terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Literatura: As perguntas (Antônio Xerxenesky)


            Talvez vocês já tenham notado mas o Café com Tripas não é um daqueles blogues bonitinhos que atualizam seus conteúdos todos os dias. Nossa política de atualização é meio que mexer nisso aqui “sempre de vez em quando quando dá”, sendo que neste último ano vários livros e filmes acabaram acumulando simplesmente porque o barato foi louco em 2017, o que gerou várias discussões com editoras e fez com que rompêssemos diversos contratos com patrocinadores, ONGs e com fã clubes, perdendo milhões em propaganda (só que é mentira).
            Bem, ocorre que enquanto o Café não consegue grana para pagar próprios estagiários de Letras e Cinema (acelerados por eventuais chibatadas, é claro), ficamos só essa dupla dinâmica mesmo, porém com um ritmo mais acelerado agora que as obrigações pesadas passaram. As perguntas foi um desses livros que ficou escondido debaixo daquela poeira que as obrigações lançam sobre as coisas que nos divertem, sendo que agora que estamos com um tempinho para o blogue, vamos soprá-la para bem longe e descobrir o que ela escondeu.



            “No começo era difícil: ela acordava gritando, urros tão desesperados que despertavam os pais e o irmão, eles corriam em direção ao quarto dela imaginando uma tragédia ou no mínimo um acidente sanguinolento e a encontravam na cama, com o torço erguido, as mãos apoiadas no colchão, agarrando com força o lençol, as unhas quase rasgando o tecido, e os gritos iam diminuindo até ela entender o que tinha se passado, até compreender e localizar a linha divisória entre o mundo dos entre o mundo dos sonhos e a realidade, então ela ficava em silêncio enquanto os pais e o irmão perguntavam “o que foi, o que foi?” e ela respondia com uma voz rouca de quem arranhou as cordas vocais que “foi só um pesadelo”, mas ela sabia que a explicação era simplista, que não valia a pena repetir o que contara aos pais nas primeiras vezes que acordou gritando, isto é, que mesmo depois de acordar, continuava enxergando sombras no quarto, e seu pai, do alto do seu cientificismo, explicava que o cérebro demora um pouco para entender que não está mais sonhando, ainda mais quando a pessoa desperta assim, de repente, e que continua projetando imagens residuais do pesadelo.

Título original: As perguntas
Autor: Antônio Xerxenesky
Ano: 2017
Editora: Companhia das letras
Páginas: 184
Oi?

            Alina, uma jovem com uma breve carreira universitária dentro da História das religiões, acaba se envolvendo com uma trama esquisita envolvendo um crime, símbolos místicos e uma estranha seita.

Livro? Que livro?

            O fim de meus afazeres mais pesados neste ano coincidiu com minha leitura de As perguntas, mais um desses livros que eu fui deixando de lado na medida em que coisas mais urgentes foram surgindo e que eu tive que deixar as coisas divertidas empilhadas. Como vim a descobrir logo que tive um tempinho para o ler, o livro dialogava com algumas questões que me são familiares por conta de minha graduação na Filosofia e veio a ser uma experiência gostosa no fim de tantas obrigações.
            Meu exemplar chegou aqui como uma cortesia da Companhia das Letras e, já que costumo receber muitos livros em casa (seja de trocas, compras, ou outras coisas), demorei um tempo tentando lembrar que livro era aquele e de onde veio. Depois que lembrei, fui procurar um pouco mais sobre ele na internet, onde descobri que várias pessoas o citando como terror, sendo com essa cabeça que eu entrei no livro para logo perceber que era uma impressão errada da obra. Talvez eu pense de forma um tanto diferente dos outros leitores, talvez o marketing da obra a tenha vendido assim, como um terror, eu seja surpreendentemente burro ao entender inicialmente a obra dessa forma ou sei lá, mas o fato é que o livro não é bem isso, estando muito mais para um suspense ou coisa do tipo. Na maior parte do tempo não há monstros, vilões, encontros aterrorizantes, nem mesmo medo, só possibilidades que se constroem com o tempo e sem muito susto — será que é algo sobrenatural? Será que a personagem está imaginando coisas?
            A obra começa com uma quebra na rotina da protagonista e daí passa a relatar a desestruturação gradativa de seu mundo, suscitando dúvidas sobre a realidade das coisas e fazendo com que ela questione se afinal essa coisa de superstição e religião é só fantasia ou se alguma coisa se agita por detrás de seus mistérios.

