terça-feira, 30 de maio de 2017

Literatura: Abominação (Gary Whitta)


            Tire a poeira de seu escudo, leve seu machado no ferreiro pra dar uma amolada e lustre bem sua armadura porque hoje é dia de caçar uns monstrão.




            “Foi então que Pick percebeu a fonte da sensação estranha, perturbadora, que o assolava. Quando espreitou tudo ao redor, ouviu precisamente nada. Passara muitas noites na floresta para saber que sempre havia algo para ouvir. Uma floresta era viva, com inúmeras criaturas, muitas que saíam apenas à noite, que criavam uma tapeçaria constante de sons, mesmo na madrugada. Eram aqueles sons, a sensação de ser rodeado por milhares de coisas vivas, grandes e pequenas, que ofereciam conforto em noites como aquelas, dentro das florestas. Não importava o quanto a floresta fosse escura, nunca se estava sozinho nelas.


Título original: Abomination
Autor: Gary Whitta
Ano: 2015
Editora: Darkside books
Páginas: 313
            Vendo a queda de diversos impérios ingleses pelas mãos dos bárbaros nórdicos, o rei Alfredo, com o objetivo de manter seu reinado e a estabilidade de Wessex, negocia um tratado de paz com o rei dos Vikings, mesmo sabendo que eles não são muito adeptos do pacifismo. O reino, contrariando os pessimistas, vive em uma época de paz e a trégua parece funcionar por um bom tempo. Quando o rei viking parece estar próximo a morte, o reinado se sente ameaçado, afinal muitos bárbaros são contra o tratado, podendo retornar a guerra a qualquer momento.
            Temendo o retorno das batalhas, o arcebispo oferece uma nova forma de proteção, através de feitiços que ele descobriu em antigos pergaminhos. Mas…

Subam os portões

            O livro é dividido em duas partes, apesar de ser a mesma história apenas alguns anos depois, o ritmo e o estilo são bem diferentes, então vamos falar sobre cada uma delas separadamente.
            Na primeira parte vamos ter um maior foco na situação do reinado de Wessex. O rei Alfredo, com medo de submeter o seu povo a uma nova guerra contra os bárbaros, acaba fazendo um acordo de paz. Quando a situação começa a mudar e ele começa a sentir que pode haver uma ruptura do trato a qualquer momento, ele precisa encontrar rapidamente uma solução para se defender e impedir que os bárbaros tomem o poder de Wessex. Sabendo da situação do reinado e com o objetivo de oferecer uma solução pra Alfredo, o arcebispo diz que pode ter descoberto uma forma de resolver os problemas em alguns pergaminhos antigos, pedindo autorização para o rei para continuar com os estudos. Mesmo desconfiado, Alfredo, sem outra opção, acaba dando permissão. Com o tempo esses estudos começam a ficar cada vez mais duvidosos e violentos, mas já é tarde demais quando Alfredo ordena que o arcebispo pare com as sua experiências.
            É aqui que vamos conhecer o protagonista da história, Wulfric. Ele foi um notável guerreiro nas últimas batalhas e tem uma grande proximidade com o rei, devido a alguns acontecimentos do passado. Acabada as guerras, Wulfric se mudou para uma fazenda no interior onde vive com sua esposa grávida, pra quem jurou que tinha abandonado as guerras. Mas ele acaba sendo convocado pra uma missão pelo próprio Alfredo, devido a todos os problemas causados pelo arcebispo. Vou parar por aqui para não entregar muito sobre a trama.
            Essa primeira parte vai tratar de diversas questões, como ética, honra e cobiça, colocando o rei Alfredo entre o arcebispo que passou por cima de todos os dilemas morais para conquistar poder, mesmo que isso tenha preços bem altos, e o guerreiro Wulfric, um velho amigo que mesmo deixando de lado a vida antiga de batalhas para virar um tranquilo fazendeiro, nunca abandona um amigo e sempre está pronto para servir o seu rei.
            Nessa guerra entre a magia negra e a honra de um homem, haverá muito sangue e criaturas nem um pouco amigáveis.
           

