terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Literatura: Jantar secreto (Raphael Montes)


               Olá caros leitores do Café, hoje estamos aqui para um evento especial. Sentem-se a mesa e fiquem a vontade, o jantar sairá em breve. Espero que estejam tão empolgados e curiosos quanto à gente, afinal, não é todo dia que comemos carne human... digo, carne de gaivota, não é mesmo?




““Me deixa perguntar uma coisa pra vocês: qual é o maior problema do mundo?”
“Doenças”, Miguel arriscou.
“Pessoas discutindo política no Facebook”, Leitão disse.
“A fome”, respondi.
“Isso, a fome”, Umberto disse, como um professor satisfeito com o aluno sabido. “Já pararam pra pensar que o canibalismo pode ser a solução mais imediata para a fome no mundo? Quero dizer, não comemos nossos mortos por uma questão cultural. Não fomos criados assim. Acontece que enterrar os mortos é um grande desperdício de carne saborosa que poderia ser usada como alimento. Mesmo na vila mais pobre da África, onde pessoas passam fome, há carne sendo desperdiçada nos enterros. Porque não comer? O que mata as pessoas de fome é esse impedimento moral de comer os semelhantes...””


Título original: Jantar secreto
Autor: Raphael Montes
Ano: 2016
Editora: Companhia das letras
Páginas: 360
               Em 2010, quatro amigos saem de Pingo d’Água, cidadezinha no interior do Paraná, para estudar no Rio de Janeiro, com o objetivo de conseguir o diploma, um trabalho em sua área e realizar seus sonhos em uma cidade grande. Cinco anos depois, ainda dividindo o mesmo apartamento, três deles conseguem o tão almejado diploma, mas todo o resto parece estar desmoronando: eles sofrem em empregos medíocres pra pagar as contas, o trabalho dos sonhos parece cada vez mais distante devido a situação do país, a amizade desgastando com o tempo, etc. Tudo piora de vez quando descobrem uma divida de quase 26 mil reais com a imobiliária, levando os quatro a uma decisão desesperada... Porem, deliciosa.


4 guys, 1 dinner

A história é narrada por Dante, um dos quatro amigos que dividem o apartamento. Tudo começa com o protagonista, que irá cursar administração, e o amigo Miguel, futuro estudante de medicina, indo para o Rio de Janeiro a procura de um apartamento que irão dividir com os outros dois amigos, Victor Hugo e Leitão, que cursarão gastronomia e ciências da computação, respectivamente. Eles encontram o apartamento perfeito para as suas necessidades, algo melhor do que esperavam por um preço que poderiam pagar.
Os quatro anos seguintes, pelo que Dante nos apresenta, parecem ser anos bons; eles estão cursando aquilo que sempre desejaram, estão em uma cidade grande, possuem uma vida independente dos pais, etc. Entretanto, quando eles se formam e percebem que apesar do diploma o mercado não está muito receptivo para eles, o que era um sonho começa a se transformar em preocupação. O protagonista trabalha em um livraria porque não encontra nada em sua área; Victor Hugo presta um serviço ou outro em buffets, algo nada estável; Miguel passa o dia inteiro fora fazendo sua residência em um hospital público do Rio; e Leitão, que abandonou a faculdade no segundo ano, passa o dia todo trancado no quarto comendo e vendo pornografia em frente o computador. Então o pouco que eles ganham acaba sendo só para pagar o aluguel e se manter ali, porque é melhor viver com pouco no Rio do que voltar para Pingo d’Água.
Apesar das dificuldades todos estão levando a vida e sobrevivendo como podem, mas quando Dante recebe uma ligação da imobiliária dizendo que o aluguel não foi pago nos últimos seis meses, tudo desmorona. Os quatro amigos buscam a melhor solução para resolver o problema e não ter que se livrar daquele apartamento que representa a permanência no Rio e, consequentemente, suas liberdades. Afinal, retomar a vida no interior não é uma opção.
Influenciados pelos jantares secretos que acontecem nos EUA e na Europa, os quatro amigos decidem fazer alguns jantares de luxo ali no apartamento, já que Victor Hugo é um ótimo cozinheiro, para levantar um dinheiro extra e conseguir quitar a divida. Mas os planos acabam saindo do esperado e eles se veem obrigados a trocar a carne do prato principal, cordeiro, por uma mais exótica... de gaivota. 


