Talvez vocês já tenham
notado mas o Café com Tripas não é um daqueles blogues bonitinhos
que atualizam seus conteúdos todos os dias. Nossa política de atualização é
meio que mexer nisso aqui “sempre de vez em quando quando dá”, sendo que neste
último ano vários livros e filmes acabaram acumulando simplesmente porque o
barato foi louco em 2017, o que gerou várias discussões com editoras e fez
com que rompêssemos diversos contratos com patrocinadores, ONGs e com fã
clubes, perdendo milhões em propaganda (só que é mentira).
Bem, ocorre que enquanto
o Café não consegue grana para pagar próprios estagiários de
Letras e Cinema (acelerados por eventuais chibatadas, é claro), ficamos só essa
dupla dinâmica mesmo, porém com um ritmo mais acelerado agora que as obrigações
pesadas passaram. As perguntas foi um desses livros que ficou escondido
debaixo daquela poeira que as obrigações lançam sobre as coisas que nos
divertem, sendo que agora que estamos com um tempinho para o blogue, vamos
soprá-la para bem longe e descobrir o que ela escondeu.
“No começo era
difícil: ela acordava gritando, urros tão desesperados que despertavam os pais
e o irmão, eles corriam em direção ao quarto dela imaginando uma tragédia ou no
mínimo um acidente sanguinolento e a encontravam na cama, com o torço erguido,
as mãos apoiadas no colchão, agarrando com força o lençol, as unhas quase
rasgando o tecido, e os gritos iam diminuindo até ela entender o que tinha se
passado, até compreender e localizar a linha divisória entre o mundo dos entre
o mundo dos sonhos e a realidade, então ela ficava em silêncio enquanto os pais
e o irmão perguntavam “o que foi, o que foi?” e ela respondia com uma voz rouca
de quem arranhou as cordas vocais que “foi só um pesadelo”, mas ela sabia que a
explicação era simplista, que não valia a pena repetir o que contara aos pais
nas primeiras vezes que acordou gritando, isto é, que mesmo depois de acordar,
continuava enxergando sombras no quarto, e seu pai, do alto do seu
cientificismo, explicava que o cérebro demora um pouco para entender que não
está mais sonhando, ainda mais quando a pessoa desperta assim, de repente, e
que continua projetando imagens residuais do pesadelo.”
Título original: As perguntas
Autor: Antônio Xerxenesky
Ano: 2017
Editora: Companhia das letras
Páginas: 184
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Oi?
Alina, uma jovem com uma
breve carreira universitária dentro da História das religiões, acaba se
envolvendo com uma trama esquisita envolvendo um crime, símbolos místicos e uma
estranha seita.
Livro? Que livro?
O fim de meus afazeres mais
pesados neste ano coincidiu com minha leitura de As perguntas, mais um
desses livros que eu fui deixando de lado na medida em que coisas mais urgentes
foram surgindo e que eu tive que deixar as coisas divertidas empilhadas. Como
vim a descobrir logo que tive um tempinho para o ler, o livro dialogava com
algumas questões que me são familiares por conta de minha graduação na
Filosofia e veio a ser uma experiência gostosa no fim de tantas obrigações.
Meu exemplar chegou aqui
como uma cortesia da Companhia das Letras e, já que costumo receber muitos
livros em casa (seja de trocas, compras, ou outras coisas), demorei um tempo
tentando lembrar que livro era aquele e de onde veio. Depois que lembrei, fui
procurar um pouco mais sobre ele na internet, onde descobri que várias pessoas
o citando como terror, sendo com essa cabeça que eu entrei no livro para logo
perceber que era uma impressão errada da obra. Talvez eu pense de forma um
tanto diferente dos outros leitores, talvez o marketing da obra a tenha vendido
assim, como um terror, eu seja surpreendentemente burro ao entender
inicialmente a obra dessa forma ou sei lá, mas o fato é que o livro não é bem
isso, estando muito mais para um suspense ou coisa do tipo. Na maior parte do
tempo não há monstros, vilões, encontros aterrorizantes, nem mesmo medo, só
possibilidades que se constroem com o tempo e sem muito susto —
será que é algo sobrenatural? Será que a personagem está imaginando
coisas?
A obra começa com uma
quebra na rotina da protagonista e daí passa a relatar a desestruturação
gradativa de seu mundo, suscitando dúvidas sobre a realidade das coisas e
fazendo com que ela questione se afinal essa coisa de superstição e religião é
só fantasia ou se alguma coisa se agita por detrás de seus mistérios.
