Olá,
droogs e drooguetes, hoje vamos deixar o Café
de lado por que a bebida que tem pra beber hoje é Moloko Vellocet. Sim, nós
viemos pra falar de Laranja mecânica, então sente na cadeira que vamos
passar alguns cintos pra te prender durante o processo, juramos que é para o
seu bem.
Estão
prontos para videar um pouco da boa e velha ultraviolência?
“Pode não ser bom ser bom, pequeno 6655321.
Ser bom pode ser horrível. E quando digo isso a você, percebo o quão auto
contraditório isso soa. Eu sei que perderei muitas noites de sono por causa
disso. O que Deus quer? Será que Deus quer bondade ou a escolha da bondade?
Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor que um homem que teve o bem
imposto a si? Questões difíceis e profundas, pequeno 6655321. Mas tudo o que
quero dizer a você agora é isto: se em algum momento no futuro você olhar para
está época e se lembrar de mim, o mais desprezível e humilde de todos os servos
de Deus, rogo a você, não pense mal de mim em seu coração, imaginando que estou
de alguma maneira envolvido no que está para acontecer a você agora.”
Título original: Clockwork orange
Autor: Anthony Burgess
Ano: 1962
Editora: Aleph
Páginas: 350
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Alex,
líder de uma gangue de adolescentes, passa suas noites arrumando confusão e se
drogando pelos bares da cidade junto com seus droogs. Ao ser preso depois de
invadir uma casa e matar sua proprietária, lhe é oferecido a possibilidade de
liberdade caso ele aceite passar por um novo tipo tratamento. Vendo a
possibilidade de não cumprir toda a pena e poder voltar pras ruas dentro de
poucos dias, Alex aceita passar por esse processo de modificação de
comportamento, que promete libertá-lo da vontade de cometer qualquer ato de
violência.
Viddy well, my little brother! Viddy well!
Laranja
mecânica é uma daquelas
obras que não dá pra abordar caso você não desenvolva certos aspectos da trama,
então a resenha pode ter alguns spoilers, o suficiente para que seja possível
levantar adequadamente as discussões. Acredito que quase todo mundo que
frequente esse muquifo chamado Café com Tripas já tenha
algum contato, seja com o filme ou com o livro, mas caso não tenha, pode ficar
tranquilo que não falaremos nada além do necessário e nem estragaremos a sua
primeira vez com a Laranja.
O
livro é dividido em três partes: a primeira dá um breve panorama sobre a
sociedade da época e sobre a vida do Alex, mostrando como ele e seus droogs se
divertiam, tanto consumindo o moloko quanto cometendo crimes; a segunda engloba
a prisão do protagonista e o tratamento Ludovico; por fim, a terceira parte
mostra o que ocorreu depois que Alex foi submetido ao tratamento e retornou
para a sociedade.
Eu
vou estruturar a resenha focando nas duas primeiras partes, então vamos lá.
Who the fuck is Alex?
Narrado
em primeira pessoa, o livro conta a história a partir do olhar (ou seria das
palavras?) do delinquente juvenil Alex. Vamos ler poucas informações sobre seu
passado, sendo que a única coisa que sabemos é que ele está desde os 11 em um
programa de correção juvenil. Os motivos de ele ser assim ou como ele se tornou
o líder daquela gangue ficam em aberto, mas que vamos especulando a partir
daquilo que o narrador nos conta.
Ok,
então quem é o Alex? Alex é um garoto de 15 anos que não tem grandes
preocupações na vida e que passa seus dias realizando atividades que lhe trazem
algum tipo de prazer, independentemente de serem legais ou não. Sendo assim,
ele passa as suas noites consumindo um tipo de droga, arrumando brigas com as
outras gangues, batendo em pessoas na rua e outros tipos de crime.
Não,
Alex não é um garoto bacana de se ter por perto.
Aparentemente,
o protagonista se resume a isso: um jovem que tem o demônio no corpo e sai
tacando o terror simplesmente porque é divertido. Por ser o narrador de sua
própria história, o livro nos dá impressão que o próprio Alex não sabe o real
motivo de fazer aquilo, até porque ele não se considera uma pessoa ruim mesmo
com todos os seus crimes, seu comportamento é simplesmente algo que ele faz por
achar legal.
