quarta-feira, 16 de maio de 2018

Resenha: Noturno (Scott Sigler)


               Você lembra do seu último sonho? Qual foi a situação constrangedora ou amedrontadora vivenciada? Você estava correndo pelado pela escola enquanto um monstro vestido de Peter Pan te perseguia com uma panela na mão enquanto tocava Belchior? Sim, sonhos são capazes de nos levar pras situações mais bizarras possíveis, mas o que você faria se você começasse a sonhar com assassinatos que se concretizam na realidade? Tentaria descobrir que bruxaria é essa ou simplesmente voltaria a dormir, afinal a vida é muito curta pra desperdiçar horas de sono com crimes?



               “Pookie Chang vira muitas coisas repulsivas na sua carreira. Cadáveres não eram novidade para ele. Quando morava em Chicago, seu segundo caso de homicídio envolveu um homem que matara a mãe, depois tentara se livrar o corpo cortando-o em pedaços pequenos o bastante para caberem no triturador de lixo da pia da cozinha. Você nunca mais é o mesmo depois de ver uma coisa assim – isso muda a pessoa. Ele lidara com casos que demonstraram como os seres humanos podem ser malignos, casos que o fizeram duvidar da sua fé. Afinal, como um Deus bondoso podia permitir que tais coisas acontecessem? Sim, ele duvidara de Deus, duvidara da sua própria capacidade para o trabalho e, em mais de uma ocasião, duvidara do sistema judiciário em si – mas, durante os seis anos de parceria, nunca duvidara de Bryan Clauser.”

Título original: Nocturnal
Autor: Scott Sigler
Ano: 2007
Editora: Darkside books
Páginas: 499

                Bryan Clauser, um policial de San Francisco, começa a ter estranhos pesadelos em que ele está na pele de um assassino. Logo ele percebe que esses assassinatos brutais não estão apenas no espectro onírico, as mortes são reais e ele pode estar envolvido nisso, mesmo parecendo algo impossível. Reconhecendo os locais onde nunca esteve e as vítimas mortas que viu durante o sono, ele passa a duvidar da sua sanidade. Com a ajuda de seu parceiro Pookie Chang, Clauser começa a investigar esses estranhos eventos, que envolvem  não apenas os sonhos mas também o próprio departamento de polícia em que trabalha.

Está na hora de acordar!!!

A narrativa de Noturno acompanha diversos personagens, desenvolvendo a história a partir de diversas perspectivas diferentes, mas o protagonista e quem vamos acompanhar por mais tempo é Bryan Clauser. Clauser que, assim como a maioria dos policiais da literatura e do cinema, é uma pessoa fechada, solitária e de poucos amigos, mas bastante comprometido com o trabalho. Apesar de ser respeitado e ser um dos melhores no seu departamento, ele é conhecido por alguns como “exterminador”, devido ao seu histórico, apelido nem um pouco apreciado pelo mesmo.
Um de seus único amigo é seu parceiro Pookie Chang, um policial que é o oposto de Clauser, simpático, brincalhão, mulherengo e que tem o sonho de escrever um seriado policial para a TV. Os dois trabalham principalmente durante a noite investigando crimes, gangues, etc., sendo que a rotina dos dois é quebrada quando um padre acusado de pedofilia é encontrado morto brutalmente. Apesar de ser um caso que deveria ser investigado por Clauser e Chang, quem acaba assumindo a investigação é Rich Verde, um dos policiais mais antigos do departamento. Além de serem afastados da investigação, eles sentem que existe algo de estranho naquela morte: o legista chefe está envolvido, sendo que ele não saia do necrotério há muito tempo, a delegada está fazendo de tudo para manter os dois afastados e muitas informações estão sendo abafadas.
Se a situação já não estava estranha o suficiente, durante a noite Clauser começa a sonhar que está dentro do corpo de um outro ser, caçando e matando outras pessoas junto com um grupo composto por criaturas bizarras, humanoides com feições animalescas e habilidades impossíveis para um humano comum. Quando, no dia seguinte, ele descobre que o assassinato de seu sonho aconteceu de verdade. Daí, as coisas se complicam ainda mais, Clauser começa a duvidar da sanidade, seu parceiro começa a duvidar das suas ações e as investigações da policia ficam cada vez mais duvidosas. E nesse turbilhão de acontecimentos o protagonista precisa entender o que está acontecendo, mesmo não tendo pistas e o seu departamento encobrindo todas as informações que possam ser úteis.
Além disso, também vamos acompanhar personagens como Rex e Aggie que no inicio parecem perdidos na história mas aos poucos as ligações começam a ocorrer. Rex é um garoto solitário que vive com a mãe abusiva e que diariamente sofre nas mãos dos valentões do colégio e, assim como Clauser, também tem sonhos estranhos com pessoas assassinadas. Já Aggie é um morador de rua que foi sequestrado por pessoas mascaradas e levado para um cativeiro onde fica acorrentado com com outras vitimas, sem poder fugir, ele passa dia após dia vendo os mascarados levando seus companheiros de cativeiro e trazendo novos.
No meio de todo esse caos, a historia de Noturno segue adiante.