Quê?
Basicamente, a narrativa
envolve dois aspectos: os fatos que acontecem na vida da personagem —
ela caminhou até tal lugar, viu
isso, ouviu aquilo, etc. — e as reflexões levantadas em torno deles.
A descrição desses fatos
toma grande parte da obra, bem como diversas descrições do cenário onde a
narrativa transcorre, sendo que aquilo que a personagem faz em seu
cotidiano, no seu trabalho ou mesmo
junto ao seus amigos toma muitas páginas do livro. A protagonista habita aquela
parte do estado de São Paulo em que o metrô chega, se é que me faço entender, a
parte mais urbanizada e moderninha da cidade na qual, quem pode pagar, consegue
viver com algum conforto, de modo que é ali na classe C urbana e branquinha que
a personagem se aloca. Alina é mais uma jovenzinha urbana, meio desenraizada,
consumidora de cultura pop, escolarizada (mas não culta) e que vive uma vida
que não é ruim mas também não é especialmente boa. Sobram referências na obra
nesse sentido, como Netflix, redes sociais, universidades públicas, pós
graduação, a vida instável dos estudantes de humanas e coisas e temas que fazem
parte de um espaço que é tanto social quanto geográfico, contudo, essas
referências e descrições não são muito penetrantes e mais expõe que desvelam,
não cansando mas também sendo descartadas tão logo sejam lidas. Como as coisas
se perdem no imediato, o livro não constrói muita coisa a longo prazo e, embora
seja divertido de ler, não deixa de ser superficial e banal, pois não há nada a
ser ponderado e nenhum sentimento complexo a se compreender. Bem, eu não quero
sugerir que isso seja qualquer coisa como um “critério universal para se
avaliar se um livro é bom ou ruim” ou algo do tipo, no entanto, como se trata
de um livro em que o processo reflexivo deveria importar (ele até se chama As
perguntas), penso que isso seja uma falha. Para ser
preciso, penso que é uma falha do autor e que essa apresentação não muito
complexa do espaço habitado pela personagem ocorra, de um lado, porque o olhar
do autor não é muito mais complexo que o da personagem e, de outro, porque esse
espaço social e geográfico é mais ou menos o mesmo espaço frequentado pelo
autor (e por mim também, sou dessa mesma bolha). Em nenhum momento tive
qualquer sensação de estranheza com a obra ou com a personagem e, embora o
livro seja mais reflexivo que propriamente psicológico, achei fácil se
reconhecer na protagonista, algo que considerei um mal sinal: o reconhecimento
só veio fácil porque a protagonista era um tanto vazia, sendo fácil preenchê-la
com coisas gerais que temos em comum. É aí que entram as referências e as
descrições de lugares e situações, dando aquela sensação de “eu também” a qual,
no fundo, não é mais que o reforço de certo senso comum entre leitor e
personagem. Por sinal, às vezes, a própria protagonista se interrompe e
ressalta que sua visão de mundo não supera esse pequeno espaço, como se ela e o
autor dissessem ao mesmo tempo: “ora, eu sei que há mais que isso, não sou um
ser ingênuo”, contudo, isso nunca soa convincente e sempre me pareceu que as
limitações da personagem eram as limitações do autor.
Para além desse aspecto
mais factual, digamos assim, o livro também se desdobra através de várias
reflexões levantadas pela personagem. Por mais que perpasse suas
singularidades, essa reflexão não é exatamente psicológica, quer dizer, não se
trata de tentar compreender a singularidade de Alina, mas de compreender certa
linha de raciocínio que ela desenvolve sobre determinados temas, como a morte,
a religião e o sobrenatural. Inclusive, é daí que surgem as perguntas do
título, como resultado de certo processo
lógico que o leitor acompanha refletindo. A história se inicia numa
espécie de ruptura do cotidiano da personagem que aumenta gradativamente em
importância e infla suas dúvidas sobre as coisas, com isso, de um mundo
racional e normalzinho e meio banal, passamos a mundo meio doido que as coisas
não tem muita explicação e a superstição toma tudo.