Pra
mim, isso é uma das coisas mais bacanas do livro, pois a todo o momento o autor
faz o leitor entrar nesse conflito: ora o Alex ta sendo violento, ora ele se
mostra como uma criança inconsequente qualquer que só continua fazendo aquilo
que sempre fez. Então mesmo sendo impossível de defender o Alex, continuamos
simpatizando com ele em certos momentos.
Para
além do protagonista, não vamos ter muitas informações sobre o cenário em que a
história se passa, embora seja interessante notar algumas coisas que ajudam a
entender melhor os personagens. A principal delas, a meu ver, é a própria
questão do moloko vellocet, que é uma
droga alucinógena diluída no leite vendida legalmente para as crianças. Apesar
das bebidas alcoólicas serem proibidas para os menores, ainda não existe uma
regulamentação pras drogas sintéticas do moloko, então ela é vendida
normalmente. Só por essa informação já é possível compreender mais ou menos o
cenário da época.
Além
disso, pelos relatos, é possível que os adultos, de certa forma, ocupem uma
posição de submissão. Mesmo sabendo que o filho é problemático, os pais de Alex
continuam o mimando e aceitando todas as suas ordens e vontades. Do mesmo modo
que ele e seus droogs pagam bebidas pra algumas senhoras, para que elas digam
que eles estavam ali quando na verdade estavam cometendo crimes pela cidade,
fornecendo um álibi caso dê algum problema.
Não
gosto de dizer que o livro se passa em um mundo distópico, assim como 1984
e Admirável mundo novo já que temos poucas informações sobre ele,
contudo, durante a leitura tenho a sensação de que estamos diante de um governo
que perdeu o controle da situação, então os adultos simplesmente continuam
tentando sobreviver como podem, enquanto as crianças, sem uma autoridade,
acabaram criando sua própria forma de viver, baseado em gangues e violência.
E
é nessa falta de controle social que o estado apela pra soluções desesperadas e
duvidosas.
Naughty, naughty,
naughty! You filthy old soomka!
Depois de tantos crimes
cometidos já era de se esperar que o protagonista em algum momento fosse preso.
E é a partir dessa reclusão que a questão principal do livro vai se
desenvolver. Então viddy well, little brother.
Após Alex invadir uma casa
e as coisas fugirem do controle, ele acaba sendo pego em flagrante. Não há
muito o que falar sobre a passagem dele na prisão, porém é bem curioso perceber
que dentro daquele ambiente ele parece mais tranquilo que quando estava livre.
Claro que vão existir problemas lá, no entanto, o protagonista cria uma
aproximação com o padre da penitenciaria, contribuindo para conversas bem
interessante entre os dois e permitindo que Alex se dedique a outras atividades,
como a leitura. É principalmente nessa parte que vamos compreender melhor quem
é o Alex, notando a falta de malicia do personagem e que, apesar das coisas
horríveis que ele faz, ele continua sendo uma criança. O padre fala com ele
sobre diversos assuntos, principalmente o método Ludovico, mas por mais
didático que ele seja o protagonista não consegue compreender a complexidade do
problema.
Enfim, depois de um tempo
na prisão, oferecem ao personagem a possibilidade de estar livre dentro de
poucos dias, mas pra isso ele terá que passar por um tratamento de correção
comportamental, ou seja, um processo que promete curar o homem da maldade,
impedindo-o de cometer qualquer ato que contraria as convenções sociais. Não
compreendendo muito bem a situação, mas ansioso para sair da prisão e
acreditando que ele se tornará uma pessoa melhor, Alex acaba aceitando a
condição e se submete ao tratamento. E é claro que ele será algo bem diferente
do que o protagonista estava esperando.
“It's funny how the colors of the real world only seem
really real when you viddy them on the screen.”
Afinal,
que raios é esse tal de tratamento ludovico?
