Olá caros leitores do Café,
hoje estamos aqui para um evento especial. Sentem-se a mesa e fiquem a vontade,
o jantar sairá em breve. Espero que estejam tão empolgados e curiosos quanto à
gente, afinal, não é todo dia que comemos carne human... digo, carne de
gaivota, não é mesmo?
““Me deixa perguntar uma
coisa pra vocês: qual é o maior problema do mundo?”
“Doenças”, Miguel arriscou.
“Pessoas discutindo política
no Facebook”, Leitão disse.
“A fome”, respondi.
“Isso, a fome”, Umberto
disse, como um professor satisfeito com o aluno sabido. “Já pararam pra pensar
que o canibalismo pode ser a solução mais imediata para a fome no mundo? Quero
dizer, não comemos nossos mortos por uma questão cultural. Não fomos criados
assim. Acontece que enterrar os mortos é um grande desperdício de carne
saborosa que poderia ser usada como alimento. Mesmo na vila mais pobre da
África, onde pessoas passam fome, há carne sendo desperdiçada nos enterros.
Porque não comer? O que mata as pessoas de fome é esse impedimento moral de
comer os semelhantes...””
Título original: Jantar secreto
Autor: Raphael Montes
Ano: 2016
Editora: Companhia das letras
Páginas: 360
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Em 2010, quatro amigos saem de
Pingo d’Água, cidadezinha no interior do Paraná, para estudar no Rio de
Janeiro, com o objetivo de conseguir o diploma, um trabalho em sua área e
realizar seus sonhos em uma cidade grande. Cinco anos depois, ainda dividindo o
mesmo apartamento, três deles conseguem o tão almejado diploma, mas todo o
resto parece estar desmoronando: eles sofrem em empregos medíocres pra pagar as
contas, o trabalho dos sonhos parece cada vez mais distante devido a situação
do país, a amizade desgastando com o tempo, etc. Tudo piora de vez quando
descobrem uma divida de quase 26 mil reais com a imobiliária, levando os quatro
a uma decisão desesperada... Porem, deliciosa.
4 guys, 1 dinner
A
história é narrada por Dante, um dos quatro amigos que dividem o apartamento.
Tudo começa com o protagonista, que irá cursar administração, e o amigo Miguel,
futuro estudante de medicina, indo para o Rio de Janeiro a procura de um
apartamento que irão dividir com os outros dois amigos, Victor Hugo e Leitão,
que cursarão gastronomia e ciências da computação, respectivamente. Eles
encontram o apartamento perfeito para as suas necessidades, algo melhor do que
esperavam por um preço que poderiam pagar.
Os
quatro anos seguintes, pelo que Dante nos apresenta, parecem ser anos bons;
eles estão cursando aquilo que sempre desejaram, estão em uma cidade grande,
possuem uma vida independente dos pais, etc. Entretanto, quando eles se formam
e percebem que apesar do diploma o mercado não está muito receptivo para eles,
o que era um sonho começa a se transformar em preocupação. O protagonista
trabalha em um livraria porque não encontra nada em sua área; Victor Hugo
presta um serviço ou outro em buffets, algo nada estável; Miguel passa o dia
inteiro fora fazendo sua residência em um hospital público do Rio; e Leitão,
que abandonou a faculdade no segundo ano, passa o dia todo trancado no quarto
comendo e vendo pornografia em frente o computador. Então o pouco que eles
ganham acaba sendo só para pagar o aluguel e se manter ali, porque é melhor
viver com pouco no Rio do que voltar para Pingo d’Água.
Apesar
das dificuldades todos estão levando a vida e sobrevivendo como podem, mas
quando Dante recebe uma ligação da imobiliária dizendo que o aluguel não foi
pago nos últimos seis meses, tudo desmorona. Os quatro amigos buscam a melhor
solução para resolver o problema e não ter que se livrar daquele apartamento
que representa a permanência no Rio e, consequentemente, suas liberdades.
Afinal, retomar a vida no interior não é uma opção.
Influenciados
pelos jantares secretos que acontecem nos EUA e na Europa, os quatro amigos
decidem fazer alguns jantares de luxo ali no apartamento, já que Victor Hugo é
um ótimo cozinheiro, para levantar um dinheiro extra e conseguir quitar a
divida. Mas os planos acabam saindo do esperado e eles se veem obrigados a
trocar a carne do prato principal, cordeiro, por uma mais exótica... de
gaivota.