Quê?

            Basicamente, a narrativa envolve dois aspectos: os fatos que acontecem na vida da personagem —  ela caminhou até tal lugar, viu isso, ouviu aquilo, etc. —  e as reflexões levantadas em torno deles.
            A descrição desses fatos toma grande parte da obra, bem como diversas descrições do cenário onde a narrativa transcorre, sendo que aquilo que a personagem faz em seu cotidiano,  no seu trabalho ou mesmo junto ao seus amigos toma muitas páginas do livro. A protagonista habita aquela parte do estado de São Paulo em que o metrô chega, se é que me faço entender, a parte mais urbanizada e moderninha da cidade na qual, quem pode pagar, consegue viver com algum conforto, de modo que é ali na classe C urbana e branquinha que a personagem se aloca. Alina é mais uma jovenzinha urbana, meio desenraizada, consumidora de cultura pop, escolarizada (mas não culta) e que vive uma vida que não é ruim mas também não é especialmente boa. Sobram referências na obra nesse sentido, como Netflix, redes sociais, universidades públicas, pós graduação, a vida instável dos estudantes de humanas e coisas e temas que fazem parte de um espaço que é tanto social quanto geográfico, contudo, essas referências e descrições não são muito penetrantes e mais expõe que desvelam, não cansando mas também sendo descartadas tão logo sejam lidas. Como as coisas se perdem no imediato, o livro não constrói muita coisa a longo prazo e, embora seja divertido de ler, não deixa de ser superficial e banal, pois não há nada a ser ponderado e nenhum sentimento complexo a se compreender. Bem, eu não quero sugerir que isso seja qualquer coisa como um “critério universal para se avaliar se um livro é bom ou ruim” ou algo do tipo, no entanto, como se trata de um livro em que o processo reflexivo deveria importar (ele até se chama As perguntas), penso que isso seja uma falha. Para ser preciso, penso que é uma falha do autor e que essa apresentação não muito complexa do espaço habitado pela personagem ocorra, de um lado, porque o olhar do autor não é muito mais complexo que o da personagem e, de outro, porque esse espaço social e geográfico é mais ou menos o mesmo espaço frequentado pelo autor (e por mim também, sou dessa mesma bolha). Em nenhum momento tive qualquer sensação de estranheza com a obra ou com a personagem e, embora o livro seja mais reflexivo que propriamente psicológico, achei fácil se reconhecer na protagonista, algo que considerei um mal sinal: o reconhecimento só veio fácil porque a protagonista era um tanto vazia, sendo fácil preenchê-la com coisas gerais que temos em comum. É aí que entram as referências e as descrições de lugares e situações, dando aquela sensação de “eu também” a qual, no fundo, não é mais que o reforço de certo senso comum entre leitor e personagem. Por sinal, às vezes, a própria protagonista se interrompe e ressalta que sua visão de mundo não supera esse pequeno espaço, como se ela e o autor dissessem ao mesmo tempo: “ora, eu sei que há mais que isso, não sou um ser ingênuo”, contudo, isso nunca soa convincente e sempre me pareceu que as limitações da personagem eram as limitações do autor.
            Para além desse aspecto mais factual, digamos assim, o livro também se desdobra através de várias reflexões levantadas pela personagem. Por mais que perpasse suas singularidades, essa reflexão não é exatamente psicológica, quer dizer, não se trata de tentar compreender a singularidade de Alina, mas de compreender certa linha de raciocínio que ela desenvolve sobre determinados temas, como a morte, a religião e o sobrenatural. Inclusive, é daí que surgem as perguntas do título, como resultado de certo processo  lógico que o leitor acompanha refletindo. A história se inicia numa espécie de ruptura do cotidiano da personagem que aumenta gradativamente em importância e infla suas dúvidas sobre as coisas, com isso, de um mundo racional e normalzinho e meio banal, passamos a mundo meio doido que as coisas não tem muita explicação e a superstição toma tudo.
