segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Literatura: A queda da casa de Usher (Edgar Allan Poe)


            No ano passado a Anna Costa criou o desafio literário #12MesesDePoe, o Café até tentou seguir e contribuir para o projeto, mas falhou miseravelmente postando apenas quatro resenhas. Como adoramos nos iludir e fazer resoluções de ano novo que nunca vamos cumprir e continuamos postergando ano após ano, nós do Café iremos TENTAR acompanhar a versão 2017 do projeto. Então se falharmos mais uma vez não jogue isso na nossa cara porque eu também duvido que você tenha alcançado alguma meta que você tenha feito na sua vida, e se alcançou pouco importa porque você vai ter novas metas e morrerá buscando algo.
            Desculpe pela sinceridade.
            Mas voltando, o projeto #12MesesDePoe vai ter uma nova edição nesse ano e caso queira mais informações e conhecer mais desse Sr. Bigodinho tão amado por todos é só clicar em algum dos links.
            Dito isso vamos ao que interessa: Who the fuck is Usher?



“A uma espécie anômala de terror descobri que era escravizado. “Perecerei”, disse-me, “estou fadado a perecer nesta deplorável loucura. Desse modo, e de nenhum outro, conhecerei minha ruína. Temo os eventos do futuro não em si mesmos, mas em seus resultados. Estremeço ao pensamento de qualquer incidente, mesmo o mais trivial, que possa influenciar essa intolerável agitação de minha alma. Não abomino de fato o perigo, a não ser por esse absoluto efeito – o terror. Nessa condição perturbada – lamentável – sinto que chegará mais cedo ou mais tarde o momento em que deverei abandonar vida e razão simultaneamente, numa luta com esse sinistro fantasma, o MEDO.””

Título original: The fall of the
 house of Usher
Autor: Edgar Allan Poe
Ano: 1839
Lido em: Contos de imaginação
 e mistério (Tordesilhas)
Paginas: 20
Após receber a carta de Roderick Usher, um velho amigo, falando sobre uma terrível doença que o assola e pedindo para que o companheiro de infância fosse lhe fazer uma visita, o narrador, comovido com o pedido e animado em rever alguém que foi querido em seu passado, acata o pedido e viaja para a casa de Usher com o intuito de fazer companhia ao amigo e, quem sabe, trazer algum alivio para seu mal. Chegando ao destino, ele se depara com um casarão deteriorado e envolto em uma nevoa de melancolia e horror. Assim como, ele irá descobrir posteriormente, a situação de seu amigo.

Um texto vivo sobre os moribundos

            Resenhar contos do Poe nunca é uma tarefa fácil. Superficialmente ele parece estar contando uma história de certo modo simples, mas cada detalhe da obra pode mudar a sua perspectiva e, consequentemente, o entendimento daquele texto. Sendo assim é muito comum que a minha absorção do texto seja diferente da sua, como também é possível que a cada releitura a ideia central se transforme, e é isso que torna o autor tão especial e consagrado, a sua escrita é viva e está em constante movimento.
            Em A queda da casa de Usher não é diferente. Eu reli o conto umas três vezes e cada uma delas eu encontrei algo novo. E isso não apenas acrescenta detalhes à história como também faz com que você reconsidere muitas coisas. Então,  sempre que for ler algo do Poe nunca olhe a história como algo de início, meio e fim, mas sim como um fragmento de algo que pode te levar pra diversos caminhos.
            Dito isso vamos conversar sobre o conto.
            Narrado em primeira pessoa, o conto nos leva a conhecer a história desse homem que, compadecido e preocupado com a situação, vai visitar um velho amigo que enviou uma carta falando de sua grave doença e solidão. Acreditando em poder trazer um pouco de ânimo pra vida reclusa do amigo, ele faz uma longa viagem até a casa de Roderick Usher. Ao chegar lá, no entanto, o protagonista é informado que não apenas seu amigo, mas também a irmã de Usher, sofre da grave doença que persegue a família. A estadia do narrador fica ainda mais estranha quando, horas depois de sua chegada, a irmã morre.
            A historia do conto é essa, e muito da trama vai girar em cima do falecimento da irmã de Usher, algo que por si só já se torna um conto de terror interessante, mas estamos falando de Poe então podemos perceber a construção de diversas camadas que dão profundidade ao conto.
A primeira coisa é simples, Poe é um autor que trabalha muito os limites entre o real e o sobrenatural, então ao terminar diversos contos ficamos refletindo se realmente há forças externas ou não. Sendo assim, algo que eu acredito merecer atenção é que o narrador, como em outros contos, é alguém que não se apresenta, então tirando aquilo que ele nos fala, não sabemos nada dele. Esse narrador escreve a história em um momento futuro aos acontecimentos, então muito do que ele nos conta pode ser reflexo daquela experiência, ou seja, sua percepção sobre a casa e sobre a situação do amigo pode ter sido ampliada diante do ocorrido. Outro ponto que convém ressaltar é que ele fica por dias na casa, mas temos apenas alguns fragmentos de sua estadia, fragmentos que foram selecionados e narrados pelo protagonista.
Por mais clichê que seja falar que o narrador não é confiável, acredito ser importante porque lidamos com histórias que beiram ao absurdo sendo narradas por alguém que esteve presente nos eventos. Logo questionar sua sanidade e sua intenção ao contar a história me parece algo relevante.
            Dito isso, a própria forma como o conto é narrado abre diversas questões que geram duvida e desconfiança, mas além disso, ou por conta disso, o próprio Usher é um personagem bem curioso, que apesar de conhecermos suas enfermidades e seus conflitos nunca sabemos de fato o que ocorre com ele. 
           
