segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Livros polêmicos dos quais você nunca ouviu falar (Parte II)


Então você leu a primeira parte desta série e já está se achando a pessoa mais inteligente do bairro?
Não, não, jovem padawan, guarde esse orgulho para mais tarde porque o Café ainda tem muitas obscuridades para te apresentar.
Vamos a elas. 

 
Rumo ao ceticismo - Oswaldo Porchat

            Apontar esse livro aqui é, na verdade, uma trapaça. “Rumo ao ceticismo” não é por si mesmo nem polêmico, nem desconhecido. Explico: antes de tudo, ele não é polêmico, pois reúne vários artigos de Porchat que já tinham sido publicados em revistas especializadas e debatidos exaustivamente antes do surgimento dessa obra. O livro, portanto, é uma sistematização de artigos controversos e não controverso por si mesmo. Por fim, ele é bastante conhecido, mas só no meio acadêmico, sobretudo naquele ligado a filosofia. Colocando claramente: se você não for do grupinho que lê artigos de filosofia em revistas especializadas ou acadêmico da área de humanas, provavelmente não saberá por que tanta discussão, mesmo que já tenha escutado qualquer coisa sobre esse autor.
Partamos, pois, do início.
            Oswaldo Porchat é um filósofo daqui de São Paulo, velhinho, mas ainda vivo e razoavelmente atuante; algo que frequentemente causa estranheza nas pessoas. Afinal, para ser filósofo não é preciso estar morto? Mais: o Brasil tem filósofos? E se tem, eles são bons como aqueles europeus importantes? Iremos parar nos livros de história universal um dia?
Bem dizendo, a questão é a seguinte: quem é esse homem e o que fez de relevante para receber esse título pomposo?
Vou tentar responder isso o explicando pela gênese.