A meu ver, esse aspecto
reflexivo de levantar questões — ou perguntas, se quiserem —
não é ruim, ele é bem confortável de ler e não enfada em nenhum momento,
contudo, não é ele propriamente que faz a história avançar e sim o primeiro,
aquele dos acontecimentos, dos fatos e tal, por conta disso, embora a
protagonista pense muitas coisas, é só a partir do momento em que ela se mexe
que alguma coisa acontece efetivamente na história. A reflexão acompanha os
fatos e nada se resolve por ela, aliás, nem o final da obra que, pelo que
percebi, irritou bem mais gente além de mim.
Ocorre o seguinte: sem
entregar nada a você que ainda não leu o livro, posso dizer que o final é
“aberto”, não resolvendo os problemas apresentados na obra, o que é consequente
com um livro cujo título já coloca o leitor nesse âmbito da dúvida, mas não
completamente consequente e vou explicar por quê. Se de um lado o autor
apresenta fatos da vida da personagem porém, como já disse, esses fatos não se
somam para formar um quadro e apenas surgem e morrem a cada página; de outro,
ele apresenta reflexões que são agradáveis e inteligentes, contudo não
especialmente inteligentes, de modo que quem já estudou algo sobre religião ou
Filosofia sabe de onde elas partem e aonde vão. Embora em nenhum momento as
perguntas enfadem ou constranjam, elas também não são nada originais e não
trazem nenhuma surpresa e, ao menos no meu caso, não existiu nenhum momento do
livro em que as perguntas da personagem se tornassem minhas ou que ao menos
tenham me causado qualquer inquietação. No máximo, senti vontade de
respondê-las por achá-las um tanto comuns e fáceis de encerrar. Se não forem
puramente psicológicos ou gramaticais, questionamentos iniciam por meio da
colocação de razões que põe em dúvidas nossas certezas, sendo mais forte a
dúvida quanto mais forte forem as razões que a ensejam, contudo, a argumentação
da personagem é muito comum (não rasa, mas comum); somente discussões já
conhecidas são percorridas e pelos caminhos de sempre, de modo que todo o
questionamento gera, no limite, a expectativa de que ele seja superado por
questões interessantes e originais. É nesse sentido que penso que o final
falha, pois não sinto como se tivesse saído de um livro que construiu questões,
ao menos não para mim (talvez só para a personagem), mas de um livro que ficou
simplesmente inacabado, que antes mesmo de chegar a algum lugar teve fim.
Quando me deparei com o final, fiquei com a impressão de que tinha lido o livro
como a perspectiva errada — quê? Acabou? As perguntas que
ficaram na minha cabeça não foram questões construídas no decorrer do texto,
pois eu o acabei sem ficar com nada e enquanto escrevo esta resenha já devo
estar esquecendo o que li, mas simplesmente a sensação de “puts, é isso
mesmo?”.
Como o livro é agradável
e não cai no ridículo em nenhum momento, eu estava pronto para escrever aqui
que ele era um bom livro de estreia e que o autor logo “chegaria lá”,
produzindo uma obra mais madura e consistente, no entanto, quando pesquisei a
respeito dele descobri que As perguntas era seu terceiro livro, o que
fez bater uma tristezinha.
Como?
As perguntas tem
um estilo direto e argumentado, sendo que mesmo os momentos que mais penetram
na introspecção e na subjetividade da personagem são bastante racionais,
seguindo uma linha de pensamento menos sentimental e mais lógica. Apesar disso,
a narrativa nunca chega a ultrapassar a personagem completamente e se tornar
apenas uma exposição de uma linha de raciocínio, como acontece nos piores
momentos de um livro como Crime e castigo, por exemplo, e até seu fim a
obra mantém um equilíbrio agradável entre a psicologia da personagem e suas
dúvidas “filosóficas”, inclusive quando a mudança narrativa na segunda parte
poderia desbalancear isso completamente.
