quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Literatura: Labirinto (A.C.H. Smith)


            Hoje é dia de voltar a infância com uma das histórias mais emblemáticas dos anos 80 e, também, homenagear David Bowie, aquele ser supremo que passou por esse mundinho medíocre para alegrar a vida de meros mortais como nós. Sim, você já sabe do que eu estou falando, então só deixarei mais um recado antes de começar a resenha: Nunca, em hipótese nenhuma, faça um pedido para o rei dos duendes.





             “Você pensa que é muito esperta”, disse Hoogle. “Sabe por que? Porque você ainda não aprendeu nada. ””

Título original: Labyrinth
Autor: A.C.H. Smith
Ano: 1986
Editora: Darkside books
Páginas: 272
            Sarah, cansada de ter que bancar a babá de seu irmãozinho Toby sempre que seu pai e sua madrasta precisam ir a algum evento, acaba desejando que Jareth, o rei dos duendes, venha buscar Toby e o leve com ele, para que deixe de ser um empecilho em sua vida. Mas ela não esperava que seu desejo seria atendido. Arrependida, a jovem terá que desvendar os mistérios do labirinto e chegar até o castelo de Jareth, antes que o prazo acabe e seu irmão se transforme em um duende.

Qual melhor modo de entrar no labirinto?

            Bom, antes de qualquer coisa, vamos resolver uma questão: livro ou filme?
Por ser uma novelização do filme, o livro, em matéria de história, com exceção de uma ou outra cena a mais, não vai ter tanta diferença do que já conhecemos pelo filme com o Bowie, mas, por outro lado, ele consegue aprofundar algumas questões que nas telinhas ficaram meio vagas, como os personagens. Do mesmo modo que a versão cinematográfica consegue dar uma dimensão diferente pro labirinto e pro universo criado por Jim Henson, que só o aspecto visual é capaz de proporcionar. Sendo assim, essa resenha aborda ambas as plataformas, porque elas são complementares entre si, uma contribui para a experiência da outra.
Particularmente, gosto mais do filme, não apenas pela nostalgia, mas também por todos os elementos que compõe a obra. Por ser uma história muito visual, toda a ambientação, figurino e trilha sonora ajudam a criar o universo, claro que lendo você vai construindo esse cenário, mas de uma maneira diferente. Pode ser que se eu tivesse lido o livro antes, tivesse uma outra perspectiva, mas não é o caso. Entretanto, foi a partir do livro que eu passei a ter uma perspectiva diferente, por que nele os personagens vão ter um melhor desenvolvimento e seus dramas irão ficar mais claros, coisa que no filme fica em segundo plano. Isso fica ainda mais claro quando paramos para analisar o papel de Sarah, como veremos ao longo da resenha.


A culpa é sempre do irmão mais novo

A premissa de Labirinto é bem simples e reflete uma ideia que você já deve ter escutado diversas vezes durante sua vida: “cuidado com aquilo que desejas”. Fazendo um resumo, temos a história de uma garota que faz um pedido e acaba se arrependendo disso, precisando corrigir antes que seja tarde, sendo que por ser uma obra infanto-juvenil, você já conhece o desfecho, afinal sempre haverá um final feliz.
Sim, você já viu vários filmes com a mesma ideia e com o mesmo final, mas aqui há elementos que o transformam em uma obra única. Não é à toa que 30 anos depois do seu lançamento ainda estamos falando dele.
            Tirando essa base narrativa, Labirinto consegue ter personalidade própria mesmo ao lado de obras semelhantes, como Alice e Magico de Oz. A atmosfera, os personagens e todos os detalhes fazem com que ele seja muito mais do que a sinopse demonstra. Apesar de ser uma obra direcionada para o público mais jovem, ela não se limita a esse público, pois mesmo com todos os elementos fantásticos destinados aos mais novos – duendes, magias, castelos, etc. -, ele carrega uma densidade que, provavelmente, apenas pessoas mais velhas vão entender, isso se dando devido a todos os detalhes que constroem a protagonista.
            Mas paremos com essas divagações e vamos ao filme.
            A história vai começar com Sarah em um bosque decorando e recitando as falas de um livro chamado “O labirinto”, logo de cara vemos sua insatisfação em não conseguir decorar determinada passagem, mesmo que ela não precise lembrar daquilo, por ser apenas um passatempo. Percebendo que está tarde e começando a chover, ela volta correndo pra casa, onde levará uma bronca, porque seu pai e sua madrasta estão atrasados pra uma festa e ela tem que ficar cuidando de seu irmãozinho. Cansada de sempre ter que bancar a babá de seu irmão e nunca ser questionada se ela pode fazer isso (afinal, uma garota de 15 anos é cheia de compromissos), ela acaba emburrada e maldizendo todo mundo. Quando seu irmão começa a chorar e atrapalhar, ainda mais, as suas reflexões sobre o quão injusto é o mundo, ela se lembra do livro que estava lendo e pede que o senhor dos duendes venha buscar seu irmão, afinal ele e a madrasta são a causa de todos os problemas. Entretanto, ela não esperava que Jareth realmente existisse e viesse buscar seu irmão, quando ela se vê sozinha e com seu irmão em um reino distante, ela se arrepende de seus desejos e decide correr atrás, mas para isso ela vai ter que atravessar o labirinto, e lidar com diversos obstáculos, tanto os externos quanto os internos.
            Resumindo: irmão mais novo atrapalha quando está perto e quando está longe.
            Brincadeiras à parte, a narrativa vai acontecer principalmente nessa aventura de Sarah através do labirinto, tendo que resolver diversos enigmas e enfrentar obstáculos para finalmente encontrar seu irmão antes que ele se transforme em um duende.
            Ok, você deve estar pensando: “então é só uma história infantil de uma garota tendo que salvar o irmão em um mundo lúdico”. Sim caro leitor, superficialmente é isso, mas a obra vai mais fundo. As portas do labirinto estão abertas.


