quarta-feira, 10 de maio de 2017

Literatura: Os fatos do caso do Sr. Valdemar (Edgar Allan Poe)


            Seguindo o desafio #12MesesDePoe, o Café vem hoje para discutir um dos temas mais recorrentes do horror, o pós-morte. Então antes de se sentar e ler a resenha, prepare aquela bebidinha com álcool, chumbinho, solvente e as frutas de sua preferência, e venha nos contar o que achou, tanto da resenha quanto sua nova (não) vida.

            (Obs. A parte da bebida é brincadeira tá? Não quero ninguém se matando e jogando a culpa na gente, não temos dinheiro nem pra pagar o Café, quem dirá um processo!)



Enquanto eu falava, uma visível mudança se operou na fisionomia do noctâmbulo. Os olhos giraram e se abriram vagarosamente, as pupilas ocultas no alto; a pele como um todo assumiu um matiz cadavérico, parecendo-se menos com pergaminho do que com papel branco; e as machas circulares da héctica que até então se faziam notar distintamente no centro de cada bochecha sumiram de repente. Uso essa expressão porque a subitaneidade com que se foram trouxe-me à mente nada menos que uma vela sendo apagada por um sopro de ar. O lábio superior, ao mesmo tempo, encolheu-se e expôs os dentes, quando antes os cobria por inteiro; ao passo que o maxilar inferior caiu com um audível tranco, deixando a boca amplamente aberta, e exibindo por inteiro a língua inchada e enegrecida. Presumo que nenhum membro do grupo presente na ocasião estivesse desacostumado aos horrores de um leito de morte; mas tão hedionda além de qualquer noção era a aparência do Sr. Valdemar nesse momento que ocorreu um recuo geral das imediações da cama. ”


Título original: The facts in
the Case of M. Valdemar
Autor: Edgar Allan Poe
Ano: 1845
Lido em: Contos de imaginação
 e mistério (Tordesilhas)
Paginas: 5
Ernest Valdemar é um senhor que, devido a diversos problemas de saúde, não tem muito tempo de vida. Após conversar com um amigo, entusiasta do mesmerismo, ele concorda em ser cobaia de um experimento que até então não tinha sido realizado, a hipnose momentos antes da morte.

Hi(Poe)nose
           
            Narrado em primeira pessoa por um narrador sem nome, o conto vai acompanhar esse protagonista que, sabendo da grave enfermidade de seu amigo Valdemar, decide propor que ele faça parte de um experimento envolvendo hipnose para saber de que forma isso agiria em uma pessoa que está no limiar da vida.
            Aceitando a proposta do amigo, Valdemar deixa avisado que irá chamá-lo assim que os médicos perceberem que o final está próximo. Quando os médicos que o acompanham dizem que ele não passará do dia seguinte, o protagonista é chamado para realizar o experimento. Tendo os médicos ao seu lado como testemunhas, Valdemar é hipnotizado pelo amigo, momentos antes de sua morte, chegando assim aos resultados daquele experimento nunca antes feito, que obviamente não irei dizer qual é, pois você pode encontrar o conto aqui.
            Vai ler e depois você volta pra ler o resto. Não me venha com resuminhos.