Era uma casa muito engraçada
Só tinha doença só tinha rachaduras

            A partir daqui darei alguns spoilers porque o conto é curto e é difícil abordar qualquer assunto sem falar sobre alguns acontecimentos. E vamos ser sinceros, se você ainda não leu o conto, para de vagabundagem e vai ler: tá na internet de graça e só tem 20 paginas, depois você volta e me agradece. De nada.
            Já leu? Pronto. Agora podemos continuar.
            Do início ao fim vamos ter um clima de estranheza, tudo assume uma característica efêmera e nada do que está ali é muito concreto. A primeira coisa que nos chama a atenção é a casa de Usher, pois mesmo antes que se adentre nela a casa tem uma característica bem marcante que mantém tanto o narrador quanto o leitor intrigado. A bruma que rodeia a casa, o seu reflexo no lago próximo, a rachadura que percorre suas paredes, o musgo que toma as paredes, etc. fazem com que a casa ganhe uma vida própria, pelo menos nos olhos do narrador. É como se o exterior da casa fosse uma clara representação daquilo que está dentro dela. O que ficará ainda mais evidente com seu fim, que desmorona logo após a morte dos últimos herdeiros da casa de Usher.
            A casa, sendo assim, é uma extensão daquela família, ela, por trás do bolor crescendo em suas paredes, da deterioração e do abandono ela ainda exibe o esplendor que teve no passado. E, como veremos logo depois, a família é igual. O nome Usher, na infância do narrador e seu amigo, era um nome de grande respeito e importância, mas devido a uma doença, a família, e a casa, foram morrendo até restar apenas Roderick e sua irmã gêmea, debilitados e sem o prestigio que um dia o nome da família gozara.
            E nisso vamos percebendo um flerte com o sobrenatural, levantando dúvidas se os acontecimentos são naturais ou não, ainda mais quando começamos a analisar a situação de Roderick.

Não é o rapper, é outro Usher

            Como vamos saber logo no início, o último da linhagem Usher sofre de uma doença que assombrou toda a família, apesar de não sabermos que enfermidade de fato é essa. Saberemos apenas que se trata de uma “afecção nervosa, manifestando uma infinidade de sensações antinaturais”, resumindo, ele tem uma espécie agudez mórbida em todos os sentidos: ele precisa comer coisas com pouco tempero, a luz forte incomoda seus olhos, determinados som causam horror, alguns tecidos machucam sua pele. Então ele acaba vivendo isolado em casa com sua irmã, que está cada vez mais próxima da morte, sem contato com o mundo externo.
            Isolamento, doença da irmã, o peso de ser o último da linhagem, enfermidade e etc. podem ter levado Roderick a sofrer de diversos transtornos psicológicos, potencializando sua melancolia, depressão e, até mesmo, a causa da sua “agudez mórbida”. Contudo, Poe constrói uma narrativa que brinca com a questão do que é físico, o que é psicológico e o que é sobrenatural, não sendo possível saber se as enfermidades de Roderick são uma consequência dos seus abalos psicológicos ou se o seu estado mental foi deteriorado devido a sua doença, como também há a possibilidade de tudo isso ter sido um ataque da casa sobre seu espirito, como Roderick revela ao narrador. A história vai girar então em torno desse rapaz atormentado, por diversos fatores, que está prestes a perder a irmã.
            Assim, se você está me acompanhando até agora deve ter chegado a mesma conclusão que eu sobre o conto: Quêquêtaconteceno?