Um quebra cabeça chamado Sarah

            Tanto o livro quanto a filme focam a aventura da personagem, passando por diversas situações e expondo diversos personagens que irão ajudar ou atrapalhar em sua aventura, mas não falaremos disso aqui, afinal já deve ter diversas resenhas falando disso e se você assistir ou ler vai aproveitar do mesmo modo, não tem o porquê eu ficar falando sobre. Vou aproveitar esse espaço para falar sobre aquilo que a obra não diz diretamente, mas que está ali e pode passar despercebido.
            Apesar da obra chamar labirinto e falar sobre ele do início ao fim, não é sobre ele, duendes, Jareth ou até mesmo Toby. A trama de toda a narrativa se baseia em apenas um personagem: Sarah. A não ser que você acredite e goste muito de mundos mágicos, duendes e etc. acho que fica bem claro que a história é uma grande metáfora sobre a vida da protagonista, então tudo que vamos acompanhar, do início ao fim da aventura, é marcado por diversos simbolismos que vão representar sua angustias e problemas. O labirinto não é nada mais do que as dificuldades para lidar com seus conflitos internos e fazer essa transição da infância pra adolescência. Tanto que, conforme vamos acompanhando a personagem, vamos percebendo as suas mudanças de comportamento e seu amadurecimento. Ao sair do labirinto ela é uma pessoa bem diferente de quem era antes.
            Bom, mas antes de adentrarmos o labirinto e saber as metáforas que estão ali dentro, precisamos responder uma questão: quem é Sarah?
            No filme vamos saber mais ou menos o que se passa, mas é no livro que teremos um melhor desenvolvimento psicológico da protagonista, ampliando nossa visão sobre a história. Sarah é uma garota de 15 anos, que mora com o pai, a madrasta e seu meio-irmão Toby. Seu sonho é ser uma grande atriz assim como sua mãe, pessoa que não tem muito contato devido a vida conturbada de atriz, mas que é uma influência em tudo que ela faz. Sendo assim, ao ficar ensaiando peças e falas de livro, ela encontra uma maneira de estar próxima a sua mãe, compensando sua ausência. Essa forte ligação que sente com a sua progenitora explica sua frustração quando erra alguma fala ou esquece o texto durante suas brincadeiras, pois, a seu ver, está decepcionando e se afastando da mãe, por não ser uma atriz tão boa quanto.
Devido a essa exaltação da figura materna, ela acaba tendo um certo atrito com o pai, afinal, para ela, ele é um dos responsáveis desse afastamento e, consequentemente, ela vai acabar descontado essa frustração na madrasta e, também, em seu irmão Toby (que representa a concretização do relacionamento de seu pai com outra pessoa que não seja sua mãe).
Bom, você já está entendendo onde eu quero chegar né?


Os múltiplos “eus”

