quinta-feira, 9 de março de 2017

Literatura: Assombro (Chuck Palahniuk)


            Você já sonhou em ser escritor? Ter seu livro publicado, ganhar reconhecimento das pessoas e da imprensa, concorrer a prêmios, ser um best-seller nacional e internacional, e todas essas coisas atreladas a fama?
            Agora eu te pergunto: o que te impede? Porque você não senta essa bunda gorda na cadeira, desliga o celular e os sites eróticos e começa a escrever? Eu sei que você vai dormir tarde todo dia fazendo coisas inúteis na internet como ler esse blog ou pesquisar no Google se pinguins tem joelho. Imagina o que você teria produzido em todo esse tempo vagabundeando internet a fora?
            Sim, eu sei que a verdade dói e que você poderia estar rico nesse exato momento se não tivesse desperdiçado sua vida (como está fazendo agora), mas eu tenho a solução: um retiro de escritores. Nele, você vai ficar longe de tudo e de todos por 3 meses para não ter distrações e conseguir escrever sua obra prima. Essa é a sua chance de ter a vida que sempre sonhou. Topa?




“Pense numa máquina de lapidar pedra, um daqueles tambores, que gira e gira vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, cheia de água, pedra e cascalho. Triturando tudo. Dando voltas e voltas. Polindo aquelas pedras feias e ásperas até deixá-las lisinhas. Isso é a terra. Por isso ela gira. Nós somos as pedras. É o que acontece com a gente – o drama, a dor, a alegria, a guerra a doença, a vitória e a violência-, ora, isso é só a água e a areia nos erodindo. Triturando-nos. Para nos polir, bem bonitos. ”
  
Título original: Haunted
Autor: Chuck Palahniuk
Ano: 2005
Editora: Leya
Páginas: 505

Um inusitado anúncio do jornal  passar três meses isolados em um retiro para escritores, com o intuito de deixar as obrigações de lado e se dedicar totalmente a sua escrita sem nenhuma distração externa  chama a atenção de dezoito pessoas que decidem se arriscar nessa empreitada, dando uma pausa na vida para almejar o sonho de escrever algo relevante. Nenhuma informação, além do anúncio é dada. Após entrarem em contato com o responsável, um ônibus busca todos os candidatos e os leva para destino, que será a moradia dessas pessoas pelos próximos 90 dias.
            Quando chegam eles percebem que o retiro é algo diferente do que imaginavam: um teatro, sem janelas e com todas as portas trancadas. Em meio esse cenário claustrofóbico, atritos começam a surgir levando cada um desses participantes ao limite, seja pela sobrevivência, seja pela fama.



Bem-vindos ao retiro

            Antes de conversarmos sobre o enredo vamos falar um pouco sobre a estrutura da obra. Assombro é um romance de histórias (como a própria capa diz), ou seja, essa sinopse acima é apenas o ponto de partida para o principal: os contos. Os acontecimentos e os personagens que estão presos nesse “retiro” funcionam como fios condutores para os vinte e três contos que teremos ao longo do livro.
Tendo isso em vista, o livro segue um padrão. Em cada capitulo vamos ter três partes: a primeira vai narrar o que está ocorrendo dentro do retiro; a segunda, chamada de poema, faz uma breve apresentação sobre o tema que virá a seguir; e por fim, o conto. A primeira parte trata de um modo mais geral todos os personagens presentes no teatro, já o poema e o conto partem de um personagem especifico em cada capitulo.
Pode parecer um pouco estranho e disperso, mas tudo funciona muito bem, porque essas mini histórias contadas por cada personagem se entrelaçam com o enredo base. Além de desenvolver personalidade, passado e motivações desses personagens tão diferentes que estão presos a uma mesma situação, também dá complexidade e dinâmica pro livro.
Se você nunca leu Chuck deve estar pensando: “Tá bom, então o livro é sobre pessoas que sonham em escrever presos em um teatro abandonado contando historinhas? ”
A resposta é: sabe nada inocente.