O enigma da gaivota

O prefácio do livro vai apresentar o enigma da gaivota, que será importante para entender algumas referências ao longo do livro. Para resumir, esse enigma é um daqueles em que você fala o trecho de uma história e os outros precisam adivinhar fazendo perguntas cujas respostas serão apenas “sim, não e irrelevante”. O enigma começa com: “Um homem entra em um restaurante e pede uma sopa de gaivota. Ele prova a sopa e logo em seguida se mata”. Ao chegar na resolução você vai descobrir que esse homem, no passado, comeu a carne de sua mulher acreditando ser de gaivota, então ao perceber isso ele se mata.
Caso queira mais detalhes basta dar um Google ou ler o livro. Mas isso é o suficiente para você saber que gaivota vai ser uma referência a carne humana durante a história.Bom, não irei entrar em detalhes, apenas o suficiente para abrir as discussões que o livro propõe.
Mesmo sendo algo arriscado, bizarro e repulsivo, os personagens acabam aceitando fazer o jantar com carne de gaivota, afinal aquele único jantar praticamente quitaria toda a divida, sendo que antes dessa refeição inusitada acontecer vamos ver todos os dilemas enfrentados pelos personagens, desde a questão da moral até as questões mais praticas, de como conseguir um corpo, quem eles vão servir, etc. etc. etc.
Como você deve imaginar, a história não vai parar por aí e esse jantar, que deveria acontecer apenas uma vez para quitar a dívida do apartamento, vai sair do controle dos quatro personagens e acabar tomando uma proporção inesperada, levando todos pra um caminho sem volta.

Canibalismo gourmet

Você comeria carne humana? Eu imagino que a sua resposta é não, mas por quê? Nos não contribuímos pra matança de animais diariamente para comer? Nos não tiramos os filhotinhos das mães logo no nascimento para colocar na fila do bife? Nos não trancafiamos esses animais para engordá-los o mais rápido possível pro abate? Não submetemos animais a tortura pro nosso próprio gozo? Porque podemos fazer isso com as outras espécies, mas não podemos fazer isso com a nossa própria?
Calma, nós do Café não comemos carne humana, pelo menos por enquanto. Mas essa é uma questão que vai predominar durante toda a leitura e é algo bem interessante porque, por mais que você não concorde com os argumentos apresentados na obra, ou crie uma resistência pra concordar, é impossível ficar indiferente e não refletir sobre a questão da carne na sociedade. Se pararmos cinco minutos para refletir sobre toda a cadeia de produção, é algo absolutamente cruel e desumano, mas mesmo assim continuamos consumindo. Eu creio que os principais motivos são: 1) o fato de tudo acontecer no escuro, ou seja, nós sabemos o que acontece, mas por não vermos diretamente nos acabamos fingindo que tudo nasce na bandeja do supermercado e não existem torturas e mortes por detrás disso,  o que justifica o horror que as pessoas tem de ver um animal sendo morto enquanto almoçam um bifão. 2) Por não sermos da mesma espécie, nós acabamos inferiorizando os animais, criando justificativas absurdas de que os sentimentos e a dor deles são diferentes. 3) E, principalmente, cultura. É inegável a importância da carne no passado, mas cada dia fica mais claro que podemos sobreviver muito bem sem a proteína animal e sem todos esses absurdos que envolvem a indústria, entretanto, é difícil largar esse costume porque vai contra diversas questões que estão desde sempre em nossa sociedade, além das pressões da indústria e etc. 4) Sim, sou um hipócrita que vou terminar esse texto e sair pra comer um hambúrguer.
Raphael Montes, a partir dessas questões, vai construindo a trama que ao mesmo tempo em que conta a história desses quatro amigos, também vai dando vários tapas na sua cara, fazendo com que você seja obrigado a ver muito daquilo que você sempre fingiu não ver, afinal aqui na história não são vacas ou porcos que estão indo pro prato, mas sim pessoas. Ou seja, o que você iria achar de virar um belo filé ao molho cítrico no prato de um granfino, que tem o direito pela sua carne simplesmente por ter mais poder que você? Se você faz isso com as vacas, porque não pode entrar na cadeia alimentar? Seria mais justo, não?
Acho que cadeia alimentar é uma ideia que conversa bastante com a obra, porque no fundo tudo é uma relação de poder, independente se é entre espécies ou dentro da mesma.


O jantar está na mesa...
desde que você possa pagar, é claro!

