quinta-feira, 30 de março de 2017

Literatura: Bom dia, Verônica (Andrea Killmore)


            Bom dia! O que você faria se você estivesse presente no momento em que uma pessoa comete suicídio e, não bastando, todos ignorassem os motivos que levaram a isso? O que você faria se soubesse que uma mulher pode ser assassinada pelo marido a qualquer momento?
            Você teria empatia suficiente para intervir ou simplesmente se iludiria falando que isso não cabe a você? Sim, eu sei que você está se enganando falando que ajudaria a pessoa, mas... será que é verdade?




“Silencio absoluto, como manda a regra da casa nesse horário. Ela mastiga a comida, que sabe estar deliciosa, mas só sente o gosto arenoso. É o sabor da amargura. Na televisão, Brandão vê um programa de notícias locais. A chocante história de uma mulher que se jogou da janela de uma delegacia. Nesse momento, de um jeito torto, Janete se identifica: existem no mundo outras pessoas com a vida tão desgraçada quanto a dela. Nem na tragédia ela é especial. ”
  
Título original: Bom dia, Verônica
Autor: Andrea Killmore
Ano: 2016
Editora: Darkside books
Páginas: 251
Após presenciar o suicídio de uma mulher dentro do prédio em que trabalha, Verônica Torres, secretária da polícia civil, decide ir atrás dos motivos que levaram aquela mulher a um ato tão desesperado, mesmo com seu chefe arquivando o caso e pedindo para que ela não se envolvesse.
Paralelamente, Janete, uma dona de casa casada com um policial militar, se vê presa em um bizarro relacionamento, acreditando que pode ser assassinada pelo marido a qualquer momento. Sua única esperança é uma policial chamada Verônica, que ela vê na televisão durante a reportagem sobre uma mulher que se atirou do prédio da polícia.

Adeus, Verônica

Bom dia, Verônica é um romance policial, e como a grande maioria do gênero, é um livro que tem como foco principal a investigação e os mistérios que vão surgindo pelo caminho da protagonista. Assim, qualquer coisa a mais que eu falar sobre pode entregar detalhes da trama e estragar a experiência de vocês, por isso falarei brevemente sobre a história e depois irei focar naquilo que a meu ver é tão importante quanto, que são as discussões que podem ser levantadas durante a leitura. Farei de tudo para evitar spoilers, pode ser que apareça alguma coisa ou outra pra dar consistência na resenha e permita dialogar com o livro, mas nada que estrague sua experiencia com o livro.
Dito isso, vamos lá.
Casada e com dois filhos, Verônica trabalha como secretaria da polícia civil de São Paulo. Apesar dos problemas do dia a dia, ela tem uma vida aparentemente normal com sua família: possui um marido companheiro com quem divide as tarefas, cuida dos filhos e participa de suas atividades, tem uma boa condição financeira, etc. Quando ela presencia o suicídio de uma garota dentro do prédio da polícia e vê seu chefe ignorando o caso, no entanto, Verônica decide que precisa descobrir o que de fato aconteceu com a garota, mesmo não sendo seu trabalho e tendo que agir fora dos registros.
Não bastando isso, algumas horas depois, ela ainda recebe a ligação de uma mulher desesperada dizendo que seu marido é um assassino, acreditando que pode ser morta por ele a qualquer momento. A protagonista se vê entre o caso dessas duas mulheres, que apesar de constituírem casos diferentes, são vítimas de um mesmo inimigo, o homem.
Decidida a descobrir os motivos do suicídio de Marta e ajudar Janete a se livrar daquele relacionamento, ela começa a agir, mesmo que isso cause problemas no seu trabalho e na sua família.


Entre vítimas, assassinos e descasos

Bom, a premissa básica do livro já sabemos, agora vamos conversar sobre algumas questões que estão presentes já na sinopse, mas que podem ser ofuscadas pela trama.
Romances policiais, em geral, tem como foco contar uma história que envolve investigações e mistérios, em que alguém tem que desvendar as pistas pra prender o vilão. Em Bom dia, Verônica teremos isso como principal fio condutor da história, mas, pelo menos pra mim, parece que a autora teve a intenção de ir além de um simples romance policial, quer dizer, seu objetivo é maior que contar uma simples história de investigação. Vamos por partes.
O livro, em teoria, tem dois vilões, porém, vamos percebendo que durante a leitura outros vão surgindo, sejam eles pessoas ou estruturas. Fiquemos nos principais por enquanto. Resumidamente, para não dar spoilers, um deles é um homem que dá golpes em garotas pela internet, agindo como um homem carinhoso e que está passando por problemas para ganhar a confiança da vítima. O outro é um policial militar, casado, que mata garotas em um momento de fragilidade/dificuldade.
Já sabe onde quero chegar?
Apesar dos criminosos terem um modus operandi diferente, ambos os criminosos atacam exclusivamente mulheres em momentos de dificuldades, eles abusam daquele momento para satisfazerem seus desejos mais sórdidos, passando por cima de suas vítimas e escondendo seus rastros. Ou seja, mulheres são apenas instrumentos descartáveis para alcançar aquilo que desejam.
Conhecendo os vilões explícitos da trama, agora podemos partir para os indiretos (que causam tanto problema quanto).
Diariamente vemos casos de violência doméstica, garotas sendo estupradas, sofrendo golpes na internet, sendo diminuídas pelo seu sexo, sendo exploradas fisicamente e psicologicamente, etc. Apesar de algumas mudanças tímidas acontecerem, a verdade é que estamos bem longe de resolver o problema, uma vez que ele não se resume a pessoa, mas sim ao sistema como um todo, como poderemos ver no livro. Na história, embora tenhamos esses dois vilões como fonte dos problemas da trama, se observarmos de perto, veremos que, com exceção de Verônica, as pessoas estão pouco se fodendo para os problemas com os quais ela está lidando, porque é muito mais fácil culpar a vítima do que resolver o problema de fato.
Quando Marta vai até a delegacia denunciar o homem que deu o golpe, fica claro que ninguém está afim de ajudá-la, afinal ela é apenas outra garota inocente e burra que caiu em um golpe tão comum. Sem se importar com tudo aquilo que estava se passando com ela. É muito mais fácil arquivar o caso dizendo que foi suicídio do que ir atrás do cara que abusou psicologicamente da garota e a levou a se matar. O caso de Janete segue a mesma linha: ela nunca denunciou o marido porque sabia que não seria levada a sério, como as tantas mulheres que sofrem violência doméstica, e também por ser casada com um policial, o que ata suas mãos para a realização de qualquer tipo de acusação. Se o seu marido e os amigos dele são a polícia, quem iria protegê-la? (Who watches the watchmen?) Isso faz com que sua única esperança seja outra mulher, pois a vida lhe ensinou que não se pode confiar em homens.
De um lado temos dois assassinos e um sistema majoritariamente masculino. Do outro lado duas mulheres que sofrem na mão de homens e que não podem fazer nada além de esperar (ou ir atrás) da própria morte. No meio disso tudo temos Verônica, uma secretaria da polícia que se vê na obrigação de tomar alguma atitude.


Bom dia, mulher

Era o primeiro dia do fim da minha vida.
Essa é a primeira frase do livro. Vamos entender o seu significado principal conforme avançamos na leitura, no entanto, ela representa algo além do que a própria narrativa quer nos dizer num primeiro momento. Um desses significados eu simplesmente não vou abordar porque está ligado a trama e não quero estragar a experiência de ninguém, mas o outro eu vou botar aqui pra levantar a discussão e pontuar aquilo que, pra mim, é a questão principal da história, que é a posição da mulher na sociedade e toda a merda que elas precisam enfrentar pra sobreviver.
Do início ao fim da leitura encontraremos temas ligados a mulher e todos os problemas enfrentados por elas diariamente, desde aqueles citados no tópico anterior sobre violência e repressão, até assuntos como sexualidade, relacionamento, emprego, etc. Entretanto, em nenhum momento o livro preocupa em ser didático a esse respeito, ou seja, não vamos ter desenvolvimento do assunto e nem mesmo partes em que o livro diz pro leitor: “Ei, tá vendo isso? Culpa do machismo estruturado na sociedade.”. Geralmente, os temas são tratados de forma subjetiva, estando expostos pra todo mundo e causando diversos problemas, mas, assim como na não-ficção, por mais escancarados que estejam, nem todo mundo vê (ou finge não ver).
Então quando eu digo que a frase “Era o primeiro dia do fim da minha vida.” tem um outro significado, eu quero dizer que a Verônica passa por um processo de reconstrução quando se vê diante de Marta e Janete: ela deixa de ser aquela pessoa de sempre e passa a ser uma nova mulher, que é capaz de ver o mundo com mais clareza e decide não ser apenas mais uma nesse sistema construído por homens; ela quer mudanças. Assim, Verônica entra no dilema: o que é mais importante? Manter seu padrão de vida enquanto assiste mulheres inocentes sendo mortas diariamente ou saber que você está fazendo de tudo para salvar a vida de outras pessoas?
            Deste modo, Bom dia, Verônica, não é apenas sobre uma secretaria de polícia que decide agir em defesa de duas mulheres enquanto os outros cruzam os braços. O livro é sobre mulheres, sua posição na sociedade e tudo aquilo que elas precisam fazer para sobreviver e proteger as outras; é sobre ação, perceber as injustiças e impedir que aquilo se repita com outras pessoas; é sobre ajudar o próximo, mesmo que isso te tire do conforto; é sobre escutar e não deixar que as pessoas caiam no esquecimento; é sobre ter compaixão e não minimizar os problemas alheios; É sobre responsabilizar os culpados e não as vítimas. Enfim, acho que você entendeu a questão.
            Esses temas servem pra autora construir seu romance policial e mostrar, mesmo que disfarçadamente, todo estrago que essa cultura falocêntrica causa ainda hoje e o quanto a sociedade está atrasada em questões sociais. 