Luz sobre a noite

Falar sobre Noturno sem revelar coisas da história é praticamente impossível, porque além de ser um livro com investigações, em que cada pista conta e revela algo da trama, o mais legal de todo o livro é você, junto com Clauser e Chang, ir tentando entender qual é a treta que ta acontecendo ali. Será que o policial é um sonâmbulo e ta matando as pessoas enquanto dorme? Será que ele está no corpo de outra pessoa? Existe algo sobrenatural? Porque os seres do sonho parecem animais? Quem são os mascarados mantendo o Aggie no cativeiro? Será que Rex vai conseguir se livrar do valentões? O que a policia está escondendo? Como tudo isso está interligado?
Enfim, são diversas questões que vão se resolvendo e intensificando durante a leitura, e não pretendo estragar isso aqui. Então pra tentar despertar seu interesse (ou não) pelo livro, vou pincelar alguns temas relevantes da narrativa, mas sem entrar na história de fato, permitindo que você saiba mais ou menos a temática, mas sem revelar o contexto ou os caminhos escolhidos pelo autor.
Um ponto que será bastante trabalhado e desenvolvido pelo autor é a questão da responsabilidade e da tênue linha entre o certo e o errado. Em diversos momentos vamos ver Clauser tendo que lidar com situações que fogem do seu controle e que questionem seu compromisso com a profissão. É melhor seguir as leis mesmo que isso possa trazer grandes problemas ou é melhor agir contra a sua ética e seu juramento sabendo que isso vai evitar problemas não só pra você, mas pro bem comum? Claro que a situação é muito mais complexa, mas esse dilema moral que está presente por quase toda a trama ajuda a criar um dialogo com o leitor, pois mesmo você estando do lado fora, é muito complicado responder essas questões enfrentadas pelo protagonista. Isso é bem bacana porque faz com que nós questionemos nossos próprios valores. Nós temos opiniões fortes, acreditamos em nossas ideologias e nos consideramos íntegros, mas isso tudo funciona nos momentos em que estamos em meio a tranquilidade, quando a merda bate no ventilador e isso é colocado a prova tudo se torna muito mais complicado. Será que as vezes a ignorância não seria melhor que a verdade?
Outra discussão que permeia boa parte do livro, mas que não está muito clara e o autor também não demonstra muito interesse em trabalhar, fora uma pincelada ou outra, é a questão da minoria e do papel do seu papel em se estabelecer socialmente. É claro que as justificativas estão ali e que conforme você avança na história as coisas se encaixam, mas em muitos momentos, antes de entender o que estava acontecendo de fato, era algo que eu me pegava pensando. Não entrarei em detalhes, mas no livro existe um grupo de pessoas que vivem escondidas, evitando o contato com  a sociedade, e mesmo as pessoas que sabem da existência desse grupo acabam abafando e os mantendo no anonimato. E a todo momento eu fiquei pensando no que aconteceria se elas se posicionassem e se mostrassem pro mundo, será que teriam aceitação? Será que era melhor manterem o anonimato? Será que haveria conflito? Será que seria possível chegar em um acordo? É algo meio louco de pensar, porque muitas vezes o vilão não é necessariamente um vilão, mas sim alguém que é resultado daquilo a que foi submetido por toda a vida. É claro que não podemos culpar só um lado, seja a sociedade ou um indivíduo, e que pessoas com concepções e estilos fora do comum sempre vão receber desconfiança, mas esse grupo também não será aceito caso não tente mostrar seu lado.
É bem provável que você tenha uma leitura completamente diferente a esse respeito, mas em boa parte do livro eu tive a sensação de que muitas coisas poderiam ser diferentes, e que a dualidade de bem e mal estava bem borrada, tanto pra um lado quanto para o outro, algo que é bem engraçado, já que o livro de certo modo faz você torcer pra um lado, mas é o tipo de torcida que você faz com um certo tipo de vergonha.
Essas duas temáticas estão entrelaçadas nessa historia que envolve pesadelos, cultos e investigações. Cabe a você tirar as próprias conclusões sobre a situação e decidir de que lado você está... ou ser como eu e sair problematizando livros que não tem intenção nenhuma de levantar discussões.


