segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Literatura: O homem que caiu na Terra (Walter Tevis)


Se você têm mais de dez anos, é provável que já tenha perdido toda a esperança na humanidade e passe os seus dias torcendo para que uma forma de vida superior te abduza e te leve pra viver em algum lugar bem longe da Terra.
Enquanto isso não acontece, porém, vamos tentando entender os motivos que fazem um ser superior vir até esse planetinha miserável enquanto poderia estar bem distante dos humanos, assim como nós gostaríamos de estar.



            “Estou falando sobre uma guerra de armas grandes. Existem nove países com armas de hidrogênio; pelo menos doze com armas bacteriológicas. Acha que serão usadas?”
“Provavelmente. É claro. Não sei por que ainda não aconteceu. Não sei por que ainda não nos embriagamos até a morte. Ou nos amamos até a morte.”


Título original: The man who
fell to earth
Autor: Walter Tevis
Ano: 1963
Editora: Darkside books
Páginas: 224
Depois de anos se dedicando a estudar os terráqueos em seu planeta natal, Anthea, por meio dos programas de TV exibidos na Terra, Thomas Jerome Newton, nome escolhido para viver entre os humanos, chega aos Estados Unidos para uma grande missão, que envolve não apenas ele mas, também, os outros Antheanos. Recém-chegado a esse mundo estranho, ele precisa juntar dinheiro para colocar seu plano em prática, mas para isso ele precisa se adaptar não apenas aos terráqueos, mas também as adversidades do planeta, como a temperatura e a gravidade.

Um alien entre nós

A história começa com a chegada de T. J. Newton na Terra e irá acompanhá-lo ao longo do desenvolvimento de seu plano. Apesar dessa sua missão ser algo esperado e não haver nenhuma grande surpresas quanto a isso, não irei me alongar e nem falar muito sobre a história em si, para não revelar detalhes, mesmo que estejam implícitos já no inicio da leitura.
Ao chegar na Terra em uma pequena nave, o protagonista, que já conhece um pouco sobre o planeta, devido aos programas de TV que assistia com objetivo estudar os terráqueos, traz consigo alguns anéis na “bagagem” para que possa revender e conseguir algum dinheiro e assim conseguir sobreviver enquanto não inicia seu plano. Adaptado, a medida do possível, no novo planeta, Newton busca o melhor advogado de patentes e inicia sua empresa, produzindo artigos com tecnologia refinada que até então era impossível na Terra. Começando assim a construir sua fortuna que será utilizada em pesquisas para colocar seu plano em ação.
É a partir dessa premissa que toda a trama irá se desenvolver mas, apesar de ser interessante e manter o leitor curioso sobre o desenrolar da história, mesmo que você já tenha uma ideia sobre o que irá acontecer, o foco e o grande diferencial do livro é o protagonista, diferenciando “O homem que caiu na Terra” das outras produções de ficção científica.


O nosso pelos olhos dos outros

Quando assistimos ou lemos obras de ficção científica, geralmente já vamos esperando planetas distópicos, futurismos, androides, alienígenas e coisas desse tipo, enfim, elementos que sejam distantes da nossa realidade, mesmo que dialoguem diretamente com o nosso cotidiano. Como exemplo disso cito a sociedade de Admirável mundo novo ou até mesmo os romances e contos do Dick, que fazem uma alusão à nossa realidade, mas utilizam de uma construção e uma narrativa fantástica.
Já “O homem que caiu na terra”, por sua vez, parte da perspectiva oposta: ele tem o elemento estranho que é o protagonista, mas todas as reflexões e críticas tem como base o mundo tal qual conhecemos, sem apelar pra distopias, máquinas e batalhas alienígenas.
Isso torna a ideia do livro ainda mais interessante porque, ao invés de pegar características sociais e expor de uma forma caricata, ele coloca um personagem externo a nossa realidade para evidenciar aqueles problemas que estão intrínsecos no nosso dia a dia, mas que não percebemos ou simplesmente ignoramos por acharmos que os conflitos estão distantes de nós.
Sendo assim, O homem que caiu na Terra não é sobre um alienígena em nosso planeta para uma missão, mas sim sobre uma visão externa de nossa sociedade que nos permite refletir sobre os nossos surrealismos diários. Além disso, outro ponto que será desenvolvido é sobre o quão tóxico são os humanos e sua capacidade de estragar e infectar tudo ao seu redor. Esse tema vai ficando cada vez mais evidente na medida que os dias de Newton na Terra vão passando, conforme veremos a seguir.