            Não precisa ser formado em psicologia (ou precisa, e eu estou sendo pretensioso de mais dando uma opinião sem validade) para perceber que todos esses sentimentos vão desestruturar a garota, ainda mais na sua idade. Não temos muito contato com a vida da personagem, a não ser nesse evento, mas não parece que a madrasta seja tão ruim quanto ela diz e a sua vida não é essa grande injustiça, só que ela acaba se utilizando disso pra fechar sua relação com a rival e “não trair” a mãe.
            Não sei se tiveram a mesma impressão que eu, mas tanto no livro quanto no filme a Sarah, no início, me parece uma garota bem chata e mimada: ela fica reclamando de tudo mas tem tudo a sua disposição. Não custa nada pra ela cuidar do irmão, ela não teria nenhum outro compromisso, mas faz birra pra chamar atenção e causar uma instabilidade na casa. Então com base naquilo que conhecemos, não é o Toby ou a madrasta que são a raiz do problema, mas sim ela mesmo.
            Quando ela pede para que Jareth venha e leve seu irmão, é como se ela fosse para um universo paralelo e começasse a pensar nas consequências de seus desejos, entretanto, para que essa auto reflexão tivesse algum efeito, ela precisa atravessar esse labirinto interno e cheio de obstáculos, enfrentando tudo aquilo que a impede de crescer e ser alguém melhor.
            Assim como o labirinto é uma batalha interna, todos os personagens que irão aparecer acabam sendo uma extensão materializada da protagonista. Ao assistir ou ler o livro podemos pensar em Sarah como a mocinha e Jareth como o vilão, entretanto, no fundo, são a mesma pessoa. Jareth é aquela parte da Sarah que foca apenas nos seus desejos e ignora todos os outros fatores que estão ao seu redor, pois podemos ver facilmente que sua função na narrativa não é causar mal a personagem, pelo contrário, ele que tirar os empecilhos de sua vida para que possa seguir seu sonho, mesmo que por meios não muito legais. Em determinado momento ele irá falar pra ela algo como: “Eu estou te dando aquilo que você sempre quis”.
            Deste mesmo modo, os outros personagens que irão aparecer na história, também acabam sendo pedaços da personalidade de Sarah. Podemos ver Hoggle como a sua parte medrosa, aquela que sabe que precisa enfrentar Jareth e lidar com as situações das quais sempre fugiu, mas que tem medo de aceitar as mudanças. Ludo representa sua força, aquela que em situações difíceis, faz com que ela consiga se reerguer e seguir em frente, mesmo que precise derrubar barreiras nunca antes abertas. E o Senhor Dídimo é a representação da coragem e da lealdade. Ou seja, Sarah é o resultado desses quatro personagens, e ela só consegue seguir e enfrentar o labirinto se conseguir buscar a harmonia entre todos eles.
            No inicio Sarah é apenas uma garota perdida, mas conforme ela vai conhecendo os personagens e, consequentemente, se conhecendo melhor, você vai percebendo que ela vai crescendo e amadurecendo ao longo da história, deixando de ser aquela garota mimada que só pensa em si. E isso é bacana, porque em nenhum momento vamos ver essas questões diretamente, tudo fica nas entrelinhas, seja nas figuras que ela encontra ou até mesmo nas suas atitudes. Um exemplo disso é que muitas das figuras que ela encontra no labirinto são apenas um reflexo da sua realidade, começando pelo próprio labirinto, que dá título à história que ela esta lendo; o seu cachorro é um personagem importante na aventura; O senhor Dídimo é um dos seus ursos de pelúcia e assim por diante.
            Vou parar por aqui para não me estender muito, mas o labirinto é uma daquelas obras que parecem simples, mas que é composta de diversas camadas e detalhes que dão matéria-prima pra dias e dias de discussão. Então caso tenha alguma teoria maluca e/ou queira conversar sobre alguma coisa, deixe aí nos comentários.


Devo entrar no labirinto ou devo esperar meu irmã/o virar um duende?

            Então, não conheço essa pessoa com quem você compartilha a atenção dos seus pais, mas se ela for pentelha como os irmãos costumam ser, pode deixar lá com Jareth esperando que vire duende. (Se você falar que eu que mandei, eu irei desmentir.)
            Tanto o livro quanto o filme são obras incríveis pra você assistir em vários momentos da vida, e creio que cada vez que assistir irá tirar uma reflexão diferente. Apesar de ser uma obra nitidamente infanto juvenil, ela consegue trazer elementos que irão conversar com cada um de diferentes maneiras. A primeira vez que assisti, achei um tanto quanto denso pra um filme infantil. Da segunda vez eu já comecei a perceber detalhes diferentes e compreender melhor aquele universo. Então não torça o nariz por ser um filme, teoricamente, infantil, ele tem mais conteúdo do que você pode imaginar.
            Como disse anteriormente, tanto o livro quanto o filme são bons. O filme tem a vantagem da parte lúdica, a trilha sonora do Bowie, o cenário e os personagens que são bem bacanas e tal. Já o livro você consegue se relacionar melhor com a subjetividade da história, absorvendo as angustias da personagem e entendendo melhor todo o mecanismo do labirinto. Minha recomendação é pra buscar ambos os formatos, mesmo que a história seja a mesma.
            Por fim, mas não menos importante, não podemos deixar de falar do livro em si. Recebemos O Labirinto em parceria com a Darkside e foi uma grata surpresa. Já estava esperando uma edição bonita, mas ela acaba surpreendendo não só pelos aspecto físico mas pelo conteúdo, porque além do texto vamos ter alguns extras muito bacanas pra qualquer um que seja fã da história. No fim da aventura pelo labirinto o leitor e presenteado com uma galeria de ilustrações que serviram de inspiração pro filme, algo que é incrível, porque vamos ver diversos esboços daquilo que ganharia vida na tela. Além disso vamos ter um artigo que fala de como surgiram as primeiras ideias do filme e, também, pedaços do diário de criação do Jim Henson (diretor e roteirista), em que é possível ver como começaram as ideias e como ele foi lapidando até se tornar a história que acabamos de ler/ver.
            A chave do castelo está em suas mãos, basta atravessar o labirinto.

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