Algumas Poessibilidades

            Se você for um leitor preguiçoso, provavelmente irá considerar que ele realmente sofre da doença, fez o sepultamento acreditando que a irmã estava morta, as questões sobrenaturais que ele acreditava foram tudo fruto da imaginação de Usher e a queda da casa foi simbólica ou simplesmente coincidência por já estar velha. Mas se for um desocupado como eu e ter, no fundo da alma, a convicção de que os detalhes do texto não são meras coincidências, você vai inventar diversas teorias sobre o que de fato aconteceu, mesmo sabendo que nunca chegará a lugar nenhum.
            Algo que não podemos deixar de pensar é que a vida de Roderick e de sua irmã se resumiam à casa, já que não podiam sair dela pelos problemas de saúde, sendo assim, a relação social que eles tinham se retingia um ao outro e aos empregados. Dito isso podemos pensar que a relação dos dois era bem próxima, não apenas pelos fato de serem gêmeos, mas pela situação que se encontravam. Eu até poderia cogitar uma relação incestuosa pela forma que ele fala da família e da irmã, mas aqui é um blog de respeito e não uma revista barata que inventa boatos pra vender.
            Independente disso, diversas reflexões aleatórias passaram pela minha cabeça nas leituras e releituras: 1 – Desde antes da chegada do narrador a Madeline (irmã) já estava morta, como se Roderick estivesse vivendo essa ilusão devido ao “confinamento” e só com a chegada do narrador ele consegue aceitar (ou não) que a irmã se foi. 2 – Toda a condição de Roderick é psicológica e se agravou com o adoecimento da irmã, tanto que mesmo com a melancolia e o sofrimento diante da situação em nenhum momento vemos ele sofrendo de fato com aquilo que ele descreve ter. 3 - Roderick sepulta a irmã sabendo que ela está viva, afinal a catalepsia era um sintoma de sua enfermidade, e, após o sepultamento, a culpa começa a recair sobre ele, ficando atormentado. Se ela volta pra se vingar ou se é a consciência dele a escolha é sua. 4 – A Lady Madeline realmente morre, mas acaba retornando dos mortos. Um dos fatores que me levaram a pensar nisso foi que Roderick reproduz em sua irmã o ritual de um antigo livro sobre “vigilância da morte” de uma antiga igreja e, não menos importante, ficar sete dias sem comer e ainda ter forças pra se libertar da sua sepultura me parece um pouco exagerado. 5. Uma possibilidade clichê, mas que não descarto, é a possibilidade de tudo se passar na cabeça do narrador, já que desde sua chegada na casa ele se vê golpeado pela aparência e pelo ambiente que permeia a casa, então considero que, por ser uma longa viagem, quando ele chega já estão mortos e a casa está abandonada, então ele revive aquilo que se passou ali dentro.
            Enfim, se eu ler novamente novas possibilidades e teorias vão me atormentar. Mas independente da leitura que você faça uma coisa é muito clara: as linhas que separam o psicológico, o físico e o sobrenatural são muito tênues, e nunca vamos saber se estamos no caminho certo.

Entre, as portas estão abertas

            Arrisco dizer que A queda da casa de Usher tenha sido o conto que mais gostei dos que li até agora. Ele, apesar dessa fachada simples da primeira leitura, acaba abrindo diversas portas a cada releitura, como se toda vez que você retornasse a casa ela estivesse diferente e evidenciando detalhes novos.
            A escrita do Poe pode causar certo estranhamento se você não está acostumado com o autor, mas é um bom conto pra se aproximar do trabalho dele – diferente de contos como Revelação Mesmeriana que exige muito mais do leitor -, sem contar que essa linguagem adotada pelo autor é extremamente necessária para dar o clima de melancolia e mistério pra trama.
            Dito isso, não vou falar pra você ler ele porque, como disse lá em cima, já era pra ter lido e se está aqui e não leu ainda, sinta-se envergonhado. Então o que eu tenho a dizer é: releia e depois volte aqui para compartilhar suas teorias com a gente, desde as mais simples interpretações até as mais bizarras como as minhas.
           

            Obs. Preste atenção na edição que você está lendo, porque tem algumas que são superiores a outras. Minha primeira leitura foi em uma edição exclusiva da saraiva feita pela Nova Fronteiro, quando peguei a da Tordesilhas, a experiência foi completamente diferente. A da saraiva, apesar de dizer ser o texto integral, tem metade da quantidade de páginas que a da Tordesilhas, que além de ter uma melhor tradução também oferece uma experiência bem mais completa.

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