O cientista, a governanta e o alienígena

Toda a trama irá girar em torno de basicamente três personagens: o antheano Newton, e os terráqueo Dr. Bryce e Betty Jo. É a partir desses três pontos de vistas que toda a trama e questões irão se desenvolver, porque é esse contato entre o antheano e os humanos que irá promover a transformação individual de cada um deles.
Newton chega a Terra com um objetivo claro: conseguir dinheiro e colocar seu plano em ação, entretanto, para isso ele precisa de tempo e, principalmente, se relacionar com outros humanos, e aqui está a questão chave do livro, o choque de vidas diferentes. Antes de vir para a Terra, o antheano estudou os humanos a partir de seus programas de TV e rádio, ou seja, todo seu conhecimento sobre o povo deste planeta foi formado pela mídia. Quando ele chega e começa a se relacionar com os terráqueos ele percebe que existem diferenças entre a realidade e o que é mostrado na televisão, pois além das pessoas não serem iguais ao que elas são na tela, devido a diversos fatores, o contato direto tem um papel transformador que os meios de comunicação não permitem. Com isso, durante seu tempo no planeta, Newton vai, aos poucos, sendo contaminado pelos problemas e crises humanas, tornando-se cada vez mais humano e se afastando de sua raça e dos costumes de seu planeta.
Apesar de o antheano ser o protagonista e toda a narrativa girar em cima dele, os outros personagens têm grande importância para o desenvolvimento. O Dr. Bryce é um professor frustrado que certo dia é surpreendido pela tecnologia empregada nos produtos feitos pela empresa de Newton. Curioso com tamanho avanço tecnológico e nenhuma grande informação sobre isso nas revistas especializadas, ele começa a tentar descobrir de onde vem essas ideias, chegando até mesmo a desconfiar de estar diante de uma tecnologia alienígena. Já Betty Jo é uma mulher simples e solitária que acaba ajudando Newton quando ele sofre um acidente. A partir desse evento, a mulher passa a acompanhar o antheano, tornando-se governanta de sua mansão e ajudando-o sempre que possível.
Apesar de características tão diferentes, todos os personagens compartilham de uma mesma característica: solidão.