*

Porchat foi um jovem católico muito interessado na questão religiosa, deus, o pecado e coisas tais, vindo por conta disso estudar filosofia tomista, principalmente Tomás de Aquino. Contudo, conforme adentrava na investigação intelectual e buscava maneiras de reforçar sua crença no divino, deparava-se com dificuldades que a prática filosófica fornece àqueles que pretendem dizer que conhecem alguma coisa. A filosofia, esse saber estranho,  ensina a duvidar de tudo o que se pretende verdadeiro, logo, na medida em que o jovem filósofo o ia experimentando, notava que as crenças religiosas as quais dedicava grande valor eram, na verdade, pouco sólidas.
Pois bem. Que fim teve essa história você pode descobrir lendo o artigo “Prefácio a uma filosofia”, que detalha esse processo doloroso de modo lindamente escrito, porém, o que nos interessa agora é saber que, por conta disso, afetaram-se gravemente os interesses de Porchat, que migrou das Letras Clássicas (ele era professor de latim) para a Filosofia.
Melhor para nós, melhor para o Brasil.
Daí por diante, ele estudou filosofia antiga, lógica, ceticismo, publicou uma tese clássica sobre Aristóteles e foi professor da Universidade de São Paulo, o que não teria importância alguma se não fosse por um artigo intitulado: “O conflito das filosofias” no qual, ao constatar a diversidade dos discursos que se pretendem verdadeiros, mostrou uma banana para a filosofia, dizendo que estamos presos na contradição, na impossibilidade do consenso sobre o que é verdadeiro e como atingi-lo. Assim ó: se um pensador afirma algo, outro afirma o seu contrário, depois, um terceiro nega os dois anteriores e assim sucessivamente, não poderemos nunca saber quem tem razão, ou seja, somos sempre levados a crer que jamais estaremos em acordo ou próximos à verdade, já que não há nada o pensamento que não seja fonte de disputa. Abordando de maneira rasteira, é essa a problemática do artigo. Ao publica-lo o filósofo deu seu primeiro passo rumo a uma filosofia autêntica e original.
Bom, mas é só isso? O cara escreve um artigo e já é filósofo? Felizmente não. Depois dessa publicação, Porchat passou a ser bastante discutido e lido, além disso, ele mesmo meditou bastante a propósito do que escrevera, amadurecendo sua postura filosófica. O resultado disso poderia ter sido um enrijecimento de seu pensamento, reparando os pontos fracos, potencializando os fortes e articulando melhor o que quis dizer. Todavia, ocorreu algo muito mais interessante que isso. Anos depois de “O conflito das filosofias” Porchat lançou dois artigos nos quais, apesar de considerar mais ou menos os mesmos problemas daquele anterior, mudava em muito seu ponto de vista quanto a ele, tencionando, dessa vez, oferecer uma solução para o conflito das filosofias. Com isso, Porchat construiu sua própria filosofia e se inseriu nessa disputa histórica pela verdade, o que está posto principalmente nos textos: “Prefácio a uma filosofia” e “A filosofia e a visão comum do mundo”.
Acabou? Os filósofos brasileiros sequer são coerentes e ficam se contradizendo o tempo todo? Não, uai, não pense que estamos diante de um intelectual qualquer.
Depois de muito expor e discutir sua filosofia da “segunda fase”, Porchat a abandonou, criticando-a, separando-se radicalmente desse pensamento para elaborar sua proposta mais famosa e original, hoje conhecida por “neopirronismo”. Nela, resumindo grosseiramente, o filósofo abre mão de qualquer posição sobre a realidade última do mundo, ressuscita a doutrina dos antigos céticos no que possui de mais atual e crítico, adaptando-a ao mundo atual. Aliás, é dessa última fase que surgem as reações mais escandalosas quanto a ele, sejam os ataques críticos de outros filósofos (brasileiros e estrangeiros) ou as adesões mais apaixonadas. É aqui que a coisa incendeia e se torna mais interessante e original, uma vez que o neopirronismo não é uma mudança gratuita ou uma revelação finalizada e dogmática, mas um resultado de um processo intenso e longo de meditação que, por isso mesmo, também está aberto à discussão e transformação. Não é uma incoerência intelectual, mas uma evolução, um amadurecimento de alguém que não tem medo de se aprimorar, de abandonar algo em si que não seja muito coerente.
Particularmente, levo “Sobre o que aparece”, o artigo inaugurador dessa “fase” para toda minha vida. Fofo, não?

Onde encontrar?
 
            Há duas maneiras de se ter acesso ao que escreveu Porchat: primeiramente, comprando seus livros, seja “Vida comum e ceticismo” ou o mais completo, “Rumo ao ceticismo”, que compreende todos os seus artigos; além disso, vários artigos dele estão pela internet, incluindo-se aí o todo poderoso “Sobre o que aparece”. A propósito, todos foram muitíssimo bem escritos e se desenvolvem de forma inteligente e elegante. Mesmo um mané feito você pode ler e entender. Juro.

Trecho: 
 


Cabe supor que o filósofo cético jamais se propôs a ser cético. Provavelmente ele se pôs a filosofar como muitos outros homens o fizeram (cf. Sexto, H.P. I, 12), preocupado com conhecer, explicar, interpretar o Mundo de sua vida cotidiana. Ansiava pela Verdade, perseguia Certezas, buscava Princípios, Fundamentos. Dominava-o o fascínio pelo Absoluto. Nessa busca filosófica, eventualmente foi tentado por algumas doutrinas, deu possivelmente sua adesão a uma ou outra dentre elas, terá acaso contribuído com idéias originais. Mas seu amor ao rigor e ao espírito crítico, rigor e espírito crítico que as filosofias desde sempre proclamaram cultivar, conduz ao fracasso seu empreendimento filosófico original. Não encontra o que buscava. Não obstante trabalhosa e demorada investigação, o Absoluto lhe é sempre inacessível. Ele é levado a questionar e a descrer de todas as filosofias que se apresentam como portadoras da Verdade, que pretendem dizer as coisas como elas, em si mesmas, são. É levado a desconfiar de todo discurso tético, de todo discurso que quer pôr e instaurar o Real.  Verdades, Certezas, Fundamentos, Princípios, ele não mais vê como seria possível encontrá-los. Não desiste, por causa disso, da investigação filosófica, o processo de sua investigação permanece ainda aberto. Por isso, chama-se a si mesmo de cético, isto é, de investigador ou pesquisador, no sentido grego do termo (cf. H.P. I, 8; 1). Ele não se julga capaz de demonstrar a falsidade ou falta de sentido das doutrinas filosóficas que investigou. De fato, ele se reconhece incapaz de fazê-lo mas, por outro lado, não tem por que nem como aceitá-las. E igualmente lhe parece que, se os partidários dessas doutrinas que ele foi levado a pôr sob suspeição as aceitam, é porque não se demoraram, como ele, a examinar as credenciais de aceitabilidade que elas pensam poder oferecer; é porque, por mil e variadas razões, esses filósofos se precipitaram temerariamente em seus juízos filosóficos, não levando até as últimas consequências as exigências de uma racionalidade crítica."
 