O
tratamento consiste em expor o paciente, durante um longo período de tempo, à
imagens e filmes violentos, enquanto o mantém sob efeito de drogas que provocam
sintomas desagradáveis, como dor, enjoo e agonia. O intuito desse processo é
fazer com que o paciente faça uma associação entre as cenas de violência as
dores e sintomas físicos, então sempre que o individuo que passou pelo processo
pensar em cometer algum crime, seu subconsciente vai automaticamente associar
essa ação a todos os sintomas que ele sofria durante o tratamento, impedindo-o
de conseguir realizar, ou até mesmo assistir, qualquer ato de violência.
Se
você acompanha esse blog, eu imagino que compreenda todos os problemas
envolvidos nesse tratamento, mas precisamos conversar um pouquinho mais caso
você esteja se perguntando: “Mas isso não é bom? Qual o problema? É uma forma
de curar a violência, não?”.
É
evidente que o Alex é uma pessoa problemática e precisa de alguma forma de
punição, entretanto, o tratamento Ludovico se mostra tão perigoso quanto o
próprio personagem porque consiste numa forma de castrar o paciente de qualquer
reação contrária aos desejos do Estado, como se o tratamento fosse uma forma de
transformar a pessoa em um animal adestrado. Isso fica bem claro porque mesmo
quando as pessoas agem de forma violenta contra o próprio Alex, ele
simplesmente abaixa a cabeça a aceita, sem conseguir revidar ou se defender.
Portanto,
a questão principal do livro é justamente o poder de escolha. A partir do
momento que você impede a pessoa de ser má, você também impede a pessoa de ser
boa, porque não há opções, ela simplesmente faz aquilo que ela é coibida a
fazer. A bondade não é algo que parte dele, e sim uma imposição externa a ele
baseado em um conceito binário, em que não existe relativismo, apenas o bem e o
mal. E isso é extremamente problemático, porque todos sabemos que a vida não se
baseia em conceitos imutáveis, não é possível conceber uma vida que tenha como
base apenas a bondade ou apenas a maldade. Então, depois do tratamento, Alex
passa a viver uma vida praticamente catatônica em que, por mais que possa
voltar pra sociedade e retomar sua vida, ele se vê impedido de reagir as mais
diversas manifestações que surgem no seu cotidiano.
Algo
que parece simples, mas que é bem simbólico pra discussão é a questão da
música. O único prazer não criminoso de Alex é a música clássica, e durante os
procedimentos a 9ª sinfonia do Beethoven é colocada como trilha sonora, algo
que é extremamente perturbador pro protagonista, pois é inconcebível colocar
algo tão belo junto com imagens tão violentas. E, como as imagens, a música
também começa a trazer reações pro seu corpo sempre que escuta devido as
associações, privando-o de um de seus únicos prazeres. Pode parecer besteira
visto de fora, mas fica claro toda a degradação mental sofrida pelo personagem,
que se vê impedindo de realizar ações tão simples quanto escutar uma música.
Sendo
assim, a partir dessa narrativa o autor vai nos mostrando que é melhor um ato
de maldade consciente do que uma bondade imposta.
“I’m singing in the
rain”
(Spoiler)
Existem
alguns assuntos interessantes na terceira parte do livro que acho legal
comentar e, como são coisas mais próximas do final, creio que são consideradas spoilers.
Quando
Alex volta para sociedade, ele acaba encontrando amparo na casa de um senhor
que ele tinha invadido na sua antiga vida de crimes. Esse homem junto com
alguns amigos, que eram contra a implantação do método Ludovico, decidem usar
Alex para fortalecer a causa. Isso é bem curioso porque vemos um outro lado da
situação, mostrando que na suruba social ninguém é santo. Alex acaba sendo um
pião nesse jogo de interesses: ora ele passa por um tratamento e é o símbolo de
solução para o crime, ora ele é pego pelo outro grupo para ser o símbolo de que
o tratamento é desumano, e nessa briga Alex continua sem uma solução efetiva e
a violência do estado permanece a mesma.
E
pra fechar a resenha vamos ao contraditório final. Quando o livro foi lançado,
a edição americana, por uma escolha da editora, não tinha o último capítulo,
isso foi um dos motivos do filme não ter essa última cena. Assim como a
editora, algumas pessoas não gostam muito do final, que consiste em Alex
reencontrando um dos seus velhos droogs com a esposa em um bar, e nisso dá a
entender que Alex ta crescendo e toda essa coisa de gangues já não faz muito
sentido. Apesar de não considerar perfeito, eu considero bom; ele abre algumas
discussões. O final dá a entender que a violência de Alex não era simplesmente
uma sociopatia; ele fazia aquilo porque era a única coisa que fazia sentido em sua
vida. Mesmo sabendo que as suas atitudes eram erradas, era ali que ele se
encontrava - conseguia dinheiro, era respeitado, tinha amigos e tinha liberdade
pra fazer aquilo que queria, entretanto, quando ele começa a crescer e percebe
que seus antigos amigos já estão em outra e que os seus crimes já não trazem a
mesma satisfação de antes, ele começa a questionar se ele realmente quer
continuar a viver como um garoto de 15 anos.
“Bit of pain in the
gulliver, mum.”
Não
dá pra falar de Laranja mecânica sem falar de Nadsat.
Tendo
em vista que os adolescentes, principalmente aqueles de gangues, usam bastante
linguagem urbana e gírias, o autor criou um vocabulário próprio para o livro.
Esse linguajar tem como base a mistura entre o russo e cockney, que é a forma
de falar da classe operaria britânica.
Esse
fator faz com que o livro seja uma experiência bem diferente daquilo que
costumamos ler normalmente porque, ao ser narrado em primeira pessoa pelo Alex,
a todo momento ele vai usar gírias que são normais pra ele e pra sua gangue,
mas desconhecidas pelo leitor, trazendo bastante estranhamento. É possível
compreender a maioria delas pelo contexto em quê estão inseridas, mas não deixa
de ser uma leitura bem curiosa, mesmo que possa incomodar algumas pessoas.
Sim,
mesmo contra as vontades do autor, existe um dicionário no final do livro (pelo
menos na maioria das edições), mas recomendo não consultar durante a leitura,
afinal esse sentimento de “What the fuck?”
é necessário para entrar no clima do livro.
“As
queer as a clockwork orange”
Não,
não vou falar sobre o filme aqui porque ele é bem fiel ao livro no que diz
respeito à trama e questionamentos levantados, e é isso o que mais abordamos
nas resenhas. E quanto ao aspecto técnico do filme acho que existem pessoas
mais qualificadas pra falar sobre, afinal é bem complicado falar sobre o
Kubrick e sua obra. Mas caso nunca tenha visto, fica aqui a nossa indicação
porque é tão bom quanto o livro.
Caso
já tenha lido até aqui e ainda não teve contato direto com a obra, eu espero já
ter te convencido a ler e/ou assistir laranja mecânica. Dentre a famosa
trilogia de livros clássicos da ficção (Laranja,
Admirável e 1984) confesso que o Laranja é o meu menos favorito, não que
ele seja pior ou algo do tipo, apenas porque os outros também são bons pra
caralho e me agradam um pouco mais.
Apesar
disso, o seu sucesso e toda a religiosidade em torno dele, não é algo a toa,
ele é esse moloko todo que as pessoas comentam, mas claro que existe um pouco
de exagero as vezes.
Pra
finalizar a resenha, não posso deixar de comentar um pouco sobre a edição
especial de 50 anos da editora Aleph, que é bem bonita e deixa a leitura ainda
mais interessante. O trabalho gráfico interno e externo do livro é impecável. O
livro tem uma capa dura laranja com detalhes bem minimalistas que é coberta por
uma jacket com uma capa mais informativa. A diagramação e a qualidade do papel
são bem bacanas, mas o mais legal de tudo dessa edição são os extras. Vamos ter
algumas ilustrações durante a leitura, e o mais interessante de tudo é que cada
parte do livro foi ilustrada por um artista diferente, trazendo traços e ideias
características de cada um. Além disso o livro também conta com entrevistas com
o Anthony Burgess, uma reprodução do manuscrito, o dicionário nadsat, artigos e
ensaios do autor, etc. Ou seja, é uma edição recomendada pra qualquer um que
seja fã de Laranja Mecânica.
Então
meus droogs, aceitam um moloko?
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