“As correntes se arrastam pela floresta...”

            Na segunda parte, toda essa questão do reino fica um pouco de lado e toda a trama vai se voltar para  basicamente dois personagens.
            O primeiro deles é um homem que, para fugir de assuntos do passado, passa a viver sozinho na floresta evitando qualquer tipo de contato humano. Por algum motivo, esse homem, tratado pelos outros como um mendigo, passa o dia inteiro com uma grande e pesada corrente enrolada em seu corpo, tanto por uma questão de necessidade como, também, uma forma de penitencia, mostrando que o peso das correntes se assemelha ao peso de seu passado.
            Para falar da segunda personagem é bom saber antes um pouco sobre o panorama da história. Devido aos problemas gerados pelo arcebispo anos anteriormente, o reinado criou uma ordem de guerreiros destinados a ir atrás das criaturas que restaram na região. Com o tempo essas criaturas foram sendo exterminadas e, consequentemente, a ordem foi perdendo poder. Indra, mesmo contra a vontade do pai, o responsável pela ordem, faz todo o treinamento para ser uma guerreira e lutar contra esses monstros. Como teste de conclusão, para poder finalmente ser reconhecida como uma guerreira da ordem, ela precisa matar uma dessas criaturas para mostrar que é digna do título.
            Diferentemente da primeira parte que trata de um problema que envolve a todos, afinal tanto as criaturas do arcebispo quanto os bárbaros são uma ameaça pro reino, essa segunda parte vai lidar com questões mais pessoais dos personagens. Isso é bem interessante porque o autor consegue mostrar que dentro de uma mesma história ele pode desenvolver perspectivas diferentes de uma mesma situação. Na primeira parte, apesar de Wulfric ser o protagonista, é bastante perceptível a questão do coletivo, em que um necessita do outro para conseguir resolver determinado problema. Eles precisam se juntar pra lutar contra algo em comum. Na segunda parte, a situação sai do coletivo e vai pro indivíduo, a batalha deixa de ser contra o outro e passa a ser contra ele mesmo, tanto pra Indra quanto para o cara das correntes.
            O caminho desses dois personagens vão se cruzar nas florestas próximas de Wessex, levantando diversos sentimentos sobre o passado e o presente, em uma viagem sobre os medos, culpas e perdas desses dois personagens tão diferentes, mas tão parecidos.


...e os vikings?

            Bom, já vou adiantar que não gostei muito do livro, não porque ele seja ruim, mas sim por ser algo bem diferente do esperado. 
            Se não me engano, já devo ter falado em alguma resenha que não sou um leitor de fantasias. Eu até me interesso pelo assunto, mas é um gênero que eu tenho um pouco de preguiça - guerreiros, magos e coisas do gênero não são minha primeira opção. Então é difícil eu ver algum livro que realmente me interesse, mas claro que existem exceções como O gigante enterrado do Ishiguro. Mesmo assim, quando Abominação foi anunciado, eu fiquei bem curioso pra ler, afinal sempre que falavam sobre ele se referiam também a Vikings, Game of Thrones e H.P. Lovecraft, três coisas que gosto e me interessam.
            Então eu passei o livro todo esperando os vikings dando e levando muita porrada, várias tramas e conflitos políticos/familiares ao estilo de GoT e, claro, todo o horror cósmico do Lovecraft. A leitura aos poucos foi me deixando cabreiro “já to na metade e ainda não vi os vikings”, “falta 100 páginas e até agora nada de trama política/familiar”, “sério mesmo que é essa a referência sobre o Lovecraft?”, “Já acabou, será que li o livro certo?”, entre outras coisas que ia me perguntando a cada fim de capítulo. Isso foi desgastando um pouco a minha leitura, se o livro tivesse sido vendido como ele de fato é, talvez eu teria aproveitado melhor, porque não passaria todo o tempo esperando algo que eles prometeram e não entregaram.
            Você deve estar perguntando “mas você não falou de vikings no inicio da resenha?”. Sim, os vikings são mencionados, eles são contemporâneos à história, tudo se desenrola porque existe uma ameaça da invasão dos bárbaros, mas tudo isso é dito na primeira página para dar um panorama e uma base pra que a história de fato se desenrole, mas nada além disso. Pode até haver uma menção ou outra, mas em nenhum momento da narrativa um viking aparece. Se você tava esperando aquelas batalhas louconas tipo do seriado Vickings, esqueça.
            Quanto a Game of Thrones eu estou até agora tentando encontrar a semelhança entre os dois, pois tirando o fato de ambos terem castelos e espadas, não dá pra fazer nenhuma outra ligação relevante. Não é porque existe uma ambientação semelhante que eles são parecidos, afinal temos milhares e milhares de obras com esse tipo de características e nem por isso são iguais. Isso também serve pra questão do Lovecraft. Eu creio que as pessoas devem ter feito a relação devido as criaturas que aparecem na obra, mas em nenhum momento ele exala a essência lovecraftiana. Os monstros criados pelo Whitta me remetem mais aos filmes trash dos anos 80 do que ao mestre do horror cósmico de fato.
            Apesar de alguns outros problemas, a principal questão, pelo menos pra mim, foi a forma como o livro foi vendido. Porque a publicidade em torno dele ofuscou muitas de suas qualidades atrás de referências que nunca se concretizam.
           