(Porchat, Ainda é preciso ser cético)


A estrutura das revoluções científicas – Thomas S. Kuhn

Em algum lugar do século passado, Thomas Kuhn foi um jovem estudante de física com um interesse recreativo pela filosofia que, após participar de um curso de férias sobre a História da ciência, ficou fascinado com o assunto e decidiu passar uns bons anos pesquisando a respeito. Porém, o que encontrou foi uma ciência histórica debilitada, que não fazia nada senão relatar o passado sem retirar qualquer proveito dele. Mais: os grandes pensadores que fundamentaram a ciência em seu início - como Aristóteles - não eram fascinantes como esperava, mas decepcionantes em suas formulações. O grego de Estagira, por exemplo, acreditava numa física não numérica, mas qualitativa, cujas explicações se davam por meio das qualidades (quente, frio), além de acreditar numa cosmologia completamente ultrapassada e imprecisa segundo nossos padrões. Tal como ele, outros cientistas e filósofos da antiguidade levantaram hipóteses insanas para explicar o mundo, fazendo com que a história da ciência parecesse aos olhos do jovem Kuhn um relato bizarro de ideias incoerentes. Como eles puderam acreditar nessas coisas? Como nossas ideias tão avançadas podem ter vindo dessas concepções primitivas? Foram algumas das questões que passaram pela mente desse jovem pensador. Felizmente, ele descobriu como.
“A estrutura das revoluções científicas” é um livro que mudou profundamente a maneira pela qual a ciência era encarada. Ainda hoje, depois de ter sido debatido à exaustão e atacado até que a última gota de sangue escorresse de suas páginas, ele continua sendo polêmico e interessante pelas ideias que suscita. Bom, mas que ideias são essas? Basicamente, a grande novidade trazida por essa pesquisa é o fato de encarar a ciência como uma construção histórica determinada ocorrente dentro de um meio social específico. Não que alguém duvidasse disso. No entanto, Kuhn retirou muitas inferências originais a partir desse ponto de vista. Uma delas é a de que toda ciência é movida por um conjunto de noções comuns entre seus cientistas - métodos, teorias partilhadas, testes - chamado paradigma. Esse imenso corpo de consensos serviria para designar aquilo que é aceito e o que não é aceito como científico, sejam práticas, objetos de estudo e até mesmo campos inteiros do conhecimento (por exemplo, a astrologia, é consensualmente uma pseudociência, mas nem sempre foi assim). Todavia, para Kuhn, os paradigmas não são fixos. Com o tempo, um paradigma se mostraria ineficiente para explicar os acontecimentos, de maneira que não deveria ser apenas melhorado, mas completamente substituído por outro após um processo de revolução científica. E assim caminharia a ciência.
Se Kuhn tem razão, segue-se então uma consequência curiosa: não há progresso científico já que a ciência não evolui para uma maior aproximação da verdade, mas apenas muda de um paradigma ao outro conforme eles se mostram mais efetivos que aqueles anteriores na resolução de problemas. Os menos eficientes são abandonados, sobrevivendo apenas os que “funcionam melhor”, contudo, nenhum deles pretende alcançar a verdade, mas apenas resolver mais efetivamente os problemas nos quais se debruça. Por isso, não caberia sequer falar em verdade na ciência, pois ela seria só um campo do conhecimento que se afirmaria pelo simples fato de que funciona, sendo mais um instrumento, uma ferramenta, que um conhecimento para a realidade do mundo.
Para piorar tudo e jogar toda uma tradição historiográfica na lata do lixo, Kuhn elaborou ainda uma noção deveras controversa: a de incomensurabilidade. O conceito é simples e elegante - vou explicá-lo recorrendo a uma historinha: narra-se que durante a colonização da Austrália os ingleses capturaram um filhote de um animal que jamais tinham visto. Recorreram então aos nativos para saciar sua dúvida e perguntaram a eles, afinal, que bicho era aquele. A resposta foi o termo “canguru”, que os colonizadores passaram a usar para nomear o bicho. No entanto, o que desconheciam é que no idioma local “canguru” significava, na verdade, algo como: “não estou entendendo”. Seja como for, canguru ficou canguru mesmo. O engano foi assimilado pela cultura como o nome do animal.
Interessante, não? Mas voltemos à incomensurabilidade.
Ocorre o seguinte: entre os nativos e os colonizadores não há termos comuns; ambos falam linguagens distintas e tem culturas diferentes, estando sem meios para atingir um ao outro pela comunicação. Para que se compreendam precisam associar os símbolos, as palavras, os gestos do outro a aquilo que já conhecem; que faz sentido dentro do seu próprio sistema linguístico e conceitual. Logo, não há uma medida comum, comensurável, entre eles. Há um espaço de incomensurabilidade entre ambos que inviabiliza a comunicação e cria o erro.
Esse mesmo princípio Kuhn aplica as teorias científicas: os paradigmas seriam incomensuráveis uns em relação aos outros; eles teriam em si sua própria inteligibilidade a qual não podemos simplesmente compreender se tentarmos nos aproximar deles a partir de nosso próprio conhecimento, de nossa própria linguagem, ou nos arriscaremos a transformar uma verdade em algo como é o canguru. Desse ponto de vista, Aristóteles seria um grande físico, porém só no seu próprio paradigma e não no nosso. Dentro do tipo de ciência que era comum naquele período o grego era um gênio. Com isso, é possível explicar pela noção de paradigma e incomensurabilidade tanto por que as pessoas de determinado período pensavam de certa maneira quanto por que nós não cremos no que eles criam.