Reality (Horror)Show

Assombro é sem dúvidas um livro do Chuck, toda a sua essência está escarrada na trama e nos contos indigestos, absurdos e reflexivos. Se você leu algo dele sabe exatamente o que eu estou dizendo. Por mais violento, bizarro e chocante que possa ser a leitura, nada que está ali é gratuito, tudo tem uma intenção bem definida e ele sabe exatamente onde está a ferida a ser cutucada. Mas vamos lá.
Na trama principal teremos 20 personagens, os dezoito que se candidataram mais o Sr. Whittier pessoa que organizou esse retiro de escritores e a Sra. Clark, sua ajudante. Com exceção desses dois últimos, todos os outros serão tratados por apelidos, mesmo que tenhamos contato com o nome deles nos contos, a nossa maior referência serão as características física/comportamentais que serviram de inspiração para os mesmos (Sem-pança, Lady Mendiga, Casamenteiro...). No início isso vai parecer bem confuso, por não conhecer os personagens, mas com o tempo as tramas vão se costurando e os apelidos passam a fazer sentido.
Logo nesse detalhe, nomeação dos personagens, já começamos a ver a acidez da narrativa do Chuck. Tal qual um reality show, desses que temos diariamente na TV, a pessoa em si não tem valor, o que importa é o seu papel e sua representação dentro daquele ambiente. Se a pessoa chama Miguel, Bruno, Wesley, Victor ou José é indiferente o importante é aquilo que ele transmite para o público o maromba, o esquentadinho, o gordo, o policial , ou seja, há uma redução da essência da pessoa a uma simples categoria, não apenas nas telinha como na vida. O estigma do que a pessoa aparenta ser grita mais alto do que o que ela é de fato.
Ainda seguindo a mesma ideia, essa trama base vai ter muita influência dos reality shows, como uma parodia sarcástica desse universo. Um grupo de pessoas trancafiadas tendo que lidar com isolamento, fome, conflitos, tédio e todas as coisas que esses programas promovem, entretanto, aqui, tudo ganha proporções que vão muito além daquilo que conhecemos. E o principal estopim para os surrealismos que acontecem dentro desse teatro é justamente o desejo principal de todos os participantes de reality show: a fama.

Todos desejam estar por trás da câmera

A discussão predominante nessa narrativa fora dos contos é a questão de “estar por trás das câmeras”, ou seja, ser a pessoa que dá as ordens, estar a par de tudo e não ser apenas o boneco de manobra dos outros, por mais que você seja. Isso tudo gira em torno da própria ideia do reality show, porque todos aceitam fazer parte do projeto de escritores, mas ao chegar lá e ao se verem como parte de um possível experimento, eles acabam mudando de ideia quanto ao objetivo principal. Se antes era ir ao retiro pra escrever um livro, ao chegar o objetivo muda, eles querem ser os protagonistas da história e não apenas mais um mero personagem daquele estranho projeto. Então o livro deixa de ser algo relevante e eles começam a planejar como será a melhor forma de tirar proveito da situação. Como transformar aquele experimento do Sr. Whittier em publicidade para as suas vidas?
Dessa situação começa a surgir diversos questionamentos e críticas, de uma forma sarcástica, sobre até que ponto as pessoas querem atingir a fama e serem reconhecidas. E isso é interessante porque as pessoas ali não querem o reconhecimento pelo que elas são de fato ou pelos seus trabalhos (como acontece nos BBBs da vida), mas sim a fama pelo simples fato de terem participado de uma tragédia ou de algo que venha a ter apelo público. Então ao invés de usarem seu tempo para escrever o livro, como a proposta inicial, elas ficam arquitetando a história que irão contar pra imprensa ao saírem dali, e assim conseguirem vender os personagens que criaram pra si e para os outros. Pensando na própria desgraça como a melhor arma para conseguir aquilo que almejam: o sucesso sem trabalho.
Paralelamente a isso e a tudo que vai se desenrolar dentro desse teatro, os personagens vão contando breves histórias sobre suas vidas, permitindo ao leitor compreender quem são. E já adianto que dificilmente você iria gostar de conhecer alguma dessas pessoas.