A descrição psicológica
não é o foco da obra e Alina não é desenvolvida de forma muito singular, sendo
que o que realmente importa é o processo reflexivo que ela levanta e os fatos
que os suscitam. Assim, por mais que percorramos a vida de Alina, seus
pensamentos e memórias, a narrativa nunca sai da superficialidade e nada causa
estranhamento ou traz aquela sensação de peso que sentimos ao ler algo muito
complexo, o que acaba tornando fácil para qualquer pessoa se reconhecer na
personagem, uma vez que ela é geral o suficiente para que qualquer um se
projete nela e sinta que tem compartilham coisas. Mas ao contrário de um livro como O último adeus, por
exemplo, que abusa disso como recurso para fazer o leitor criar uma conexão
emocional com a personagem, aqui essa superficialidade existe mais para criar
certo compartilhamento de pensamentos, reflexões e de percepções sobre as
coisas. Alina sempre nos apresenta algum dado de seu cotidiano ou algum ponto
de vista banal em que podemos facilmente nos reconhecer, existindo frequentes
menções às redes sociais, comentários a respeito de lugares frequentados pela
personagem que parecem estar lá como referência para o leitor que pensaria o
mesmo ao frequentá-los, como que para causar nele aquela sensação de “eu também” já que não
cumprem função alguma no livro, contudo, a despeito disso, em nenhum momento
sentimos pena quando a personagem se dá mal ou felicidade por suas vitórias,
como se torcêssemos para uma heroína ou alguém de quem gostamos. Sempre está
presente certa distância entre os sentimentos delas e os nossos, fazendo com
que acompanhemos o desenrolar de sua circunstância com interesse porém não
necessariamente com paixão.
Parte disso está no
plano do livro, que é uma obra sobre indagações e questionamentos, porém parte
disso é um problema dele, já que a superficialidade faz com que as coisas não
se somem ou não se somem de forma a se tornarem complexas, o que é terrível
para uma obra que pretende gerar reflexões. Qualquer um pode colocar um ponto
de interrogação no fim de uma frase afirmativa e transformá-la numa pergunta,
no entanto, para que ela seja uma reflexão mesmo, é preciso que existam razões
e nexos por detrás desse pontinho, algo que só pode ser desenvolvido com
aprofundamento, gerando estranhamento e surpresa no leitor, que encontra ali
algo que não seria capaz de pensar sozinho. Nesse ponto, a superficialidade da
narrativa trabalha contra seus objetivos, embora, paradoxalmente, também a
torne bastante agradável de ler pelo pouco que requere para ser compreendida e
fruída.
E a gente conclui o quê daí?
Retomando o que tinha
dito no começo deste texto, como fiz graduação em Filosofia, as questões que
inquietam Alina já foram de meu interesse e pude conhecer várias respostas
dadas a elas por pensadores clássicos ao longo de meu próprio percurso, sendo
assim, fico pensando se preciso colocar algum limite nas críticas que faço ao
livro, quer dizer, talvez As perguntas não tenham me atingido com muita
força justamente por que já passei pelas reflexões do livro várias vezes e de
várias formas. Pode ser que para os demais leitores, até para a maioria deles,
o livro não seja como eu o descrevo aqui, mas mais impactante.
Seja como for, para além
dessas críticas é preciso ressaltar que a obra é agradável e divertida, fazendo
um bom trabalho ao exprimir essa juventude meio desenraizada que vive nas
grandes cidades brasileiras, que sente que não pertence a uma cultura e que
suas lembranças são experiências artificiais vendidas por marcas e empresas ou
encontros e desencontros banais e sem vida. Na verdade, penso que o livro é mais
original nesse sentido de representar um grupo social que em seu questionamento
a respeito do sobrenatural, já que esse questionamento nunca chega a ser
profundo ou um resultado singular de uma personalidade única, ficando apenas no
mais geral do assunto — será que há sobrenatural ou
não? As dúvidas de Alina nunca vão além disso, de modo que, mantendo essa
dualidade até o final, ela jamais diz que sim ou que não, nem nos dá muitas
razões para mudarmos de opinião (seja qual for a nossa) ou pensarmos mais profundamente
a respeito do assunto. Se eu fosse escolher, diria que no universo de As
perguntas existe sobrenatural mas que nenhuma das reflexões levantadas na
obra são capazes de impactar o leitor, nem que seja para fazê-lo sentir dúvida.
No nosso universo continuamos com as nossas razões e esquecemos o livro logo
depois de ler, pois ele não é capaz de construir nada que já não tenhamos
pensado por nós mesmos.
Por fim, aqui do alto
da minha opiniãozinha de porcaria que não vale nada eu não recomendo As
perguntas, mas não acho que seja um livro a ser amaldiçoado, evitado,
temido, caçado e ojerizado. Só é passável. Se ele simplesmente lhe interessar,
ignore as críticas que fiz aqui, mas se ele não lhe interessar, pegue-as para
reforçar seu interesse e siga em frente procurando por outros livros.
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