Ground control to major Tom
Your circuit’s dead, there’s something wrong

Do inicio ao fim o livro carrega consigo um clima de melancolia, é como se todos os personagens, e não apenas Newton, estivesse em um planeta estranho e sem saber exatamente o que fazer e diante das adversidades do mundo, eles acabam buscando escapes para as suas frustrações.
No começo vemos os antheano bem seguro de sua missão, ele está focado e pretende ir até o fim com aquilo que está planejando, mas conforme as páginas vão passando e ele vai tomando consciência das pessoas e do ambiente, começando a ficar cada vez mais desanimado e indiferente. Se em certo momento ele sente saudade da família e dos outros de sua espécie, em outro ele se torna cada vez mais desesperançoso e incerto de suas atitudes. Ao longo da narrativa vamos percebendo um certo declínio do personagem, e o mais interessante de tudo é que conforme o personagem vai caindo ele passa adotar costumes humanos que evidenciam isso. Um exemplo é o consumo de bebidas alcoólicas que o personagem começa a fazer em determinado ponto do livro. Mesmo que o álcool não tenha efeito em seu organismo, ele passa a ter uma necessidade de manter um consumo constante, como se a bebida fosse um placebo e uma forma de ele passar o tempo, sem deixar de ser, também, um jeito de ele se sentir mais humano, compartilhando de seus vícios.
Os outros dois personagens seguem a mesma ideia, mas ao contrário de Newton, eles estão infelizes com a vida desde de o inicio da trama. O Dr. Bryce é um professor que está frustrado por ter que dar aulas pra pessoas pouco interessadas nas ciências enquanto há diversas pesquisas e descobertas ocorrendo do lado de fora das salas de aula, então boa parte do seu tempo ele gasta lendo revistas cientificas como uma forma se inteirar mais da sua área e escapar das banalidades de seu dia a dia, focando na ciência pra não ter que lidar com a vida. Quando ele descobre uma câmera fotográfica fabricada pela empresa de Newton, ele decide ir atrás pra descobrir de onde vem tamanha tecnologia e, quem sabe, tentar fazer parte disso para deixar a sua frustração para trás e conseguir um emprego que ele considere mais relevante.
Betty Jo, por outro lado, é uma mulher que saiu do interior para tentar a vida em uma cidade maior, mas que acabou não tendo grande sucesso em sua empreitada. Pelo que o livro nos mostra, ela é uma mulher solitária que não tem família por perto e também não tem relacionamentos amorosos, então uma de suas poucas felicidades é a garrafa de gim após o expediente. Ao conhecer Newton ela começa a ter certa esperança de que sua vida vai mudar, e muda, ela passa a ganhar muito melhor do que antes e tem acesso a coisas que nunca tivera, mas ela fica ainda mais solitária e cada vez mais próxima de seu velho amigo gim.
Algo bem interessante, que inicia quando Newton conhece Betty Jo, é a desconstrução que ele vai fazendo dos terráqueos. Toda a sua educação sobre a Terra foi feita através de programas de TV e rádio, quando ele chega e começa a conviver com as pessoas, principalmente Betty, ele começa a perceber que a realidade mostrada pela TV e a realidade das pessoas são bem diferentes, e que o veículo de comunicação acaba tendo um papel de criar uma realidade alternativa para ocultar algo que as pessoas não querem ver. Se na TV o foco é a classe média e a felicidade das pessoas, na realidade existem fatores que são excluídos dos meios de comunicação. Esse afastamento da mídia e aproximação das pessoas mostram outros pontos da vida humana que Newton não estava preparado.
Todos esses sentimentos de infelicidade e solidão, que são pessoais de cada personagem, são intensificados por uma questão externa a eles: o processo de autodestruição do homem.


O fim do mundo está próximo

Apesar da história se passar nos anos 80 (se não me engano), ela foi escrita na primeira metade dos anos 60, ou seja, contemporâneo a crise dos mísseis, um dos momentos mais emblemáticos da Guerra Fria. Você deve estar se perguntando: “o que ETs tem a ver com a Guerra Fria?” E eu respondo: tudo.
Apesar das questões existências, tanto do alienígena quanto dos humanos, terem grande importância pra trama, eles só ajudam a criar uma base melhor pra discussão principal do livro que é sobre os caminhos que a humanidade está tomando no período (e ainda hoje, não?). É principalmente nessa questão que Newton surge pra esfregar na nossa cara o quão errado está o mundo, mostrando coisas obvias que a humanidade simplesmente ignora, seja por indiferença, seja por achar que não tem poder pra mudar.
É necessário que venha um ser extraterrestre para mostrar ao homem que os homens estão prestes a se matar por besteira. Em vários momentos haverá discussões sobre os rumos que a tecnologia vem tomando, “por que ao invés de as pessoas usarem os avanços para o bem, elas acabam usando para construir armas para ameaçar/combater o próximo?”, e diante dessa constante corrida armamentista só é possível visualizar um único desfecho: o fim da humanidade.
O mais curioso de tudo, que vai retomar a discussão do tópico anterior, é que mesmo Newton tentando ajudar a sociedade com sua tecnologia revolucionaria, para facilitar a vida das pessoas no seu dia a dia, outras empresas passam a utilizar essa nova tecnologia não para melhorar a vida das pessoas, mas sim na construção de armas mais eficientes. Esse é um dos principais pontos que agravam os sentimentos de Newton diante dos humanos, ficando cada vez mais claro que a Terra parece ser um lugar sem solução.