Pequenos contos sobre nossas grandes desgraças

Não entrarei em detalhes sobre os contos, porque não vou ficar falando sobre cada um dos 23 só vou adiantar que o primeiro conto da obra é bem famoso por ter feito (supostamente) pessoas vomitarem e desmaiarem durante algumas leituras ao vivo, ele é bem interessante mas adianto que tem outros melhores (mas caso tenha interesse em testar seu estomago e sanidade basta procurar pelo conto “Tripas”) , mas darei um apanhado geral do que os une.
Assim como na trama que envolve as pessoas dentro do teatro, os contos também carregam o estilo do autor no qual, a partir de situações absurdas mas não impossíveis (pelo menos a maioria delas), ele vai expor o que há de pior e de mais surreal nas atitudes humanas. Isso tudo faz com que você esboce aquele sorrisinho de canto enquanto internamente sofre por perceber que, por mais bizarro que tudo aquilo seja, é perfeitamente possível pensar e aplicar essas coisas no seu dia a dia. Afinal, todo dia escutamos histórias sobre: cobiça, busca pela fama, gente passando por cima dos outros, busca pelo prazer, revistas com notícias manipuladas, etc. etc. etc.
Portanto, todos os contos do livro, direta ou indiretamente, acabam sendo reflexões sobre a nossa sociedade, em que através do improvável e de uma descrição nem um pouco agradável ele mostra o quão doente e toxico nós somos, sejam pros outros, seja pra nos mesmos. E isso é o mais me agrada no livro, o autor consegue, por ser um livro de contos, tratar de diferentes assuntos e ainda manter uma conexão, porque todos estão ligados por uma mesma ideia, todos fazem parte do mesmo sistema, todos estão inseridos na mesma sociedade e todo o problema parte de um objeto comum: o homem.
Deste modo podemos dizer que Assombro é um livro sobre limites e sobre como as pessoas estão dispostas a ultrapassá-los para atingir aquilo que almejam.

Devo assinar o payperview desse reality dos escritores?

Claro, leitor, vai dizer que você não adora ficar vendo a vida das pessoas pela telinha? Quem não adora um barraco ou uma safadeza no Big Brother pra ficar comentando sobre a pouca vergonha que é esses programas — mas não perde um único episódio?
Quanto ao livro... Eu sou um pouco suspeito pra falar sobre porque o Palahniuk está entre meus autores favoritos, então pode ter certeza que essa resenha não é nem um pouco imparcial. Logicamente, tentarei convencê-los a vir pro meu time. Se eu achar que você merece, é claro. Mas vamos lá: não apenas Assombro mas como outros livros do autor (Clímax, Snuff, Monstros invisíveis...) são obras que são para um público especifico, portanto é perfeitamente compreensível não gostar. São livros que não tem dó do leitor, tanto por sua linguagem quanto pelo conteúdo, pois são indigestos e incômodos na medida em que o autor não apenas mostra o pior do homem como também faz questão de esfregar na sua cara, ora de um jeito irônico e divertido, ora apelando pra violência e escatologia.
Contudo, se você está nesse blog, por livre e espontânea vontade — sem uma arma em sua cabeça te obrigando a navegar nesse antro de sexo, tripas e café — e bem provável que você tenha uma certa inclinação a gostar dessas coisas estranha que nós do blog tanto gostamos. Então minha indicação é sim, vá atrás do livro e se lambuze, a escrita do Chuck é super divertida, vira e mexe você se pega rindo sozinho do seu humor ácido e cheio de maldade, o que torna a leitura leve apesar do conteúdo nem um pouco bonito. Além disso, todos os contos são bem interessantes, cada um à sua maneira, e todos conseguem trabalhar temas cotidianos de uma maneira que você nunca imaginará ou irá encontrar em outro lugar.

As portas do reality estão abertas, de qual lado da câmera você está?

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