Onde encontrar?

            Kuhn abriu um monte de campos novos de pesquisa ao levantar as hipóteses as quais levantou, entretanto, foi bastante criticado também. Basicamente, suas publicações após “A estrutura das revoluções científicas” foram defesas de suas teses contra os ataques que lhe dirigiram. Apesar disso, o livro é referência para todos que desejam estudar história ou filosofia da ciência.
            Como todo livro acadêmico, esse também não é muito barato e existe em poucas edições. A mais recente é da Perspectiva, custando em torno de trinta e cinco reais. Ainda assim, vale o gasto. Caso não queira pagar tudo isso, é possível encontrar em sebos algumas edições mais antigas por valores mais acessíveis.

Trecho:

Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina. Mesmo os próprios cientistas tem haurido essa imagem principalmente no estudo das realizações científicas acabadas, tal como estão registradas nos clássicos e, mais recentemente, nos manuais que cada nova geração utiliza para aprender seu ofício. Contudo, o objetivo de tais livros é inevitavelmente persuasivo e pedagógico; um conceito de ciência deles haurido terá tantas probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu como a imagem de uma cultural nacional obtida através de um folheto turístico ou um manual de línguas. Este ensaio tenta mostrar que esses livros nos tem enganado em aspectos fundamentais. Seu objetivo é esboçar um conceito de ciência bastante diverso que pode emergir dos registros históricos da própria atividade de pesquisa.”
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário