quarta-feira, 12 de abril de 2017

Literatura: Ultra carnem (Cesar Bravo)


            É bem provável que se você está nesse blog sua alma já esteja condenada. Tudo bem que você possa até ser uma pessoa bacana e fazer uma boa ação vez ou outra, mas o céu definitivamente não é o seu lugar e o cramunhão já tem certa simpatia por você. Ou você não estaria aqui.
            Então na resenha de hoje vamos falar um pouquinho mais sobre esse destino de viagem que todos nós faremos um dia. Antes de começarmos, porém, deixo aqui a pergunta: você sabe qual (ou quais) é o pecado que te condenou ao fogo eterno?


 
“- Sonhos são milagres que escaparam do céu. Vou dizer uma coisa, meu amigo, alguém que não sonha, que não abusa da sorte e não se arrisca, não deveria estar vivo. Eu mesmo já arrumei todo tipo de confusão por causa de um sonho. Mas não vou dizer qual foi, também tenho os meus segredos. Só que quando eu realizá-lo, meu maior sonho, ah, Nôa... Eu vou virar o mundo do avesso.”
  
Título original: Ultra carnem
Autor: Cesar Bravo
Ano: 2016
Editora: Darkside books
Páginas: 380
            Wladimir Lester é um garoto cigano que, após a morte dos pais, foi rejeitado pelo seu povo e enviado para um orfanato católico onde foi acolhido por um padre. Reservado e com dificuldade de se adequar naquele ambiente, Lester busca refugio na pintura, um de seus únicos interesses. Munido de um pequeno frasco com tinta vermelha, que acompanha o garoto desde antes de sua chegada, ele pinta quadros que vão muito além de uma simples pintura, escondendo diversos segredos.
            Entretanto, apesar de seu grande talento, ele é perseguido pelos garotos grandalhões do orfanato e vive em um constante conflito em seu novo lar.

Uma tinta, quatro historias

            Ultra carnem é um livro composto por quatro contos, todos dentro do mesmo universo e relacionados entre si. Os três primeiro, apesar de estarem unidos pela mesma linha, funcionariam de maneira independente, se bem que são melhores se lido em ordem. Já o ultimo constrói toda a sua base nos contos anteriores, fazendo as pontes necessárias para correlacionar todos e criar um desfecho que consiga englobar todas aquelas histórias do mundo criado pelo autor.
            Apesar se todos estarem correlacionados entre si, e pertencerem ao mesmo universo, algo bem bacana na obra é que cada um tem suas características próprias e abordagens bem diferentes, que mostram as diversas influências do autor.
            O livro começa com a história do garoto cigano Lester, que será a base dos contos que virão a seguir. Mesmo sendo um conto simples e, de certo modo, previsível, ele não deixa de ter várias qualidades. A meu ver é o conto que mais dialoga com o gênero terror. A aura do sobrenatural está sempre presente, mantendo o constante suspense mesmo que o leitor saiba onde está o gatilho da historia e tenha mais ou menos a ideia do caminho que será traçado.
            Os dois contos que virão a seguir também dialogam com a questão sobrenatural, mas tem outro foco. Tanto o segundo quanto o terceiro vão ter o misticismo como plano de fundo conduzindo a história, entretanto as atitudes humanas são muito mais importantes.


Caminhos que parecem fáceis

            O segundo vai acompanhar Nôa, um artista que há tempos não consegue pintar nada de relevante. Sabendo da história do garoto Lester e dos boatos de que a tinta vermelha que ele carregava consigo era mágica, o protagonista decide que ele precisa encontrar essa estranha tinta para resolver seus problemas. Tendo como ponto de partida um antigo livro que ele conseguiu de uma cigana, o personagem parte em uma jornada atrás daquilo que ele acredita ser a solução.
            A partir daqui vamos entender melhor o que o autor pretende com seu livro, seja pelos personagens que vão surgindo, seja pela temática que vai sendo desenvolvida e explorada, pois enquanto no primeiro conto temos temas clássicos do terror — criança misteriosa, catolicismo, bullying e manifestações sobrenaturais —, o segundo já parte pra uma historia mais baseada no suspense e na investigação.
            Sua história se centra, principalmente, na busca de Nôa pela tinta utilizada por Lester anos atrás. Assim, apesar do terror estar sempre presente, esse conto vai desenvolver muito mais a busca do personagem por uma solução e, também, a questão psicológica, abrindo discussões como: “Qual o preço estamos dispostos a pagar pelo sucesso?”.
            Apesar das dificuldades, Nôa é uma pessoa que tem uma vida tranquila, vive com sua namorada que sustenta a casa nesse período de dificuldade, mas a neura de não produzir nada e não conseguir sobreviver da sua arte faz com que ele convença a si mesmo que só vai fazer algo relevante com a tinta. Então o mais interessante do conto é ver como o personagem vai se afundando cada vez mais devido ao seu psicológico abalado, embarcando nessa loucura de encontrar um objeto que pra grande parte das pessoas não passa de uma lenda. 


