando as chamas do crematório (ou seria do inferno?), com gravuras de corpos no interior do livro. Tudo muito belo, parecendo ter sido feito para se colecionar.
            O resultado final é um livro ágil e divertido sobre um tabu, que ao mesmo tempo não pretende uma digressão pesada a respeito dele. Às vezes, a leveza é justamente o que é preciso para encarar algo assim tão denso.

2 comentários:

  1. A cada resenha fico co mais vontade de ler esse livro! Gostei muito do blog!
    Abraços!

    http://leitorprolixo.blogspot.com.br/

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    1. Obrigado, João.

      É um livro bacana sim e tem um conteúdo que não é vazio. Foi legal ler.

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