            A meu ver, esse aspecto reflexivo de levantar questões — ou perguntas, se quiserem — não é ruim, ele é bem confortável de ler e não enfada em nenhum momento, contudo, não é ele propriamente que faz a história avançar e sim o primeiro, aquele dos acontecimentos, dos fatos e tal, por conta disso, embora a protagonista pense muitas coisas, é só a partir do momento em que ela se mexe que alguma coisa acontece efetivamente na história. A reflexão acompanha os fatos e nada se resolve por ela, aliás, nem o final da obra que, pelo que percebi, irritou bem mais gente além de mim.
            Ocorre o seguinte: sem entregar nada a você que ainda não leu o livro, posso dizer que o final é “aberto”, não resolvendo os problemas apresentados na obra, o que é consequente com um livro cujo título já coloca o leitor nesse âmbito da dúvida, mas não completamente consequente e vou explicar por quê. Se de um lado o autor apresenta fatos da vida da personagem porém, como já disse, esses fatos não se somam para formar um quadro e apenas surgem e morrem a cada página; de outro, ele apresenta reflexões que são agradáveis e inteligentes, contudo não especialmente inteligentes, de modo que quem já estudou algo sobre religião ou Filosofia sabe de onde elas partem e aonde vão. Embora em nenhum momento as perguntas enfadem ou constranjam, elas também não são nada originais e não trazem nenhuma surpresa e, ao menos no meu caso, não existiu nenhum momento do livro em que as perguntas da personagem se tornassem minhas ou que ao menos tenham me causado qualquer inquietação. No máximo, senti vontade de respondê-las por achá-las um tanto comuns e fáceis de encerrar. Se não forem puramente psicológicos ou gramaticais, questionamentos iniciam por meio da colocação de razões que põe em dúvidas nossas certezas, sendo mais forte a dúvida quanto mais forte forem as razões que a ensejam, contudo, a argumentação da personagem é muito comum (não rasa, mas comum); somente discussões já conhecidas são percorridas e pelos caminhos de sempre, de modo que todo o questionamento gera, no limite, a expectativa de que ele seja superado por questões interessantes e originais. É nesse sentido que penso que o final falha, pois não sinto como se tivesse saído de um livro que construiu questões, ao menos não para mim (talvez só para a personagem), mas de um livro que ficou simplesmente inacabado, que antes mesmo de chegar a algum lugar teve fim. Quando me deparei com o final, fiquei com a impressão de que tinha lido o livro como a perspectiva errada — quê? Acabou? As perguntas que ficaram na minha cabeça não foram questões construídas no decorrer do texto, pois eu o acabei sem ficar com nada e enquanto escrevo esta resenha já devo estar esquecendo o que li, mas simplesmente a sensação de “puts, é isso mesmo?”.
            Como o livro é agradável e não cai no ridículo em nenhum momento, eu estava pronto para escrever aqui que ele era um bom livro de estreia e que o autor logo “chegaria lá”, produzindo uma obra mais madura e consistente, no entanto, quando pesquisei a respeito dele descobri que As perguntas era seu terceiro livro, o que fez bater uma tristezinha.