O enigma da gaivota
O
prefácio do livro vai apresentar o enigma da gaivota, que será importante para
entender algumas referências ao longo do livro. Para resumir, esse enigma é um
daqueles em que você fala o trecho de uma história e os outros precisam
adivinhar fazendo perguntas cujas respostas serão apenas “sim, não e
irrelevante”. O enigma começa com: “Um homem entra em um restaurante e pede uma
sopa de gaivota. Ele prova a sopa e logo em seguida se mata”. Ao chegar na
resolução você vai descobrir que esse homem, no passado, comeu a carne de sua
mulher acreditando ser de gaivota, então ao perceber isso ele se mata.
Caso
queira mais detalhes basta dar um Google ou ler o livro. Mas isso é o
suficiente para você saber que gaivota vai ser uma referência a carne humana
durante a história.Bom, não irei entrar em detalhes, apenas o suficiente para
abrir as discussões que o livro propõe.
Mesmo
sendo algo arriscado, bizarro e repulsivo, os personagens acabam aceitando
fazer o jantar com carne de gaivota, afinal aquele único jantar praticamente
quitaria toda a divida, sendo que antes dessa refeição inusitada acontecer vamos
ver todos os dilemas enfrentados pelos personagens, desde a questão da moral
até as questões mais praticas, de como conseguir um corpo, quem eles vão
servir, etc. etc. etc.
Como
você deve imaginar, a história não vai parar por aí e esse jantar, que deveria
acontecer apenas uma vez para quitar a dívida do apartamento, vai sair do
controle dos quatro personagens e acabar tomando uma proporção inesperada,
levando todos pra um caminho sem volta.
Canibalismo gourmet
Você
comeria carne humana? Eu imagino que a sua resposta é não, mas por quê? Nos não
contribuímos pra matança de animais diariamente para comer? Nos não tiramos os
filhotinhos das mães logo no nascimento para colocar na fila do bife? Nos não
trancafiamos esses animais para engordá-los o mais rápido possível pro abate?
Não submetemos animais a tortura pro nosso próprio gozo? Porque podemos fazer
isso com as outras espécies, mas não podemos fazer isso com a nossa própria?
Calma,
nós do Café não comemos carne humana, pelo menos por enquanto. Mas essa
é uma questão que vai predominar durante toda a leitura e é algo bem
interessante porque, por mais que você não concorde com os argumentos
apresentados na obra, ou crie uma resistência pra concordar, é impossível ficar
indiferente e não refletir sobre a questão da carne na sociedade. Se pararmos
cinco minutos para refletir sobre toda a cadeia de produção, é algo
absolutamente cruel e desumano, mas mesmo assim continuamos consumindo. Eu
creio que os principais motivos são: 1) o fato de tudo acontecer no escuro, ou
seja, nós sabemos o que acontece, mas por não vermos diretamente nos acabamos
fingindo que tudo nasce na bandeja do supermercado e não existem torturas e
mortes por detrás disso, o que justifica
o horror que as pessoas tem de ver um animal sendo morto enquanto almoçam um
bifão. 2) Por não sermos da mesma espécie, nós acabamos inferiorizando os
animais, criando justificativas absurdas de que os sentimentos e a dor deles
são diferentes. 3) E, principalmente, cultura. É inegável a importância da carne
no passado, mas cada dia fica mais claro que podemos sobreviver muito bem sem a
proteína animal e sem todos esses absurdos que envolvem a indústria,
entretanto, é difícil largar esse costume porque vai contra diversas questões
que estão desde sempre em nossa sociedade, além das pressões da indústria e
etc. 4) Sim, sou um hipócrita que vou terminar esse texto e sair pra comer um
hambúrguer.
Raphael
Montes, a partir dessas questões, vai construindo a trama que ao mesmo tempo em
que conta a história desses quatro amigos, também vai dando vários tapas na sua
cara, fazendo com que você seja obrigado a ver muito daquilo que você sempre
fingiu não ver, afinal aqui na história não são vacas ou porcos que estão indo
pro prato, mas sim pessoas. Ou seja, o que você iria achar de virar um belo
filé ao molho cítrico no prato de um granfino, que tem o direito pela sua carne
simplesmente por ter mais poder que você? Se você faz isso com as vacas, porque
não pode entrar na cadeia alimentar? Seria mais justo, não?
Acho
que cadeia alimentar é uma ideia que conversa bastante com a obra, porque no
fundo tudo é uma relação de poder, independente se é entre espécies ou dentro
da mesma.
O jantar está na mesa...
desde que você possa pagar, é
claro!
Os
jantares e as discussões acerca da carne de gaivota são coisas que vão
predominar por toda a trama, mas, além disso, vamos ver outras questões que
também são bem relevantes e contribuem tanto pra narrativa quanto pras
discussões levantadas. Como, por exemplo, a questão do poder.