O homem que caiu no cinema

Em 1976 a obra de Walter Tevis ganhou uma adaptação cinematográfica que tem David Bowie em seu primeiro papel como ator, interpretando o extraterrestre T. J. Newton.
O filme carrega exatamente a mesma base do livro, um alienígena que vem a terra com a missão de arrecadar dinheiro para um plano maior, entretanto ele tomara caminhos diferentes na história. Até certo ponto você acredita que será uma trama bem fiel ao original, mas chega um ponto que o diretor parece ligar o foda-se e decide fazer o que quiser, ignorando a história e os dilemas livro, mantendo apenas a estrutura. Isso não é ruim, pois se cria uma nova forma de interpretar e transmitir a história, mas, pelo menos pra mim, não é tão interessante quanto o livro.
O filme como um todo é bem legal, ele é bem feito, tem atuações convincentes e tem uma atmosfera interessante (e bem diferente do livro). Não apenas por ser fã do camaleão, mas o Bowie é uma figura bem interessante de assistir, ainda mais porque é impossível não pensar nele durante a leitura do livro, toda a sua estranheza caracteriza bem seu deslocamento, do mesmo modo que sua aparência alienígena, apesar de simples, é bem feita se considerarmos a época.
Mas, por outro lado, o filme, pra mim, teve mais pontos negativos que positivos. Se no livro estamos presenciando uma constante discussão sobre o ímpeto autodestrutivo do homem, dilemas da guerra fria e, principalmente, a decadência do homem (e do alien) diante do modo de vida da sociedade, no filme tudo isso fica muito superficial. O clima de melancolia e solidão do livro acaba se transformando em algo mais próximo a loucura na sua adaptação. Outro ponto que acaba prejudicando é que, apesar da atuação do Bowie ser bem interessante, não conseguimos manter o mesmo sentimento de empatia que temos no livro, uma vez que durante a leitura estamos em constante contato com seus pensamentos e impressões sobre a Terra, no filme temos apenas suas ações, prejudicando essa aproximação entre expectador e personagem.
Enfim, é um filme interessante e que eu indico pra quem é fã do David Bowie, mas quanto à questão história e experiência eu gosto muito mais do livro. Além dos pontos citados, o filme é bem longo (2h e 20min) sem necessidade. Por algum motivo, o diretor decidiu colocar varias cenas de sexo que no livro não tem, isso junto com algumas cenas meio surreais de Anthea e outras passagens perdidas, que acabam ocupando bastante tempo e tornando o filme meio massante. O filme é bacana se você tiver paciência e tempo, mas ele não substitui o livro.

Devo embarcar nessa nave espacial?

Sim, apesar de tantos livros interessantes de scy-fi no mercado, O homem que caiu na Terra consegue se destacar por sua simplicidade. Aqui não vamos ter aquele monte de coisas que a ficção cientifica costuma ter (robôs, tramas futuristas, cyber-punk, computadores com inteligência artificial, grandes reviravoltas distópicas, etc), vamos ter apenas um humanóide de outro planeta, e mesmo assim está muito longe de ser o foco da trama. Diferente do filme que é arrastado, o livro é super fluido. Mesmo sem grandes plot-twists você quer sempre avançar pra saber qual será o desfecho do antheano T.J. Newton.
O livro, recebido em parceria com a Darkside, mantém a qualidade já conhecida da editora. O grande diferencial é o corte das páginas na cor laranja, que fica bem bonito, e também o marcador de páginas triangular com a foto do Bowie no filme que acompanha o livro.

Enfim, tanto pela história quanto pela edição, embarque logo nessa nave e vá pra bem longe da Terra, porque não temos mais solução.


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