Como?

            As perguntas tem um estilo direto e argumentado, sendo que mesmo os momentos que mais penetram na introspecção e na subjetividade da personagem são bastante racionais, seguindo uma linha de pensamento menos sentimental e mais lógica. Apesar disso, a narrativa nunca chega a ultrapassar a personagem completamente e se tornar apenas uma exposição de uma linha de raciocínio, como acontece nos piores momentos de um livro como Crime e castigo, por exemplo, e até seu fim a obra mantém um equilíbrio agradável entre a psicologia da personagem e suas dúvidas “filosóficas”, inclusive quando a mudança narrativa na segunda parte poderia desbalancear isso completamente.
            A descrição psicológica não é o foco da obra e Alina não é desenvolvida de forma muito singular, sendo que o que realmente importa é o processo reflexivo que ela levanta e os fatos que os suscitam. Assim, por mais que percorramos a vida de Alina, seus pensamentos e memórias, a narrativa nunca sai da superficialidade e nada causa estranhamento ou traz aquela sensação de peso que sentimos ao ler algo muito complexo, o que acaba tornando fácil para qualquer pessoa se reconhecer na personagem, uma vez que ela é geral o suficiente para que qualquer um se projete nela e sinta que tem compartilham coisas. Mas ao contrário de um  livro como O último adeus, por exemplo, que abusa disso como recurso para fazer o leitor criar uma conexão emocional com a personagem, aqui essa superficialidade existe mais para criar certo compartilhamento de pensamentos, reflexões e de percepções sobre as coisas. Alina sempre nos apresenta algum dado de seu cotidiano ou algum ponto de vista banal em que podemos facilmente nos reconhecer, existindo frequentes menções às redes sociais, comentários a respeito de lugares frequentados pela personagem que parecem estar lá como referência para o leitor que pensaria o mesmo ao frequentá-los, como que para causar nele aquela sensação de “eu também” já que não cumprem função alguma no livro, contudo, a despeito disso, em nenhum momento sentimos pena quando a personagem se dá mal ou felicidade por suas vitórias, como se torcêssemos para uma heroína ou alguém de quem gostamos. Sempre está presente certa distância entre os sentimentos delas e os nossos, fazendo com que acompanhemos o desenrolar de sua circunstância com interesse porém não necessariamente com paixão.
            Parte disso está no plano do livro, que é uma obra sobre indagações e questionamentos, porém parte disso é um problema dele, já que a superficialidade faz com que as coisas não se somem ou não se somem de forma a se tornarem complexas, o que é terrível para uma obra que pretende gerar reflexões. Qualquer um pode colocar um ponto de interrogação no fim de uma frase afirmativa e transformá-la numa pergunta, no entanto, para que ela seja uma reflexão mesmo, é preciso que existam razões e nexos por detrás desse pontinho, algo que só pode ser desenvolvido com aprofundamento, gerando estranhamento e surpresa no leitor, que encontra ali algo que não seria capaz de pensar sozinho. Nesse ponto, a superficialidade da narrativa trabalha contra seus objetivos, embora, paradoxalmente, também a torne bastante agradável de ler pelo pouco que requere para ser compreendida e fruída.

E a gente conclui o quê daí?

            Retomando o que tinha dito no começo deste texto, como fiz graduação em Filosofia, as questões que inquietam Alina já foram de meu interesse e pude conhecer várias respostas dadas a elas por pensadores clássicos ao longo de meu próprio percurso, sendo assim, fico pensando se preciso colocar algum limite nas críticas que faço ao livro, quer dizer, talvez As perguntas não tenham me atingido com muita força justamente por que já passei pelas reflexões do livro várias vezes e de várias formas. Pode ser que para os demais leitores, até para a maioria deles, o livro não seja como eu o descrevo aqui, mas mais impactante.
            Seja como for, para além dessas críticas é preciso ressaltar que a obra é agradável e divertida, fazendo um bom trabalho ao exprimir essa juventude meio desenraizada que vive nas grandes cidades brasileiras, que sente que não pertence a uma cultura e que suas lembranças são experiências artificiais vendidas por marcas e empresas ou encontros e desencontros banais e sem vida. Na verdade, penso que o livro é mais original nesse sentido de representar um grupo social que em seu questionamento a respeito do sobrenatural, já que esse questionamento nunca chega a ser profundo ou um resultado singular de uma personalidade única, ficando apenas no mais geral do assunto — será que há sobrenatural ou não? As dúvidas de Alina nunca vão além disso, de modo que, mantendo essa dualidade até o final, ela jamais diz que sim ou que não, nem nos dá muitas razões para mudarmos de opinião (seja qual for a nossa) ou pensarmos mais profundamente a respeito do assunto. Se eu fosse escolher, diria que no universo de As perguntas existe sobrenatural mas que nenhuma das reflexões levantadas na obra são capazes de impactar o leitor, nem que seja para fazê-lo sentir dúvida. No nosso universo continuamos com as nossas razões e esquecemos o livro logo depois de ler, pois ele não é capaz de construir nada que já não tenhamos pensado por nós mesmos.
            Por fim, aqui do alto da minha opiniãozinha de porcaria que não vale nada eu não recomendo As perguntas, mas não acho que seja um livro a ser amaldiçoado, evitado, temido, caçado e ojerizado. Só é passável. Se ele simplesmente lhe interessar, ignore as críticas que fiz aqui, mas se ele não lhe interessar, pegue-as para reforçar seu interesse e siga em frente procurando por outros livros. 

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