Devo enfrentar essa batalha?

            Como disse anteriormente, eu não sou um leitor de fantasias e me interessei pelos aspectos de terror e por temas que não foram desenvolvidos no livro — como vikings, política e etc —, então eu vou falar minhas impressões gerais. Mas caso você goste de fantasia, eu recomendo olhar a resenha de pessoas ligadas ao gênero para ter uma segunda opinião, que pode ser bem diferente da minha.
            No geral, a leitura foi bem agradável, em nenhum momento eu fiquei entediado, da mesma forma que, apesar de divertido, não foi empolgante. Você até cria uma aproximação com os personagens, quer saber como vai acabar, mas o livro como um todo fica na superficialidade, isso faz com que ele acabe caindo nos clichês do gênero — o guerreiro que se aposentou, mas acaba voltando pro campo de batalha; a mulher que se torna guerreira apesar de todas as adversidades; o garoto pobre ferreiro que se torna o melhor lutador; o bruxo malvado; as traições em busca de poder; o rei bonzinho que se fode; etc. Então ele acaba sendo bem previsível, quando o livro joga aquilo que deveria ser uma puta revelação, você só olha pra ele e pensa: “mas isso eu já sabia”.
            O livro tem algumas boas ideias, a questão das criaturas é bem interessante, a divisão do livro em duas partes que ocorrem em momentos diferentes, os conflitos de alguns personagens, etc. Além disso, a escrita é bem fluida. Por ser bem direto e não enrolar com coisas desnecessárias, ele nunca fica cansativo. Enfim, é uma leitura bem bacana, mas quando acaba você percebe que o livro é igual aqueles filmes da sessão da tarde, é gostosinho de ler, ajuda a passar o tempo, mas no fundo fica aquela sensação de já vi isso em vários outros lugares antes.
            A edição, cedida em parceria com a Darkside, tá muito bonita. A capa com o besouro e sangue reflete bem o que será entregue na história, algo que você irá descobrir o significado durante a leitura. O corte das páginas tem manchas vermelhas, simulando que escorreu sangue nas  suas beiradas e a parte interna segue o padrão da editora, há uma ou outra imagem incluindo o mapa e aqueles detalhes no incio de cada capítulo, já tradicional da editora.
            Então se você gosta de histórias de fantasia com magias, sangue e criaturas monstruosas, saque sua espada e não deixe que as abominações invadam o castelo, talvez elas lhe proporcionem uma batalha empolgante. Mas caso você esteja procurando uma história sobre vikings e/ou horror, apenas vá para outro campo de batalha, porque você já deve ter visto essa mesma luta outras vezes. 

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