Brincando com a morte

            Como já é de costume nos contos do Poe, vamos ter um narrador que não se identifica, mas diferentemente dos outros contos do autor não vejo tanto a questão do narrador não-confiável presente aqui, pois ele simplesmente diz que vai contar aquilo que viu, deixando a cargo do leitor acreditar ou não naquele relato, porque ele mesmo diz não compreender. Claro que pode haver um interesse do narrador por trás da narrativa. Apesar de não sabermos sua profissão, é possível que ele trabalhe com mesmerismo e utilize disso para dar mais credibilidade à prática, mas creio que isso não tenha tanta relevância quanto à questão da morte.
            A vida após a morte deve ser um dos temas mais recorrentes do terror (e da ficção), sendo explorado de todas as maneiras possíveis e imagináveis — espíritos, zumbis, céu, inferno, vampiros, múmias, reencarnação, Jesus, etc —, mas mesmo assim Poe consegue dar uma certa originalidade pra sua obra, abordando algo que até então eu nunca tinha visto, que é a relação da morte com a hipnose. Apesar desse tema ser, geralmente, tratado de uma perspectiva espiritual, aqui teremos uma busca cientifica sobre o pós-morte, aplicando métodos médicos/psicológicos para tentar buscar respostas e avançar nas pesquisas sobre o tema.
Isso é bem curioso, pois, de certa forma, ele brinca com a questão da morte. Ao invés do conto dar uma resposta para a situação através da hipnose, ele só aumenta as perguntas. Quando o Sr. Valdemar morre mas, de alguma forma, continua preso no corpo devido ao transe, se comunicando com o protagonista e com os médicos, não sabemos o que de fato está acontecendo. Mesmo tentando explicar o fenômeno por meio de métodos psicológicos, os personagens presentes se deparam com algo que vai além daquilo que conhecem, sem saber se ele continua vivo, pois realmente existe algo além do plano terreno ou não passa de uma manifestação psicológica que perdurou devido ao transe, como as reações pós-mortem. Diante disso, mesmo não sendo tratado diretamente no texto, fica a pergunta: se o seu corpo está morto, o que provoca essas manifestações? Será que a hipnose afeta a alma e não a mente? Será que a mente independe do corpo? Será que era ele que estava, de fato, respondendo? Nunca saberemos.
A única coisa que sabemos é que, de alguma forma, o moribundo está preso ao corpo devido à hipnose, mas o por quê da morte do organismo não cessar totalmente as atividades é uma questão que o Sr. Valdemar levará para o tumulo.
É justamente essa prisão, que nos levara a outra questão.

A ética cessa com a vida?

Já adianto que isso aqui é uma reflexão que vai além do texto, que em nenhum momento é discutida, mas é algo que me ocorreu durante a leitura, que é a ética daquelas pessoas diante do corpo do Sr. Valdemar.
Com a hipnose seguida de morte do personagem, vamos ver que apesar de seu corpo não responder, ele, de alguma forma, ainda consegue se comunicar, mesmo que precariamente, com o narrador e os médicos presentes. Com isso, todos os dias esses personagens retornam ao leito para se comunicar com o Sr. Valdemar e ver se conseguem algo além dos grunhidos habituais do moribundo. Entretanto, na esperança de encontrar respostas ao pós-vida, o narrador e os medico perduram esse experimento por mais de sete meses. Esse detalhe me deixou mais atormentado que a própria questão do pós-morte/hipnose e definhamento.
Como vemos nas reações de Valdemar após sua morte, fica claro que ele não está confortável com a situação, ele não tem controle do corpo e mesmo a fala, que permanece possível em sua condição, parece exigir muito esforço, tanto que muitas vezes o máximo que consegue é uma vibração na língua. Mesmo nessas condições, os personagens prolongam esse sofrimento por cerca de sete meses, que só termina quando o moribundo implora a morte ou o sono. Então até que ponto vai esse desejo pela busca de respostas? Claro que existe o lado dos médicos e cientistas, afinal o que aconteceria se ele fosse acordado? Eles seriam os responsáveis pela morte do morto de certa forma. Mas imagina ser importunado por sete meses depois de morto sem poder se mexer, sem falar direito e sem o movimento do seu corpo, apenas sendo diariamente tratado como uma cobaia, impedindo seu sono eterno?
Então vou deixar avisado pra vocês que estão lendo, se um dia eu chegar no estado do Sr. Valdemar, nada de hipnose pro meu lado.

Esqueça o outro lado, apenas morra em paz

Os fatos do caso do Sr. Valdemar é uma daquelas histórias que tem como princípio a busca por questões não esclarecidas, nesse caso, sobre a morte, porém no fim acabam levantando mais dúvidas e questionamentos do que respostas de fato, algo que nosso querido Poe faz tão bem.
Outro ponto que merece ser mencionado é que, além da história e da premissa bem bacana, aqui vamos ter um apelo visual bem interessante, em que o autor flerta com o gore, trabalhando tanto o horror psicológico quanto o físico, mostrando a capacidade de atormentar tanto a mente quanto os olhos de seus leitores.

Dito isso, nem preciso falar que esse blog recomenda o conto né? 

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