Os jantares e as discussões acerca da carne de gaivota são coisas que vão predominar por toda a trama, mas, além disso, vamos ver outras questões que também são bem relevantes e contribuem tanto pra narrativa quanto pras discussões levantadas. Como, por exemplo, a questão do poder.
A história vai se passar no Rio no ano de 2015/2016, então você já deve conhecer todo o contexto político e social em que ocorre. Raphael Montes consegue fazer uma trama de canibalismo que dialoga diretamente com as questões que lidamos diariamente no País, algo que pode parecer estranho, mas tudo flui muito bem, criando varias camadas. Então se por um lado o enredo começa com quatro amigos fazendo um jantar gourmet com carne humana, por outro ele se desenrola a partir de temas como corrupção, dinheiro, poder, ameaças, etc.
Algo que gostei bastante é como o autor mostra algo que em um primeiro momento parece absurdo e que todo mundo diz repudiar, mas que em pouco tempo ele vai se tornando uma moda com potencial para virar uma indústria lucrativa. Então lembra quando perguntei se você provaria carne humana? Eu creio que apesar de você falar não, dependendo da situação você adoraria.
A questão é que a carne de gaivota passa a se tornar uma iguaria a partir do momento em que você já provou de tudo que o seu dinheiro possa comprar, por isso faz tanto sucesso entre a elite carioca. O alimento, além de ser uma necessidade, é também uma forma de distinção social, tornando a refeição uma experiência. Se você tem dinheiro, você não vai comer arroz, feijão e ovo todos os dias, você vai querer explorar o novo, então passa a consumir cortes nobres, animais exóticos, métodos novos, etc. A carne humana supre essa demanda pelo diferente, é claro que aqui vai haver um certo exagero com os jantares canibais, mas é fácil encontrar referencias diárias de pessoas que fazem coisas absurdas só pelo simples fato de poderem, independente de ser algo legal ou não.
Consequentemente, com pessoas poderosas interessadas no jantar, diversas outras questões vão sendo desencadeadas, pois, caso você não saiba, preparar refeições com carne humana é crime. Então o livro trabalha não só aquele ambiente das jantas, mas todo esse processo que acaba surgindo em torno disso, o que é um tanto amedrontador, pois você percebe que apesar de parecer estranho e absurdo em um primeiro momento, conforme você avança na leitura vai notando que apesar de improvável é algo absolutamente possível.
Mas sejamos honestos, no meio de tantos surrealismos que vemos diariamente no Brasil, ver gente rica fazendo umas jantinhas top e servindo pobre a milanesa, não parece tão absurdo assim.

E ai, bora comer um bifão?

Só se for de gaivota...
Mas caso ainda não esteja pronto pra provar, fica a recomendação do livro quem sabe até o fim da leitura você não toma coragem?
Apesar de ter gostado bastante do livro, eu acredito que não é todo mundo que irá gostar, afinal ele tem passagens bem pesadas que incomodam até quem já ta acostumado com gore. Mas caso você goste de romances policiais e obras com bastante sangue, fica a recomendação. Jantar secreto consegue mesclar humor negro, gore, mistério e ainda discutir questões relevantes sobre o Brasil e sobre o consumo de carne.
Raphael Montes tem uma escrita fluida que mantém o leitor preso do inicio ao fim da trama, assim como ele também faz em Dias perfeitos e Suicidas, que eu também recomendo. O livro começa de um jeito lento e intrigante, sem dar muita informação do que virá a seguir, e vai tomando velocidade a cada página. Por ser narrado em primeira pessoa, em forma de relato, a escrita é bem direta e crua, mas em diversos momentos você percebe a dificuldade do personagem em lidar com muitas dessas questões e tentando mostrar o seu lado da história. Além da narrativa, o autor também usa alguns recursos bem interessantes para complementar a trama, como por exemplo algumas cartas que Leitão envia pra sua mãe, uso de imagens, receitas e até mesmo um evento em específico que é inteiro apresentado por meio de uma conversa no WhatsApp.

Um ponto extra que me fez gostar ainda mais do livro foi perceber que o autor se preocupou em estudar algumas noções de gastronomia para desenvolver a sua obra. Ao longo do texto sentimos que ele teve a preocupação de ser o mais verossímil possível, de maneira que os pratos dos jantares são bem detalhados, sendo explicadas as composições de cada um e fazendo com que notemos que aquele jantar é algo refinado e feito por alguém que entende tanto dos ingredientes quanto das novas tendências. É impossível não ficar curioso com o sabor daquilo, por mais que nossos valores tentem rejeitar. Durante a leitura de algumas passagens dá até pra imaginar o Raphael Montes sentado à mesa provando os pratos... Será?

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