Senta lá, Verônica!

            Mesmo tendo uma trama policial bem legal e levantando discussões interessantes em suas entrelinhas, o livro tem alguns problemas. O principal deles, pelo menos pra mim, é justamente aquele que deveria ser o ponto positivo: a própria Verônica. Quando digo que a protagonista do livro é o ponto fraco, não quero dizer que você vá odiar ela (ok, pode ser que isso aconteça) e que você ira torcer contra, pelo contrario, você quer que ela tenha sucesso na sua investigação e quer ver os criminosos serem pegos. O grande problema é que a personagem em diversos momentos parece artificial, sendo uma caricatura daquilo que a autora idealiza em sua personagem.
            Sabe quando você ta fazendo comida e sai jogando tudo que gosta dentro da panela, ai só depois de misturar tudo você lembra que doce de leite não combina com frango? Foi mais ou menos o que eu senti na construção da personagem, algumas das características da personagem não conversam entre si, você entende a intenção da autora ao colocar uma passagem ou outra, mas aquilo enfraquece o conjunto, soando artificial.
            Outra coisa que pode não incomodar algumas pessoas mas que me impediu de ter uma leitura mais imersiva, é a constante necessidade da autora em criar pontes entre a protagonista e o cotidiano do leitor, mesmo que soe meio perdido no livro. Isso não deve ter ficado muito claro, então vamos lá. Durante a leitura eu tive a impressão que a autora, mesmo não precisando, escreveu seu livro focando em um publico de leitores jovens adultos, então varias vezes vamos vê-la tentando dialogar com esse publico. Pode ser apenas paranoia minha, porém muitas vezes sentia que ela estava apenas reproduzindo falas e memes que diariamente vemos no facebook pra criar uma conexão com você. Como, por exemplo, em uma passagem ela diz a famosa frase “fico mais tempo procurando do que assistindo coisas no netflix”. Ok, é um sentimento comum em quase todo mundo que assina Netflix, no entanto, fica a sensação que ela colocou ali só pra parecer cool, já que é algo que não tem relevância na história, como todas as outras citações a gadgets e aplicativos.
Sendo assim, apesar de gostar da história e das discussões, a linguagem do livro e a protagonista impediram com que eu tivesse uma experiência melhor. E isso é engraçado porque não muda apenas a minha perspectiva sobre a história, mas também sobre a autora.


Kill, kill, killmore

            Andrea Killmore é um nome fictício criado pela autora. Segundo a entrevista que pode ser vista no site da darkside, ela usa isso pra se proteger e faz bastante mistério sobre sua identidade. Não vou discutir se isso é de fato verdade ou marketing, pois não sei quem é e não é relevante, mas ao ler livro não consigo imaginar que ela tenha sido de fato uma pessoa importante dentro da policia, como diz a contracapa. Pelo contrario, se não houvesse uma biografia eu diria que é uma jovem escritora, com bastante influência da internet, da literatura e das novas tecnologias, ingressando na literatura policial.
            As vezes é difícil fazer uma avaliação da obra sem saber quem está por trás, então pra fechar o assunto vou dizer o seguinte: Se Killmore for realmente uma pessoa que trabalhou na policia e que tem todo histórico que ela diz ter, o livro poderia ser melhor, desde a escrita até mesmo a trama, que não explora nada muito diferente do que vemos em outras obras do gênero que não são escritas por policiais. Por outro lado, se for de uma nova escritora, eu diria que é um bom livro de estreia e que ela está no caminho certo, pois apesar do livro ter problemas, ele acumula mais qualidades que defeitos.
           
Devo matar mais?

            Bom dia, Veronica tem algumas semelhanças com Diário de uma escrava, ambos lançados na mesma época pela Darkside books. Os dois tratam basicamente de violência contra a mulher, tanto física quanto psicológica, entretanto, Diario tem como foco mostrar a perspectiva da vítima, falando sobre os anos que passou presa, como era tratada pelo sequestrador, etc. Já o Bom dia, mostra o lado de uma policial tentando ajudar mulheres que foram vítimas desses homens. Algo que acho curioso é que as qualidades e defeitos dos dois são bem parecidos, ambos trazem historias e discussões bem bacanas, mas, pra mim, faltou um pouco de consistência, seja na escrita seja no desenvolvimento.
            Enfim, Bom dia, Verônica apesar de uma coisa ou outra não muito legal, é um livro bem bacana pra pessoas que se interessem não só por romances policiais, no entanto também sobre a condição da mulher na sociedade, uma vez que ele aborda diversos casos que mostram a violência diária sofrida por mulheres somente por serem mulheres.

            Além disso, a edição da darkside, recebida por nós em parceria, segue os incríveis padrões já conhecidos por nós leitores. Sendo assim, não se esqueça de na próxima visita a livraria, parar na prateleira da caveirinha e dar um bom dia pra Verônica.

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