E ai, você também tem sonhos estranhos?

Noturno, que foi enviado aqui pro Café em parceria com a Darkside, é um livro estranho: no início parece um thriller que flerta com o fantástico, mas conforme a história avança as coisas começam a ficar mais bizarras. Vamos ter sangue, cenas grotescas, situações que você nunca deve ter imaginado e tal, entretanto, é difícil classificar ele como um livro de terror. Acho que ele é muito mais um livro policial com diversas influências do terror, o que acaba sendo uma narrativa um tanto curiosa e criativa. Sua história é dividida em duas partes: a primeira é bem focada nessa parte de tentar entender tudo aquilo que está acontecendo, a segunda já é bem diferente, com as coisas mais ou menos estabelecidas a narrativa se torna mais ativa, escancarando aquilo que até então estava no subjetivo, assumindo um ritmo diferente e abraçando o  bizarro, algo que pode incomodar alguns, mas que eu particularmente achei bem interessante.
Apesar de não ser um livro que eu tenha amado e que levarei pra vida, é uma leitura bem agradável e interessante, principalmente se você gostar de thrillers e de coisas esquisitas e novas. No que se propõe, Noturno é bem legal. Apesar de ter uma coisa ou outra que eu não tenha gostado, como a atitude de alguns personagens ou sentir falta de um melhor desenvolvimento do mundo, no final o saldo é positivo. Mesmo tratando de temas pesados, como assassinatos brutais, o livro tem certa leveza porque ele trabalha bem os alívios cômicos, geralmente proporcionados pelo Pookie Chang, que, inclusive, é um personagem bem bacana.
Uma coisa que melhorou bastante a experiência do livro pra mim foi não ter lido nada sobre ele antes, então eu não sabia exatamente o que esperar. Eu tentei escrever essa resenha revelando o mínimo possível, mas todas as outras resenhas que eu vi acabaram revelando algo que eu acho que tira boa parte da graça, já que uma das coisas mais legais é a duvida que fica presente durante a historia e, por mais que as coisas comecem a se revelar e as perguntas sejam respondidas, você fica pensado: “será?”.
Enfim, Noturno é recomendado pra todo mundo que está procurando um thriller com algo a mais, e não apenas um policial desvendando um caso. O autor flerta com o terror, suspense, fantasia, gore, humor e, até mesmo, uma pitada de romance. Talvez não vá entrar na sua lista de favoritos, mas vale dar uma chance pra essa curiosa experiência.

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