Cuidado com os desejos

            O terceiro conto apresenta a história de Marcos, um técnico em informática que vê sua vida afundando cada dia mais. Casado com uma mulher por quem ele já não tem a mínima atração, com um trabalho cada vez mais ingrato e pai de um garoto autista (a única pessoa por quem ele tem carinho), ele sobrevive buscando o escape na pornografia e superfaturando seus serviços. Ao terminar um trabalho, a cliente, sem dinheiro, oferece uma outra forma de pagamento envolvendo uma estátua cigana, mudando completamente a vida de Marcos e de sua família.
            Esse conto, que é o meu favorito do livro, vai por um caminho mais cru e visceral. Aqui vamos ter uma mistura de tudo aquilo que os fãs de terror tanto gostam: serial killers, gore, maldições, etc. No primeiro conto a violência vai ser desenvolvida de uma maneira menos expositiva, no segundo ela existe rondando a trama mas não é o foco, já nesse terceiro o autor rasga a carne e esfrega os miúdos na sua cara. Ahhhh, delícia.
            Algo bem bacana aqui é que apesar da violência e da temática pesada, o autor também consegue dar conteúdo pra trama abrindo algumas questões interessantes. A principal delas é o cuidado que devemos ter com os nossos desejos, porque muitas vezes eles implicam em problemas que não prevíamos, mas também, discretamente, o conto abre uma discussão sobre a violência e nossa relação com ela.
            Acho que isso é o suficiente pra despertar (ou não) seu interesse, então vou parar por aqui.
           

Olar, senhor demônio

            Por fim temos a história de Lucrecia, uma garçonete que passou por diversos problemas na vida e, acidentalmente, acaba cruzando o caminho de alguns demônios.
            Essa breve sinopse é o suficiente pra abordar um pouco a trama sem dar spoilers. Nesse conto, que a meu ver é o mais fraco dos quatro, o autor vai flertar com a fantasia. Se nos anteriores o sobrenatural estava presente, mas o foco era questões terrestres, aqui vamos ter uma abordagem mais fantástica, com magias e viagens pelo inferno que ligeiramente remete a Evangelho de sangue, mas sem toda a desenvoltura do Clive Barker.
            Meu grande problema com esse conto é que esperamos uma trama consistente, uma ambientação grandiosa, ainda mais por se passar no inferno, e um desfecho impactante o suficiente para juntar todas as histórias, mas tudo acaba sendo simplista, não entregando aquilo que o leitor espera. O inferno criado pelo autor é bacana, tem boas ideias, mas não convence. Não sentimos sua dimensão e ele acaba parecendo um cenário de filme trash que não tem dinheiro pra pagar figuração, se limitando aos personagens principais, reduzindo o inferno a meia dúzia de pessoas.
Eu até diria que o conto não condiz com a realidade, aí eu lembro que estou falando de uma historia que se passa no inferno. Mas enfim, o que acontece é que o autor subestima alguns personagens de um modo que soa bem forçado e que não faz muito sentido (pelo menos pra mim). Existem situações que é algo como colocar um aluno do ensino fundamental pra ensinar física pro Einstein, e o aluno saber mais.
Sim, o autor consegue unir as histórias e consegue criar uma mitologia interessante, mas deixa a sensação de que poderia ter sido muito melhor.


Devo provar dessa carne?

Ultra carnem é uma grata surpresa na produção brasileira de terror, apesar de não ser perfeito, o conjunto da obra vale a pena. Mesclando diversas vertentes do terror e com uma boa escrita, Cesar Bravo consegue deixar sua marca em um gênero tão carente de boas produções nacionais.
O que mais me agradou na obra é que mesmo abordando o sobrenatural constantemente e até mesmo construindo uma nova concepção de inferno, o autor foca bastante na condição humana e mostra que a podridão dos homens é tão ruim quanto à dos próprios demônios. Algo que contribui pra isso são os protagonistas, principalmente Marcos e Nôa, que são personagens repulsivos e com diversas características condenáveis. Com isso, o autor cria a experiência de estar em contato direto com essas pessoas que facilmente evitamos em nossas vidas, sem deixar de lado sua condição e suas características. Ou seja, por mais que vejamos o que há de pior neles, e essa seja a coisa mais aparente, também é perceptível os traços de humanidade em cada um deles, mostrando que ninguém é completamente bom ou mal e que muito do que eles se tornaram é devido a situação em que se encontram, evitando a dicotomia tão comum no gênero.
Pra fechar a resenha, eu acho bem legal ver esses autores independentes nacionais ganhando oportunidades em editoras como a Darkside, que além de dar visibilidade ao autor e a obra, coisa que é mais difícil de conseguir quando se está no underground, também permite que o autor publique uma edição de qualidade, sem ser diminuído por não ter tanta reputação quanto os clássicos, tratando de igual pra igual, coisa que dificilmente vemos por aí. Falando na edição, que recebemos em parceria, arrisco dizer que é um dos livros mais bonitos da editora: a capa é simples mas bem bonita, e dentro temos uma folha de guarda que remete ao inferno e diversos outros detalhes que aumentam a experiência de leitura.

Então, prontos pra uma boquinha livre no inferno?

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