A
história vai se passar no Rio no ano de 2015/2016, então você já deve conhecer
todo o contexto político e social em que ocorre. Raphael Montes consegue fazer
uma trama de canibalismo que dialoga diretamente com as questões que lidamos
diariamente no País, algo que pode parecer estranho, mas tudo flui muito bem,
criando varias camadas. Então se por um lado o enredo começa com quatro amigos
fazendo um jantar gourmet com carne humana, por outro ele se desenrola a partir
de temas como corrupção, dinheiro, poder, ameaças, etc.
Algo
que gostei bastante é como o autor mostra algo que em um primeiro momento
parece absurdo e que todo mundo diz repudiar, mas que em pouco tempo ele vai se
tornando uma moda com potencial para virar uma indústria lucrativa. Então
lembra quando perguntei se você provaria carne humana? Eu creio que apesar de
você falar não, dependendo da situação você adoraria.
A
questão é que a carne de gaivota passa a se tornar uma iguaria a partir do
momento em que você já provou de tudo que o seu dinheiro possa comprar, por
isso faz tanto sucesso entre a elite carioca. O alimento, além de ser uma
necessidade, é também uma forma de distinção social, tornando a refeição uma
experiência. Se você tem dinheiro, você não vai comer arroz, feijão e ovo todos
os dias, você vai querer explorar o novo, então passa a consumir cortes nobres,
animais exóticos, métodos novos, etc. A carne humana supre essa demanda pelo
diferente, é claro que aqui vai haver um certo exagero com os jantares
canibais, mas é fácil encontrar referencias diárias de pessoas que fazem coisas
absurdas só pelo simples fato de poderem, independente de ser algo legal ou
não.
Consequentemente,
com pessoas poderosas interessadas no jantar, diversas outras questões vão
sendo desencadeadas, pois, caso você não saiba, preparar refeições com carne
humana é crime. Então o livro trabalha não só aquele ambiente das jantas, mas
todo esse processo que acaba surgindo em torno disso, o que é um tanto
amedrontador, pois você percebe que apesar de parecer estranho e absurdo em um
primeiro momento, conforme você avança na leitura vai notando que apesar de
improvável é algo absolutamente possível.
Mas
sejamos honestos, no meio de tantos surrealismos que vemos diariamente no
Brasil, ver gente rica fazendo umas jantinhas top e servindo pobre a milanesa,
não parece tão absurdo assim.
E ai, bora comer um bifão?
Só
se for de gaivota...
Mas
caso ainda não esteja pronto pra provar, fica a recomendação do livro — quem sabe até o fim da leitura você não toma
coragem?
Apesar
de ter gostado bastante do livro, eu acredito que não é todo mundo que irá
gostar, afinal ele tem passagens bem pesadas que incomodam até quem já ta
acostumado com gore. Mas caso você goste de romances policiais e obras com
bastante sangue, fica a recomendação. Jantar secreto consegue mesclar
humor negro, gore, mistério e ainda discutir questões relevantes sobre o Brasil
e sobre o consumo de carne.
Raphael
Montes tem uma escrita fluida que mantém o leitor preso do inicio ao fim da
trama, assim como ele também faz em Dias perfeitos e Suicidas,
que eu também recomendo. O livro começa de um jeito lento e intrigante, sem dar
muita informação do que virá a seguir, e vai tomando velocidade a cada página.
Por ser narrado em primeira pessoa, em forma de relato, a escrita é bem direta
e crua, mas em diversos momentos você percebe a dificuldade do personagem em
lidar com muitas dessas questões e tentando mostrar o seu lado da história.
Além da narrativa, o autor também usa alguns recursos bem interessantes para complementar
a trama, como por exemplo algumas cartas que Leitão envia pra sua mãe, uso de
imagens, receitas e até mesmo um evento em específico que é inteiro apresentado
por meio de uma conversa no WhatsApp.
Um
ponto extra que me fez gostar ainda mais do livro foi perceber que o autor se
preocupou em estudar algumas noções de gastronomia para desenvolver a sua obra.
Ao longo do texto sentimos que ele teve a preocupação de ser o mais verossímil
possível, de maneira que os pratos dos jantares são bem detalhados, sendo
explicadas as composições de cada um e fazendo com que notemos que aquele
jantar é algo refinado e feito por alguém que entende tanto dos ingredientes
quanto das novas tendências. É impossível não ficar curioso com o sabor
daquilo, por mais que nossos valores tentem rejeitar. Durante a leitura de
algumas passagens dá até pra imaginar o Raphael Montes sentado à mesa provando
os pratos... Será?
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